Um Novíssimo Recomeço... De Volta à Pirataria



 Um Novíssimo Recomeço... De Volta à Pirataria

(por Fernando Neeser de Aragão)


Livremente inspirado em textos de Robert E. Howard.



1) Ortho Vermelho


Seu navio era uma caravela zíngara, chamada O Pelicano. Velhacaria e luta selvagem o ganharam, e a escória do mar o equipava. Ninguém da tripulação tinha preço que não fosse a própria cabeça. Para o pirata argoseano Ortho Vermelho – assim chamado por sua barba ruiva e atos sanguinários – convergiam velhacos, ladrões e assassinos, cuja única virtude era o indiferente abandono de homens desesperados que não tinham nada pelo que viver.

Foras-da-lei zíngaros, criminosos argoseanos, escravos shemitas fugidos, corsários kushitas, e fugitivos de forcas stígias guiavam e remavam o Pelicano, e lutavam e saqueavam sob o comando de seu chefe semi-bárbaro. Lá havia homens de orelhas cortadas e narizes fendidos, homens com marcas de ferro quente no rosto, cujos membros traziam marcas de cavaletes de tortura e de grilhões. Não tinham amor nem esperança, e lutavam como demônios famintos de sangue.

Sua única lei era a palavra de Ortho, e aquela lei era inflexível. Não havia sentimento entre eles: rosnavam ao redor dele feito lobos, e ele os amaldiçoava pelos parasitas que eram. Mas eles temiam e respeitavam-lhe a ferocidade e bravura guerreira, e ele reconhecia-lhes a desesperada selvageria. Ele não tentou impor sua vontade sobre eles à maneira de outros líderes, cuja mão não é contra o mundo. Exigiu-lhes apenas que o seguissem e lutassem como demônios, quando ele desse a ordem. Ele nem dava a mesma ordem duas vezes. Nos ambientes nos quais se encontrava, o tigre sonolento despertava no chefe argoseano e, de toda a tripulação de mãos vermelhas, ele próprio era o mais terrível.

Quando ele dava uma ordem, um homem obedecia instantaneamente ou puxava sua arma com a mesma rapidez. Pois a penalidade por desobediência era o instantâneo derramamento dos miolos do amotinado, sob a espada do chefe. Até os barachos que seguiram Ortho, nos dias anteriores à sua proscrição, ficariam embasbacados, ao vê-lo no tombadilho manchado de sangue do Pelicano, com os olhos rugindo ainda mais que em sua época de baracho e a espada pingando, bradando ordens à sua horda heterogênea, numa voz que se assemelhava ao grito enlouquecido de uma pantera.

Era um pirata que saqueava piratas e que agora, mais do que nunca, fazia jus à sua alcunha de “Vermelho”. Somente quando seus suprimentos ficavam escassos, é que ele se lançava a pilhar as costas de Zingara, Argos e Shem. Foi um serviço duro, o que o argoseano ofereceu aos homens que chegaram até ele, vindos das prisões ou da sombra da forca. Ele os prometeu apenas uma vida dura e amarga, trabalho incessante, guerra e uma morte sangrenta. Mas ele deu-lhes uma chance de se vingarem do mundo e se saciarem na matança – e os homens seguiram-no.

Quando até mesmo os bravos zíngaros e argoseanos punham suas embarcações nos portos e ficavam encerrados em suas casas, bebendo cerveja e ouvindo canções, Ortho e seus ladrões vagavam pelos mares, para atacarem seus inimigos em suas seguranças e deixarem cinzas e brasas ardentes de casas sólidas.

Eu, Conan, era um de seus piratas. Após deixar Valéria e Zoraide em Kush, reencontrei aquele velhaco de barba ruiva – o qual eu conhecera em meus tempos de pirata baracho – na Costa Negra e me juntei à tripulação daquele pirata que era renegado até pelos próprios barachos, com os quais navegara no passado. Batalhas rápidas e cruéis, e saques valiosos eram sempre garantidos para os homens de Ortho. Tomávamos todos os navios que avistávamos e que não eram fortes demais para nós. Comerciantes e mercadores de várias procedências, e outros navios piratas – barachos ou bucaneiros –, tudo era sinônimo de pilhagem.


Havia um argoseano velho e feroz, que possuía uma propriedade na mais setentrional das Ilhas Barachas. Todo navio – baracho ou não – que passasse por aquela parte das ilhas, era obrigado a pagar um tributo. Nosso navio, naquele dia, estava contornando o cabo onde ficava a moradia do velho baracho.

Instantaneamente, outra embarcação argoseana surgiu por detrás daquele trecho de terra e veio em nossa direção. Nosso navio se aproximou dela e, após uma breve troca de flechas, com mais baixas entre eles do que entre nós, o navio adversário deu a volta e rumou para a pequena baía da qual tinha saído. Dali, podíamos ver a moradia do velho na parte mais alta do promontório.

- Atrás deles! – trovejou Ortho. – Por Mitra, vamos saquear a casa dele!

- Mais devagar, Ortho; mais devagar – disse o velho primeiro imediato do Pelicano. – Talvez seja uma armadilha. Hakon é astuto como uma raposa, e todos sabem que ele tem cinco navios. Só vimos um deles até agora.

Mas Ortho Vermelho ficava precipitado diante da ânsia pela batalha e da perspectiva de saques:

- Não me importa se o velho Hakon tem cem navios apinhados de homens! – ele gritou. – Para a baía, timoneiro!

E para ela nos dirigimos. Lá, na praia, até onde o tinham arrastado, estava o navio. Não havia ninguém por perto.

- Depois que tivermos saqueado e incendiado a casa – falou Ortho –, vamos levar aquele navio conosco e vendê-lo, pois parece firme e bem bonito.

- Mas onde está a tripulação? – questionou o segundo imediato. – E onde estão as demais embarcações de Hakon?

- A tripulação, sem dúvida, foi defender a casa dele – respondeu o primeiro imediato. – Quanto aos outros navios, não faço idéia.

- Fugiram – afirmou Ortho. – Fugiram todos, pois souberam que Ortho Vermelho estava indo rapinar a casa de Hakon e toda a vila.

Muitas pessoas fugiam ante a chegada de Ortho, cuja espada não poupava servos, nem mulheres nem crianças, cujas cabeças rolavam ensangüentadas pelo chão. Após uma breve luta sangrenta, no salão de Hakon, deixamos nosso navio e subimos a colina para atacar, bradando nossos gritos de batalha. Os guerreiros na casa de Hakon lutaram bravamente, mas estávamos em maioria e invadimos as muralhas do lugar como um enxame.

Ao mesmo tempo, outros de nós destroçávamos os postigos e atirávamos flechas no interior do salão, abatendo alguns. Hakon e sua gente correram em direção à porta e se encontraram frente a frente conosco. Conseguimos matar vários deles, enquanto o velho fugia até o salão; mas, pouco depois, ficamos envolvidos numa luta corpo-a-corpo, tanto dentro quanto fora da casa. Sem saber como, me vi abraçado a um robusto argoseano, tão grande quanto eu e protegido por uma cota-de-malha. Sem dúvida alguma, ele havia perdido o capacete durante a batalha. Em sua mão direita, brandia uma espada longa, assim como eu. Cada um agarrou o pulso de seu inimigo com a esquerda. Resistimos, suando e grunhindo como animais, tentando decepar o braço armado do outro com um golpe certeiro. Finalmente consegui passar-lhe uma rasteira e o fiz cair para trás, ao mesmo tempo em que eu me arremessava sobre ele e lhe rachava o crânio, lustrando o chão com seus miolos.

Setas se cravavam em testas, pescoços, peitos e abdomens barachos, enquanto o sangue espirrava como água, e cabeças e membros rolavam no chão. Corpos eram cortados ao meio, na altura da cintura, em explosões sangrentas de tripas e outras vísceras. Em pouco tempo, nossos inimigos eram prisioneiros ou tinham escapado. E um bom número deles estava morto.

No grande salão, o velho Hakon nos confrontou.

- Se meus outros quatro navios, e a maioria dos meus homens, não estivessem em uma missão de pilhagem, nossos lugares estariam invertidos, Ortho – disse o ancião.

- Rá, rá! – Ortho riu ruidosamente. – Palavras ousadas para um prisioneiro! Se todos os seus navios e seus barachos estivessem aqui, eu teria triunfado da mesma forma!

Hakon o contemplava com ódio. Bem naquele momento, uma garota, a filha do velho, entrou correndo no salão, sendo perseguida por alguns dos nossos homens. Disparou até seu pai e se agarrou nele.

Ortho olhou para ela.

- Uma bela garota – afirmou. – Ficará comigo.

- Não ficará não! – bradou Hakon.

- E por que não? – questionou meu comandante. – Sou Ortho Vermelho. O que eu desejo, eu tomo. Então disse astutamente: – O que pagará pela liberdade da garota e a sua?

O ancião estava derrotado e sabia disso. Deu uma ordem a um criado e, em pouco tempo, escravos adentraram o salão, carregando cestos e fardos de tesouros. Deixaram tudo aquilo na mesa comprida. Havia ornamentos dourados: pulseiras, braceletes, anéis... Havia pilhas de moedas de ouro e prata... Havia armas e armaduras suntuosas, e ricas vestes.

- É a riqueza que acumulei após anos de pilhagens e saques – falou Hakon. – Por Jhil, pegue tudo e vá embora.

- Sim, faremos isso – disse Ortho friamente. – É um belo dote por sua filha, Hakon.

A garota gritou e se agarrou ainda mais ao pai. Embora ela tivesse todas as características físicas de uma argoseana, seus grandes olhos suplicantes eram violetas.

O velho olhou para Ortho:

- Canalha! – bradou. – Levará todo esse grande tesouro e ainda quebrará seu voto? É um perjuro!

- Não – retorquiu Ortho friamente. – Não fiz voto algum, e você ficará livre, Hakon.

Naquele momento, o segundo imediato surgiu correndo na casa.

- Fujam, fujam! – berrou. – Os navios de Hakon estão sobre nós! Para o mar!

Num instante, tudo caiu no caos. Os piratas de Ortho se apressaram para a porta do grande salão, libertando seus prisioneiros e agarrando os tesouros que mais facilmente podiam saquear. Os guerreiros do ancião e seus criados avançaram contra os homens de Ortho, com urros e gritos de guerra, tentando pegar suas armas de volta.

Eu havia me aproximado da extremidade da mesa onde o tesouro estava, e era o homem mais próximo dele. Os criados saltaram como tigres sobre Ortho, e Hakon e a garota recuaram até o fundo da propriedade.

- Conan – retumbou o chefe dos invasores, afastando seus agressores de todos os lados com giros sangrentos de sua enorme espada. – Pegue a garota e leve-a para longe daqui!

- Lakur, agarre a menina, e você aí também! – gritei, correndo em direção à mesa. Hakon, recuando, colocou a filha atrás de si e berrou para que seus homens se reunissem ao seu redor. Não me importei com ele. Não tinha tempo para garotas, quando havia saque a ser recolhido. Agarrei uma cesta cheia de tesouros e fugi pela porta do local.

Os argoseanos do velho tentaram me agarrar e golpear com suas espadas e lanças, mas me esquivei, evitando todos os ataques. Saí da moradia e corri pela encosta, em direção ao nosso navio, com o resto dos homens de Ortho – inclusive ele.

Pois podíamos avistar quatro galés cortando as águas e, em menor número como estávamos, só desejávamos embarcar em nosso navio e fugir para o oceano. Nem mesmo Ortho queria ficar e lutar contra tais perspectivas. As embarcações tentaram nos cercar na baía, mas conseguimos escapar para o mar aberto. Por muitas léguas, elas nos seguiram, mas finalmente deram meia-volta e navegaram de volta até a enseada da ilha de Hakon.

Todos os homens de Ortho estavam com um humor terrível; e Ortho não menos. Aqueles piratas não tinham o costume de fugir de seus inimigos, e tínhamos lutado e corrido sem levar nada. Sorri, enquanto observava aqueles guerreiros.

- Nada de saque – disse, furioso, um kushita por nome Akkan. – Nem sequer uma bugiganga ou uma moeda.

- Podíamos ter enchido o Pelicano de pilhagem, se Ortho não tivesse tentado levar a garota – resmungou um stígio.

Essa era a conversa que me agradava ouvir. Eu havia escondido meu cesto com o tesouro embaixo de algumas peles. Então, as ergui e coloquei aquilo tudo no meio do convés. Todos me olharam perplexos.

- Aqui temos algumas bugigangas – eu disse. – Se eu tivesse obedecido à ordem de Ortho e ido atrás da menina, não teríamos isso agora.

Peguei do cesto uma adaga de cabo dourado numa bainha de ouro, e enchi a palma da minha mão de pulseiras e anéis.

- Dividam o resto entre vocês – falei, com um aceno de mão em direção ao balaio.

- Por Adônis! – praguejou o asgaluniano Lakur, com assombro. – Há muito não me encontro com tamanha generosidade! A não ser que meus olhos estejam me enganando, há nesse cesto uma bainha de prata que eu adoraria possuir.

Observei-os com um leve sorriso no rosto, enquanto, proferindo votos sinceros à minha pessoa, eles dividiam o saque. O respeito e a estima que tinham por mim aumentaram muito, como eu havia planejado.

Então surgiu o primeiro imediato, anunciando que Ortho ordenava que eu me apresentasse diante dele imediatamente. Avancei até o tombadilho superior, onde nosso comandante se encontrava. Sua ira era enorme, e ele amaldiçoava os barachos em geral e Hakon em particular. Olhou para mim com fúria, e sua mão segurava o cabo da espada.

- Eu ordenei que pegasse a garota e fugisse com ela – disse com raiva. – E você me desobedeceu!

- Para que conseguisse escapar com um pouco do tesouro de Hakon, e assim, os homens não dissessem que o ataque fora por nada e que tínhamos fugido de mãos vazias.

- E de que isso importa? – ele trovejou, desembainhando a espada. – Você deve obedecer!

Ele já ia descer a lâmina sobre meu crânio, quando desembainhei minha lâmina e detive seu golpe, pronto para matá-lo e enfrentar a ira da sua tripulação. Súbito, o vigia gritou, do alto do mastro:

- Navio zíngaro à vista!

Aquele grito quebrou a tensão, e nos preparamos para o ataque. O Pelicano seguiu diretamente para aquela embarcação, impulsionado pelas águas graças às longas hastes – com as quais Ortho equipara o navio, após tê-lo tomado – nas mãos dos remadores. Nós nos amontoamos nas laterais do navio, brandindo nossas armas e urrando selvagens gritos de guerra. Ortho ia na proa do Pelicano, com sua barba ruiva soprada pelo vento, e a voz trovejando brados de batalha e maldições. Irascível e imprevisível como os ventos do mar, a enorme espada brilhava em sua mão.

Após uma breve troca de flechas – a qual exterminara um terço de nossa tripulação, e metade da tripulação zíngara, equilibrando, deste modo, a quantidade de piratas em ambos os navios –, as embarcações se chocaram com um estrondo e, em um momento, estavam presas uma à outra por ganchos de ferro rapidamente manejados. Com as laterais apinhadas de guerreiros, o barulho de espadas e escudos se chocando cresceu, enquanto cada tripulação tentava abordar o navio inimigo.

Por um tempo, o combate nos flancos dos navios permaneceu sem vencedores, mas, com um grito de fúria frenética, Ortho abriu espaço com um terrível golpe de espada, e, deixando um rastro de sangue, miolos, tripas e de cabeças decepadas à altura das bocas, saltou pela amurada direto no convés da embarcação inimiga.

Eles vacilaram por um momento e recuaram poucos passos, o que permitiu que um obstinado ataque dos nossos possibilitasse que alguns de nós transpuséssemos a amurada, e se juntassem a Ortho no deque. Num segundo, a tormenta da batalha passou dos flancos das embarcações ao convés do navio zíngaro.

O lugar se tornou um mar revolto de espadas cintilantes e piratas em combate (pois os bucaneiros zíngaros, apesar de odiarem outros piratas, também eram foras da lei). Ortho e Driago – este último, o comandante do navio zíngaro – se esforçavam para chegar um ao outro, e seus homens tentavam ajudá-los, mas a luta era cerrada demais.

Um homem mal conseguia achar espaço para brandir a espada, e as lanças, inúteis a tão curta distância, haviam sido descartadas. Uma lâmina se chocou contra meu escudo erguido. Quem a brandia era Driago. Estoquei, mas minha arma foi defletida pelo escudo zíngaro. Eu, por minha vez, me esquivei da espada do guerreiro, ao que ele tornou a atacar.

Então, num novo avanço, minha lâmina abriu um corte no braço de Driago, quando ele tentou apará-la. Um segundo depois, a tormenta da batalha agiu e separou o zíngaro de mim. O combate se intensificava no tombadilho superior. Vi o primeiro imediato escorregar e tombar no deque. Um dos bucaneiros se adiantou com a espada erguida. Com um golpe descendente, parti o crânio do zíngaro e, em seguida, levantei o imediato com a outra mão. O adversário nos pressionou ainda mais, mas lutamos costas com costas, até que conseguimos algum respiro.

Ortho e Driago se encontraram na proa do navio. Ao redor deles, os piratas em batalha recuaram, abrindo espaço. Os dois chefes guerreiros eram similares, não fisicamente, mas ambos eram lutadores selvagens e habilidosos. Suas espadas giravam, brilhando no ar, e se chocavam com ruídos ensurdecedores, quando os dois atacavam e aparavam.

Para a frente e para trás, eles oscilavam e avançavam, e, golpe após golpe, cortavam e se defendiam com a rapidez de um raio. Então, a pesada espada de Driago colidiu com o elmo de Ortho, ao mesmo tempo em que este, com uma única estocada veloz, cravou sua lâmina no colete de malha do adversário. Driago abriu os braços e tombou para trás, caindo sobre a amurada do navio, com sangue lhe escorrendo do coração perfurado. Ortho, por sua vez, desabou no convés, deixando sua espada cair de seus dedos já sem vida, enquanto sangue escorria do seu nariz e do corte em seu capacete.

Por um momento, tanto os bucaneiros quanto a horda de Ortho ficaram imóveis, pasmados com o ruir de ambos os chefes. Foi então que vi minha chance! Adiantei-me, balançando minha espada.

- Vamos, cães! – gritei o mais alto que pude. – Ortho está morto! Tomem o convés! Mais um pouco e seremos vitoriosos!

Um grito de fúria se ergueu dos piratas. Aos gritos, eles avançaram com tudo, fazendo com que os bucaneiros recuassem cada vez mais, até que ficassem encurralados contra a amurada. Indiferentes a quaisquer ferimentos que não fossem imediatamente fatais, os zíngaros lutavam como demônios, mas nós os abatíamos e os atirávamos pela borda do navio, até que saltei adiante e detive nossos homens. Tive que usar meus punhos e a lateral de minha espada, mas o primeiro imediato compreendeu meu objetivo, me ajudou e, em pouco tempo, os piratas do Pelicano relutantemente recuaram e baixaram as armas. Cerca de vinte zíngaros estavam encostados à amurada; suas espadas estavam vermelhas e danificadas, e as armaduras em pedaços. No entanto, a típica coragem indomável dos bucaneiros era visível em suas feições. Não demonstravam medo algum ao nos encararem.

- Rendam-se – eu disse. – É inútil lutar. Estão cercados por muitas vezes o seu número, e Driago, seu chefe, está morto. Se largarem as armas, serão poupados – prossegui. – Ofereço-lhes a opção de ingressarem em nossa tripulação.

Felizes, aqueles renegados zíngaros se juntaram à minha horda heterogênea, enquanto os mortos – incluindo Ortho e Driago – eram jogados ao mar.



2) A Costa de Zabhela e o Continente Sem Nome


Agora sob meu comando, os piratas do Pelicano, quando saqueavam aldeias e navios mercantes – e quaisquer embarcações onde não houvesse guerreiros –, poupavam as mulheres, os velhos e as crianças.

Semanas depois da morte de Ortho e Driago, desembarcamos na costa de Zabhela, onde pretendíamos saquear a parte externa daquela cidade. A vida fluía seu curso habitual do lado de fora dos muros daquela cidade costeira de Kush. Gigantescos homens negros se agachavam nas portas de seus casebres de sapé, ou se encostavam indolentemente à sua sombra. Crianças brincavam ou lutavam na areia, rindo e gritando de forma estridente. Nas praças – que, de praças, só tinham o nome –, os negros regateavam e pechinchavam por bananas, peixes, cerveja e ornamentos de latão marchetado. Ferreiros se inclinavam sobre minúsculos fogos de carvão, martelando laboriosamente pontas de lanças. A revolta dos gallahs, anos atrás, havia colocado os negros no poder, mas infelizmente não acabara com a desigualdade econômica daquele país, graças à ambição de quem substituíra os chagas no trono do país. De qualquer modo, talvez a relativamente recente subida de Zoraide ao trono do país não tivesse mudado totalmente aquele quadro para melhor, mas ainda viesse a melhorar tal situação no futuro.

Mas aquilo não me preocupava no momento. Súbito, houve um tropel de cascos, e um exército de kushitas gallahs saiu da cidade, abrindo caminho entre a multidão até a praia. Eram 500 soldados equipados para o combate corpo a corpo: lanceiros protegidos por capacetes, armaduras e escudos metálicos, e com pontas de aço em suas lanças, organizados numa falange compacta. O general cavalgava logo atrás deles, com as mesmas proteções de metal, porém usando uma espada embainhada à cintura, ao invés de uma lança na mão.

Já desembarcados na praia, antes mesmo daquele exército sair dos portões de Zabhela – e o povo humilde ali presente já tendo se mandado, para não levar a pior –, organizamo-nos em forma de cunha e disparamos nossas flechas. Os kushitas ergueram seus escudos, e poucos morreram. Logo, largamos nossos arcos e nossa cunha avançou, abrindo impiedosamente a falange gallah, até dispersar aquele exército, e começarmos a lutar homem a homem.

Um dos soldados zabhelanos acertou seu escudo em meu rosto, mas me esquivei de dois giros de espada do kushita e lhe atravessei armadura e abdômen até a espinha, com minha lâmina. Em seguida, avistei um companheiro aquiloniano, Titus, diante do general do inimigo –, o qual era um homem de mais de dois metros de altura, páreo para três homens civilizados ou um urso selvagem. O gallah estava desarmado, sua lança havia sido quebrada em pedacinhos, e ele estava de tal modo possesso com a derrota de sua falange e a morte de seu cavalo, atingido por uma de nossas flechas, que não teve a presença de espírito de recorrer à espada que levava dependurada em sua cintura.

Titus o atacou e foi rechaçado pelo escudo do gigante, que o usava como uma arma afiada como uma acha. O primeiro golpe do kushita estilhaçou o escudo do aquiloniano. Titus tentou atingi-lo com a espada na altura do queixo, mas um segundo golpe a arrancou de sua mão. O jovem loiro ficou, então, sem defesa diante daquele demônio. Quando o gigantesco kushita ergueu o escudo numa intenção degoladora, eu surgi ao lado de Titus e atirei minha espada como se fosse uma lança, que atingiu o gigante negro bem embaixo do nariz; o aço esmagou seus dentes, atravessou-lhe o maxilar e penetrou em sua garganta, firmando-se ali e projetando-se para fora da face como uma flor de aço em um jardim de carne e ossos.

Mas nem isso impediu o gigante ou o deixou mais lerdo. Como uma criatura animada por magia, ele avançou velozmente em minha direção, prendendo suas mãos como tenazes em volta do meu pescoço. Mas o aquiloniano agarrou o oficial gallah por baixo, fiz o mesmo por cima, e assim o derrubamos. Titus agarrou o que restara de sua lança e enfiou na barriga do inimigo, logo abaixo do corselete de bronze. Depois, pegou o resto de uma lança deixada por alguém na areia e jogou todo o seu peso nela, atravessando a virilha do gigante negro até atingir o solo, prendendo-o ali. Peguei a espada do kushita e extirpei a metade de sua cabeça, atravessando o bronze de seu elmo. Ainda assim ele se levantou.

- Demônios de Crom! – gritei.

Então Titus pegou sua espada, que estava caída e esquecida naqueles momentos de terror, e atravessou o fígado do gigante negro, retirou-a e enfiou-a desta vez onde pendia o sexo do homem. O titã olhou direto para o aquiloniano, berrou uma vez, depois caiu como um saco sobre a areia ensangüentada. Imóvel!

A seguir, saqueamos o que pudemos dos bens que a população pobre de Zabhela havia deixado para trás, reavemos nossas flechas e voltamos ao navio. Durante o saque, eu dei ordens para que, além de pouparem qualquer inocente que, por acaso, encontrassem, não saqueassem tudo – eu não queria ser tão canalha com um reino agora governado por uma amiga minha.


***


Meses se passaram, quando chegamos a um local bem distante a oeste – aparentemente um continente sem nome, no lado ocidental do mundo, e vagamos por ele e por suas ilhas adjacentes. Numa delas, eu e meus homens vimos que sua ampla praia branca se inclinava suavemente, da água até uma ondulante vastidão de árvores gigantescas. Parecia não haver vegetação rasteira, mas os enormes troncos encontravam-se tão próximos, que somente a minha visão conseguia penetrar na selva, vislumbrando o que parecia ser uma cidade...

Mesmo assim, prosseguimos pela floresta, ora perdendo de vista a cidade à medida que os topos das árvores obstruíam a visão, ora vendo-a novamente. Por fim, chegamos à margem baixa e inclinada de uma larga laguna azul, e a inteira beleza de uma paisagem irrompeu sobre nossos olhos. Da margem oposta, o campo se erguia em longas e suaves ondulações, que quebravam como grandes ondas lentas, aos pés de uma cadeia de colinas azuis, a poucos quilômetros de distância. Estas largas protuberâncias eram cobertas por profunda grama e vários arvoredos, enquanto a quilômetros de distância, de outro lado, se via, afastando-se numa curva distante, a faixa de floresta espessa, a qual rodeava a ilha inteira. E, entre aquelas oníricas colinas azuis, pairava aquela antiga cidade misteriosa, com seus muros brancos e torres azuis-safira entalhadas contra o céu da manhã. A sugestão de grande distância havia sido uma ilusão.

Havíamos subido as longas inclinações elevadas, e não estávamos longe dos muros que se erguiam enormemente para o alto. Os muros pareciam de mármore e, com suas ameias desgastadas e delgadas torres de vigia, sobrepujavam grandemente cidades como Khemi, Numália e Akbitana. Um largo e branco caminho sinuoso subia desde os níveis mais baixos até o altiplano diante dos portões e, enquanto subíamos este caminho, sentíamos centenas de olhos escondidos, fixos em nós com intensidade feroz. As muralhas pareciam abandonadas; poderia se tratar de uma cidade morta. Mas o impacto daqueles olhos, que miravam fixamente, era sentido.

Porém, o intrépido bando de saqueadores, que eu liderava, era suficiente para levar a pilhagem comigo. Subitamente, os enormes portões giraram para dentro, e uma estranha multidão foi mostrada. Olhávamos para um cortejo de esplendor bárbaro. Uma multidão de homens altos e esguios, de pele marrom e aparência stígia, se encontrava nos portões. Suas únicas vestes eram tangas de seda, cujo refinado trabalho contrastava estranhamente com a quase nudez daqueles que as vestiam. Altas e ondulantes plumas enfeitavam suas cabeças, e braceletes e tornozeleiras de ouro e prata, incrustados com brilhantes pedras preciosas, completavam-lhes a ornamentação. Não vestiam armadura alguma, mas cada um carregava um leve escudo no braço esquerdo, feito de madeira dura, bem polida e reforçada com prata. Suas armas eram lanças de pontas delgadas, leves machadinhas e finas adagas, tudo com lâminas de aço refinado. Evidentemente, esses guerreiros confiavam mais na rapidez e habilidade do que na força bruta.

Aqueles homens marrons abriram sua formação em um leque fatal, uma meia-lua que se abriu como a bocarra de um monstro marítimo. Eu e meus piratas, ao contrário, assumimos a boa e velha formação em cunha, tal qual a cabeça triangular de uma serpente. Então, aproximamo-nos numa velocidade surpreendente, e logo ecoou o choque da batalha. O caos e o pandemônio imperavam, e os gritos subiam numa cacofonia ensurdecedora.

Com minha espada empunhada, avancei sobre dois daqueles guerreiros, com seus escudos levantados, e os estraçalhei com meus poderosos golpes. Usávamos nossas flechas, impulsionadas por grandes arcos, e chapinhávamos a terra, banhada em sangue. A matança prosseguiu por vários minutos! Sem tréguas, sem piedade!

Eu estava todo coberto de sangue coagulado; meu corpo, arranhado e repleto de ferimentos em sua maioria leves. Minha espada já não era mais de um aço azulado, mas sim uma lâmina escarlate... rubra de sangue! Meus cabelos estavam empastados de suor, sangue e catarro do inimigo. Mas eu continuava a lutar, empilhando a meus pés os cadáveres inimigos. Nossa vantagem era óbvia: apesar de alguns deles serem mais ágeis que meus piratas, tínhamos a vantagem dos elmos e das armaduras de cota-de-malha. Vi um jovem marujo ser atacado por um lanceiro gigantesco. O jovem caiu de costas na areia e seu algoz ergueu a lança para trespassá-lo, mas a sorte ou o destino fez com que o homem escorregasse em uma poça de sangue quando avançava em seu golpe final. O aquiloniano ergueu sua espada e perfurou a barriga do homem. Ergueu-se, então, vacilante, apenas para ver os homens marrons baterem em retirada para sua cidade. À nossa volta, a morte fizera uma bela colheita; cadáveres, corpos estraçalhados e membros decepados se espalhavam pela praia.

Era a deixa para invadirmos os portões, antes deles serem fechados, e saquearmos a cidade. Mas, quando achávamos que aquela cidade seria nossa, um grupo de centenas de gigantescas aves bípedes atravessou correndo a clareira, de modo que eu e meus companheiros corremos floresta adentro, de volta ao nosso navio, enquanto os portões eram fechados. Logo, o vento atingiu as velas, e o Pelicano seguiu seu caminho para o mar, em direção a outra ilha.



3) O Povo Pintado


Dias depois, já devidamente lavados, limpos e alimentados, chegamos a outra ilha daquele mesmo continente desconhecido, e nela vimos duas tribos em guerra. Os invasores vieram em canoas de proa alta e haviam atracado no litoral, enquanto os moradores daquela ilha – homens negros e de pele pintada, igual aos incursores – resistiam ao seu avanço, postados no alto de uma elevação rochosa, logo após a praia.

Agindo meio impulsivamente, dei ordem aos meus piratas para atirar suas flechas nos invasores. Após lançarmos setas certeiras desde a proa do Pelicano, nós desembarcamos, pegamos novamente nossos arcos, e as flechas assobiaram em nuvens pela praia. As filas traseiras foram desfeitas, enquanto a fila dianteira daquela horda recuou vacilante, ante as lanças dos defensores da ilha; e logo se esticaram e voltaram de novo. Ajudamos os defensores a quebrarem um ataque após outro, e um ataque após outro se lançou pelas passagens com ferocidade cega. Os atacantes, agora divididos entre dois fogos, não usavam armadura, e nossas longas setas penetravam os escudos cobertos de pele como se fossem de pano.

Eles não sabiam usar arco e flecha. Ao chegarem suficientemente perto de nós, atiraram suas lanças numa chuva uivante e alguns dos nossos morreram. Mas poucos deles chegaram a um tiro de lança, e menos ainda chegaram ao fim das passagens ou à água da praia. Lembro-me de um guerreiro enorme, que chegou arrastando-se na praia, feito uma serpente, espuma rubra escorrendo de seus lábios e as extremidades emplumadas das nossas flechas sobressaindo de seu ventre, costela, pescoço e membros. Uivava como um cão raivoso, e sua mordida agonizante arrancou a sola do calcanhar de minha bota, enquanto eu transformava sua cabeça numa ruína vermelha a pisadas.

Uns poucos conseguiram atravessar a chuva cegante de flechas e chegaram ao combate corpo-a-corpo, mas ali não lhes foi muito melhor. Nós, piratas, éramos muito mais habilidosos no combate homem a homem, e nossas armaduras desviavam suas lanças, enquanto nossas espadas e machados trespassavam seus escudos de madeira como se fossem de papel. Mas eram tantos que, se não fosse pelo fato de estarem divididos entre duas forças, todos os piratas teriam morrido na praia, e os defensores nos escarpados.

Nós nos mantivemos na praia durante toda aquela longa tarde de verão, até que, vazias nossas aljavas e desgastadas as cordas de nossos arcos, com os desfiladeiros e a praia cheios de cadáveres pintados, lançamos fora os arcos e enfrentamos os invasores mano a mano, lâmina contra lâmina. Haviam morrido como moscas nas passagens e na areia, embora muitos deles se encontrassem vivos, e o fogo de sua raiva só fazia arder com mais ferocidade, devido aos corpos, emplumados de flechas, que jaziam sob nossos pés.

Lançaram-se até nós, perseguidos pelos defensores daquela ilha, porém rugindo como uma onda, golpeando com lanças e com maças de guerra. Enfrentamos-nos num redemoinho de aço, fendendo crânios, afundando peitos, decepando cabeças, e ceifando membros de seus corpos e de seus ombros, até a praia se tornar uma confusão onde os homens, a duras penas, conseguiam conservar o equilíbrio nos caminhos e praia inundados de sangue e abarrotados de cadáveres.

O líder deles, de pensamento mais rápido que seus seguidores, havia reagido instantaneamente ao seu instinto de luta, matando piratas e defensores naquela ilha. Ao me ver investir contra ele, o chefe dos invasores ergueu o escudo – cuja madeira era de qualidade superior à de seus comandados – para aparar minha espada que girava para baixo, e contra-atacou com uma estocada feroz, a qual tirou um pouco de sangue do meu pescoço, enquanto eu me esquivava para um lado.

Agora lutávamos em silêncio sombrio, movendo-nos com a rapidez segura e infalível de tigres. O negro era mais alto que eu, e nossos grandes músculos se emaranhavam, ondulavam e enroscavam devido aos nossos esforços hercúleos. A ação era desorientadora, quase cegando o olho que tentasse acompanhá-la.

Repetidas vezes, eu mal evitava a arremetida da grande lança; e, repetidas vezes, o líder dos invasores aparava em seu escudo um golpe que, de outro modo, o teria cortado em pedaços. Mas eu, repetidamente, me esquivava – às vezes, pulando para um lado – das estocadas selvagens, ou desviando a lança para um lado com minha lâmina. E eu despejava golpe após golpe, com minha espada, rasgando a pele do escudo em tiras, até este se tornar pouco mais que uma estrutura de madeira, através da qual, deslizando numa estocada semelhante à de um relâmpago, minha espada tirou o primeiro sangue ao arranhar a carne que cobria as costelas do chefe negro.

Com isso, ele rugiu como um leão ferido, e como um leão ferido, ele saltou. Arremessando o escudo em direção à minha cabeça, ele lançou todo o corpo gigante por trás do braço que dirigia a lança ao meu peito. Os músculos se sobressaíam em feixes palpitantes no seu braço, quando ele atacou. Mas eu me esquivei, pulando para um lado, e, enquanto a lança me passava sob a axila, fiz um corte que não encontrou escudo no caminho. Minha espada era um tremular cegante de aço, terminando seu arco num rangido de açougue. O líder dos invasores caiu como uma árvore e jazeu imóvel. Sua cabeça havia sido separada do corpo, num jato sangrento de minha lâmina.

Um grito gemente se ergueu dos invasores e, pela primeira vez, fraquejaram. Seu rei havia sido o fogo que lhes unira, como uma sentença a seu destino, durante o dia inteiro. Desfizeram repentinamente suas fileiras, e eles fugiram pelas laterais dos desfiladeiros. Seguimos-nos até a mata, agora acompanhados pelos agradecidos guerreiros da ilha, matando os incursores como se fossem gado.

Logo, só haviam cadáveres pintados na praia, nas águas e nas matas; mas, nos desfiladeiros, onde o combate fora mais feroz, havia poucos nativos mortos, assim como não muitos piratas mortos aqui na praia. Do restante de nós, poucos eram os que tinham alguma marca ou ferimento grave.

Que matança, por Crom! O sol descia no horizonte, quando, com o coração alegre por causa de nossas vermelhas façanhas, fomos bem-acolhidos pelos negros aos quais havíamos nos aliado, ganhando tesouros, como âmbar cinza, cocos, dentes de baleia e coral; além de mogno, peles de leopardo, ouro virgem, presas de elefante e minérios de cobre – estes últimos, bastante parecidos com os que eu vira na Costa Negra. Segundo o chefe da tribo, aqueles tesouros eram comercializados por eles com um povo de pele marrom, que vivia numa cidade dentro de um golfo.

Ao cair da noite, os cadáveres dos nossos inimigos foram lançados no mar, enquanto os dos meus piratas e os do povo que defendi eram enterrados. Logo, fogueiras foram acesas na areia da praia – típicas fogueiras de praia, feitas com galhos secos e esbranquiçados, cujas chamas ardiam azuis e verdes, por causa do sal marinho.

Durante o banquete, feito em nossa honra na tribo que ajudamos, fomos servidos com pratos de bambu com comida – carne fumegante, batatas-doces assadas, espigas de milho, grandes pedaços de pão nativo –, e vasos de ouro batido, cheios de cerveja nativa, à qual meus piratas preferiram consumir com moderação. Mas matar me dava muita sede, e eu tinha mais resistência a bebidas alcoólicas do que os civilizados, de modo que bebi bastante daquela cerveja sem me embriagar. Aliás, pude perceber grandes semelhanças entre a comida daquele povo e a comida dos bamulas, aos quais eu havia liderado anos atrás – bem como uma grande semelhança física daquele povo, tanto com os bamulas, quanto com o povo da Costa Negra.

Belas dançarinas nativas, de suadas peles cor de ébano, nos foram oferecidas como companheiras de cama. Uma delas – uma belíssima mulher de meia-idade e abundantes cabelos crespos – tinha seios bem longos e delgados (um atributo pouco comum entre as nativas daquela ilha, como pude observar durante a festa em nossa homenagem) e, por isso, era bastante admirada e cobiçada pela maioria dos homens daquela tribo, de modo que os poucos a quem ela permitia possuí-la se sentiam honrados em tê-la nos braços – além de (assim como ela) terem grande prestígio na ilha.

Deste modo, aquela linda viúva, mãe de dois guerreiros adultos e de três garotas adolescentes, me foi oferecida – na verdade, se ofereceu – para partilhar minha cama, e eu não a recusei. Embora, na minha adolescência, eu preferisse seios firmes, meu gosto a este respeito começou a se diversificar na minha época de líder dos zuagires. Aqueles incrivelmente longos, delgados e trêmulos seios de ébano, iguais aos de uma bamula que eu levara para a cama anos atrás, tremulavam como pêndulos de seda ao sabor da brisa noturna que adentrava a cabana para onde fomos; e aquelas lindas axilas, de abundantes pêlos negros e crespos, exalavam um fortíssimo cheiro de suor por todo aquele quarto.

Excitado com o balanço daquele busto e com aquele odor natural, forte e penetrante, suguei-lhe as longas e lindas mamas flácidas e enrugadas, desde as aréolas pretas até as axilas peludas; e, sentindo-lhe a negra mata pubiana umedecida e lubrificada por minhas carícias em seus seios e axilas, eu a penetrei fortemente, enquanto gemíamos de prazer e desejo, até termos um delicioso orgasmo juntos.


Após dois dias de ócio e prazer, o chefe daquela tribo nos informou que sua filha se encontrava prisioneira e escravizada, na ilha de onde vieram os homens que havíamos matado, e que eles os haviam atacado em busca de mais escravos e saques. Partimos para lá em nosso navio. Alguns dos melhores guerreiros da ilha que salvamos nos acompanharam, na nossa missão de resgate. Desembarcamos naquela outra ilha, sob o manto da noite, e atacamos aquela tribo de surpresa. Um dos nativos daquela ilha arremessou sua lança em minha direção, ao mesmo tempo em que atirei meu punhal. Sua lança só fez atingir meu rosto de raspão, enquanto ele desabava para a frente, com minha faca enfiada no coração. A jovem filha do chefe tribal estava numa cabana, na parte central da ilha. Seus belos olhos negros estavam arregalados; seu lindo rosto de ébano, meio coberto por seus cabelos trançados, estava empalidecido pelo terror e seus braços macios se esticavam em minha direção, suplicando e implorando, enquanto um dos selvagens a segurava com um sorriso libidinoso no rosto.

Uma névoa vermelha de fúria me envolveu e, desembainhando minha espada, avancei selvagemente contra aquele homem. Virando-se, ele gargalhou ruidosamente, mudou a posição da jovem que se debatia e, prendendo-a indefesa sob um dos poderosos braços, ergueu sua lança com outro, e a arremessou em minha direção. A ponta de sua lança me atingiu apenas o cabelo, tirando-lhe uma mecha, e em seguida, arremessei-lhe com a minha mão esquerda um outro punhal certeiro no coração. Com um berro, ele cambaleou para trás e tombou morto com o rosto virado para cima, e a garota se libertou de seus braços enquanto ele caía.

Eu a segurei e empurrei em direção ao navio. Enquanto meu primeiro imediato a levava até o Pelicano, brandindo sua espada a torto e a direito contra os nativos que a raptaram, eu me lancei para dar cobertura aos meus piratas, disparando todas as flechas das quais dispunha em minha aljava. Matamos quem tentasse nos matar em nosso caminho, e queimamos todos os barcos da ilha. Poupamos somente as mulheres, os velhos e as crianças. Trouxemos a filha do chefe de volta ao seu lar e fomos recompensados com uma nova festa, igualmente regada a comida, bebida e mulheres, na qual eu, mais uma vez, fui para a cama com a linda mulher que me escolhera dias antes.

Dias depois, eu e meus homens nos despedimos alegremente daquele povo guerreiro e hospitaleiro, e seguimos viagem para o leste, de volta às costas e navios que estávamos acostumados a saquear. A mulher dos lindos seios compridos me beijou sôfrega e desesperadamente – um beijo triste e intenso de despedida – e chorou, amparada por duas de suas filhas. Dois guerreiros daquele povo negro se juntaram à nossa tripulação, enquanto Akkan de Kush e Lakur de Asgalun, encantados com as lindas mulheres nativas e cansados da vida de pirataria, resolveram morar com aquele povo. Então, voltamos a navegar pelos mares a leste, onde havia mais piratas para se juntarem a nós, e mais navios e costas a serem saqueados.



4) A Costa de Shem


Dois anos se passaram, desde que embarquei no Pelicano pela primeira vez – dois anos marcados por saques a diversos navios e áreas costeiras. Era um dia de inverno intenso. Uma ventania cortante açoitava o Mar Ocidental. As ondas rebentavam de um lado a outro do baixo poço do navio, encharcando os remadores. Mesmo aqueles homens, habituados a todas as privações e resistentes como lobos, estavam à beira de sucumbir. Na parte frontal da cobertura, com a mão na proa arqueada, eu forçava os olhos, esforçando-me para perfurar o véu de chuva e de revolta espuma marinha, pulverizada pelo vento.

Eu era mais resistente que um lobo. E agora meu coração me queimava tão ferozmente, que nenhuma tempestade poderia me fazer mal. Após ter passado os últimos meses saqueando Zingara, Argos, Stygia e a Costa Negra – bem como navios de todas as procedências –, eu me aventurava até a costa de Shem, ambicionando saquear Asgalun; mas aquele tempo instável não me permitia.

Súbito, avistei uma forma veloz na névoa.

- Um navio zíngaro! – gritei ferozmente.

Algum viajante que se dirigia ao meu encontro; sem dúvida, suspeitando de minhas pilhagens e não querendo ser pego desprevenido, como aqueles piratas, cujos crânios adornavam os escudos do parapeito do navio.

Com os olhos fixos na sombra que corria, gritei uma ordem para alterar o curso e colocá-la lado a lado. Meu primeiro imediato ousou uma objeção:

- Teremos que pegá-la no vento; se nos desviarmos meio ponto, um mar largo irá quebrá-la em duas.

- O diabo leve o dono dele! – berrei. – Faça como digo, cria do inferno... ali!

As enormes ondas, como cristais de gelo, sacudiam a embarcação como se fosse uma lasca. Subitamente e sem o menor aviso, uma proa com esporão avultou para fora da névoa cadente, a bombordo. Os homens do Pelicano viram os elmos morions e os ferozes rostos morenos dos zíngaros, com a bandeira dourada de seu país no mastro, e que se alinhavam no parapeito, gritando e brandindo suas armas.

- Corram lado a lado e embarquem nele! – gritei, enquanto uma nuvem de flechas assobiou pelo vento uivante.

O Pelicano pulou para a frente, como um cavalo esporeado, mas no instante seguinte, o homem mais forte no remo, um gigante stígio-shemita com a marca de um escravo foragido no rosto, caiu com uma flecha no coração, e a cabeça do remo resistiu aos esforços de seus colegas. Gritei ferozmente, e outros se lançaram para diante, mas a galera, fora de controle, mudou de direção, se sacudiu e tremeu ao impacto de um mar alto, que arrastou dez homens à água, e a caravela zíngara ia de encontro a ela.

O bico de ferro dos bucaneiros não atacou em cheio, senão teria tosquiado o parapeito; mas abriu um grande rasgo próximo à proa e retalhou os lados, com um ensurdecedor estilhaçar de remos. Os navios ficaram quase emparelhados, e os parapeitos estavam apinhados de figuras uivantes e cortantes, que matavam e morriam num vermelho holocausto de ódio.

Homens morriam feito moscas ao longo das amuradas, onde espadas despedaçavam elmos e crânios, e espadas se quebravam em peitos encouraçados. Mas o imediato me viu, de onde eu talhava e cortava como um demônio faminto por sangue, e gritou:

- Os mares nos rasgarão em pedaços a qualquer momento, e o Pelicano está afundando sob nossos pés!

- Amarrem-nos uns aos outros! – gritei, com os olhos inflamados e a espuma manchando-me os lábios, minha loucura latente arrebentando todas as amarras. – Amarrem-nos amurada com amurada, e arrastaremos estes suínos ao Inferno conosco! Afundaremos juntos, e mataremos enquanto eles se afogam!

E, com minhas próprias mãos, arremessei os primeiros ganchos de abordagem. Os zíngaros perceberam-me as intenções e tentaram se afastar, mas era tarde demais. Amarradas umas às outras, não havia mais como controlar qualquer uma das embarcações. Estavam à mercê dos ventos e ondas que as agitavam e precipitavam-nas vertiginosamente para diante, enquanto as tripulações se juntavam numa última e desesperada luta corpo-a-corpo. Cortando e retalhando num rubro cataclismo de inferno uivante, eu estava vagamente ciente de que um grande bramido rompeu a algazarra, como ondas se chocando numa costa rochosa. Mas a loucura berserk da matança estava em mim e em todo o resto, e eles não pararam de uivar e brandir suas espadas e machados vermelhos, enquanto as duas embarcações atormentadas, sem mastros, sem proas, e com remos e vigas quebradas, eram arremessadas violentamente através das rebentações, para se espatifarem na costa espumante.



Como em outros naufrágios, somente eu sobrevivi. Por que, eu não sei. Em meio ao tumulto, a escuridão caiu sobre mim, e acordei na cabana de um humilde casal de idosos, alguns quilômetros ao sul de Asgalun. Algum capricho das ondas me lançara à praia, enquanto todo o restante morreu. Mas não fui o único lançado à praia. Muitos outros haviam sido jogados pelo mar, mas só eu tinha uma fagulha de vida em mim. O resto morrera por causa dos ferimentos, ou afogados na água fria. Meu escudo e espada estavam agarrados tão firmemente em minhas mãos, que o casal não conseguiu soltá-los; e eu ainda os agarrava quando voltei a mim. Aquele casal bondoso cuidou de mim e, quando me recuperei totalmente, eu agradeci, me despedi deles e cavalguei para leste.



FIM

 

 


Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Osvaldo Magalhães de Oliveira, de Brasília – DF, e Marco Antonio Collares.

 


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