Um Novíssimo Recomeço... De Volta a Koth


Um Novíssimo Recomeço... De Volta a Koth

(por Fernando Neeser de Aragão)



Stygia, ano 40.000 a.C.


A Princesa Nekhbet era linda, astuta e impiedosa – e a única herdeira do trono da Stygia. Aquele reino, um dia, seria seu para governar. Sem perdão, sem medo, Nekhbet seria venerada como deusa viva. Mas o pai dela teve um filho. Um menino agora herdaria o destino dela. E Nekhbet compreendeu que o poder não era dado – tinha de ser tomado. Jurando vingança, ela decidiu abraçar o Mal. Ela fez um pacto com Set, o arqui-deus dos stígios – um pacto que libertaria as trevas. Nua sobre um altar, ela derramou três gotas de seu sangue numa vasilha de leite, acendeu um incenso, recitou encantamentos lidos num pergaminho tão antigo quanto Tuthamon – o primeiro Rei da Stygia –, e uma múmia criou vida, apareceu atrás dela e lhe deu uma adaga com um rubi na extremidade do cabo. Após isso, a múmia se transformou em pó.

O contato com o cabo daquela adaga fez com que Nekhbet se contorcesse e seu corpo se encheu de hieróglifos. A princesa renasceu como um monstro – não tanto fisicamente, mas na alma – e, com aquela adaga curva, ela abriu a garganta do próprio pai enquanto ele dormia em seu leito e depois fez o mesmo com seu irmão recém-nascido e com a própria mãe – dela e do bebê. Mas o pacto não foi completado. Ela jurou trazer um servo de Set até nosso mundo, no corpo de um mortal, ao beijá-lo e sacrificá-lo num leito. Juntos, ela e o servo do Deus-Serpente se vingariam da humanidade. Mas, no momento em que Nekhbet cravaria sua adaga no peito do homem a quem beijara, ela foi atingida por um dardo de zarabatana no pescoço. Gritando de dor, ela se contorceu ao chão, ao mesmo tempo em que seu amante era morto a golpes de lança. Ela tentou alcançar sua adaga, mas foi agarrada e imobilizada por nobres rebeldes que entraram naqueles aposentos.

Mumificada viva, ele teve seu corpo carregado até os desertos orientais da Stygia, longe de Khemi e de Luxur. Lá, ela permaneceu condenada à escuridão eterna. Mas a morte é uma passagem, e o passado não pode permanecer enterrado para sempre.


1) Koth, sete mil anos depois:


- Guerreiros da cidade de Khorsus! – gritou um feiticeiro stígio, por nome Yamses (e último sobrevivente da horda de Thugra Khotan), nas Montanhas Flamejantes ao norte de Koth, dirigindo-se ao exército do príncipe rebelde Bracus e com o sangue de um carneiro recém-sacrificado a se espalhar sobre o altar. – Que a poderosa Ishtar e o poderoso Jhil entrem em seus corações, e lhes dêem a coragem do leão e a força da cobra! E acendam as chamas da justiça para seu povo!

Os guerreiros – kothianos típicos, de pele morena, corpos esguios e cabelos negros – urraram e a comoção se tornou mais forte, como se ali existisse uma bruxaria de evocação que penetrava nos corações e nas almas dos soldados. Podia-se sentir a elevação dos anseios naquelas montanhas, como que se todos estivessem prontos, não apenas para a batalha por vir, mas para a própria morte frente às tropas inimigas.

Pouco depois, já em Khrosha, o clamor do exército do Príncipe Bracus chegava até seus defensores, deixando-os sobressaltados e de prontidão.

- O ataque virá logo! – gritou um homem alto e musculoso, de olhos azuis, usando um típico peitoral kothiano de prata, e cuja face selvagem era cheia de cicatrizes que denotavam batalhas de vida e morte em uma existência belicosa, como somente os homens mais selvagens e bárbaros podem ter e sobreviver. – Não me servem homens com leite nas veias, ao invés de sangue.

- Sim, Capitão Conan – respondeu um dos soldados.

- Olhem para o homem à sua direita e à sua esquerda – prosseguiu o cimério. – Lutem, não somente por Khrosha, mas também pela chance de encher seus bolsos com ouro!

Então, o exército do Príncipe Bracus se aproximou, numa infantaria blindada, e Conan soou a trombeta, enquanto os soldados rebeldes do príncipe começavam a lançar ganchos sobre as muralhas de Khrosha e escalar as paredes da cidade. Conan e alguns dos seus comandados cortavam as cordas de alguns dos ganchos, mas aquilo não era o suficiente.

- Atacar, bastardos! – bradou o bárbaro alto, de olhos azuis, atravessando o rosto do primeiro rebelde a alcançar as ameias, com uma estocada feroz de sua espada, cuja ponta se sobressaiu pela nuca do seu rival.

Enquanto isso, outro homem do Príncipe Bracus caía, com uma lança enfiada no peito; e, logo depois, um terceiro saltou em direção a Conan, com um grito selvagem nos lábios escancarados; mas seu berro foi interrompido por um giro da espada do cimério, o qual lhe decepou a cabeça.

As muralhas eram preenchidas por encolerizados invasores e os defensores mantinham suas posições. Outros rebeldes investiram aos magotes, como uma horda selvagem, contra o cimério e seus comandados.

- Parede de lanças! – ordenou Conan.

A própria velocidade daqueles rebeldes o condenou, fazendo-os receberem pontas de lanças de aço em seus corações e barrigas, mal-protegidos por suas finas armaduras prateadas, e em seus pescoços e testas. O avanço do exército defensor de Khrosha foi tão grande que, não apenas empurrou os rebeldes para fora dos muros, como também atingiu e matou os que estavam lá embaixo, enxotando-os com suas lanças.

Súbito, outros rebeldes atacaram a retaguarda do exército de Conan.

- Eles invadiram pelo outro lado! – exclamou o cimério. – Guardas! Por aqui! Sigam-me! – E deram a volta, seguidos pelos rebeldes de Bracus, os quais já falavam em capturar alguns deles vivos, para que o feiticeiro stígio os sacrificasse para Ishtar e Jhil.

- Vocês não têm para onde correr, cães! – riu um dos rebeldes, ao ver o exército de Khrosha acuado de costas contra outras ameias da cidade.

- Vocês também não – sorriu Conan, descobrindo um enorme mecanismo, que estivera coberto por um pano, e disparando uma gigantesca lâmina de machado com vários metros de largura, a qual decepou quase todos eles à altura da cintura, peito e pescoço. Os rebeldes restantes foram empurrados até o último homem, e foram poucos os que viveram para contar ao Príncipe Bracus sobre a derrota. O cimério, já tendo lutado em feudos de sangue, guerras tribais e campanhas imperiais na Coríntia e em Koth, além de ter comandado os exércitos de Khoraja contra as hordas de Thugra Khotan e liderado os temíveis zuagires, não vira, afinal, muita dificuldade em derrotar o exército do Príncipe Bracus.

Em seu caminho de volta ao Palácio Real, entretanto, Conan descobriu que Pebatjma, a sua atual amante desde o reino de Khauran, havia sido raptada por um dos rebeldes do exército do príncipe rival e, negando-se a receber as devidas condecorações, o bárbaro reuniu 500 de seus homens para resgatá-la. Compreendendo a situação do capitão cimério, e grato a ele por ter rechaçado o exército da cidade inimiga, o Rei Zothus de Khrosha enviou mais 600 guerreiros para ajudá-lo.

A cada hora que se passava, o exército do líder bárbaro adentrava cada vez mais as Montanhas Flamenjantes, atravessando vales e rios. Enquanto isso, no alto de um dos montes, Yamses, o feiticeiro aliado do Príncipe Bracus ficou sabendo, através de sua magia, da aproximação dos exércitos de Khrosha e avisou os exércitos do príncipe. Enquanto isso, no alto de uma das montanhas, ele havia despido e amarrado duas mulheres, uma em cada altar – uma kothiana e a bela Pebatjma, ambas raptadas da cidade ao sudoeste. Após sacrificar vários sapos, ele começou a fazer seus encantamentos:

- Louvado Set! Oh, deus escamoso das trevas, atendei vosso fiel servo – ele exclamou, deixando claro sobre qual deus ele realmente adorava. – Eu rogo para que vossa fúria escureça o firmamento! Que trovões retumbem e raios fulminem este campo de batalha. Precipitai sobre a terra a mais avassaladora tormenta, elevando o nível dos rios para afogar os inimigos que ousam nos desafiar.

Enquanto isso, os exércitos do Príncipe Bracus avançavam para confrontar os de Khrosha num dos vales. As tropas atacantes se aproximaram lentamente, aumentando a tensão entre os combatentes ali reunidos de ambos os lados, mesmo que a maioria fosse treinada e acostumada a batalhas de vida e morte, tão comuns nos reinos civilizados do oeste.

- O inimigo chegou. Tragam meu cavalo! – comandou Conan. – A batalha nos aguarda.

O príncipe deu a ordem para sua cavalaria avançar, e Conan fez o mesmo. Os dois exércitos se encontraram, num colidir de armaduras, espadas, escudos, lanças e machados, onde o sangue escorria como água de pescoços cortados e peitos abertos. Muitos homens gritaram, enquanto caíam sob os cascos. Gritos de júbilo se misturavam a guinchos de dor e morte.

Conan era insaciável com sua espada e dilacerava membros sem se importar com sua própria vida, aproveitando cada momento da refrega sangrenta. Um bárbaro entre tropas civilizadas, a externar a ferros e fogo toda a sua força primal diante dos cavaleiros e infantes inimigos, dançando a melodia escarlate de seu deus ausente, Crom.

Homens pereciam como formigas em um firmamento colossal, demonstrando a grandiosidade do acontecimento frente à pequenez humana em meio às guerras de tempos remotos. Sangue vertia de corpos dilacerados e o odor fétido das tripas dilaceradas se mesclava ao suor e sangue dos guerreiros da dança macabra que os envolvia

Ao mesmo tempo, Yamses, ao ver o precipitar da contenda, se voltou para as duas mulheres que ele amarrara no altar.

No auge do derramar de sangue, o cimério percebeu uma leve vantagem de seu exército em relação às tropas de Bracus e se voltou para um de seus soldados:

- Arbanus, assuma o comando, pois irei salvar a vida que jurei salvar! – E desceu do cavalo e começou a escalar uma das montanhas, como só um cimério sabia fazer. No vale, a luta continuou ferrenhamente, com catapultas disparando de ambos os lados.

Enquanto isso, Yamses continuava com seu abominável ritual na alta elevação:

- Antes que esta batalha termine, Bracus e seus vassalos serão testemunhas de um prodígio, do qual se recordarão pelo resto de seus dias. – E, erguendo rudemente o queixo da indefesa prisioneira kothiana, ele começou a dizer: – Oh, filhos das profundezas, despertem e agitem suas aterradoras jubas sobre as nuvens e os trovões, a fim de consumir nossos inimigos. Que sejam todos incinerados pelas chamas do coração do mundo! E, que, depois disso, o Caos e as Trevas sejam trazidos de volta a este mundo, quando o culto a Set retornar às terras hiborianas!

E desceu sua adaga sobre a jugular da apavorada kothiana, espirrando sangue aos borbotões, enquanto Pebatjma soluçava de medo, seus lindos, enormes e pendentes seios de ébano tremulando na medida em que o tórax da kushita subia e descia ofegante de medo.

E se dirigiu ao altar onde a linda negra estava amarrada:

- E, com o sangue desta mulher, consumo este feitiço!

O feiticeiro ergueu sua adaga de forma impiedosa, com o olhar insano de um fanático. No momento seguinte, dele baixar sua lâmina no peito da mulher, um punhal arremessado com precisão se cravou nas costas da mão do bruxo, interrompendo o curso de sua infame faca e salvando a vida de Pebatjma. Com apenas dois saltos para adiante, o encouraçado cimério alcançou Yamses.

Este se postou à frente do altar improvisado, como que com ares de um pretenso poder ancestral e de imortalidade, ainda que fosse notório o medo em sua face diante da figura imponente do titã de bronze. Conan não parou para qualquer monólogo sem sentido, ou mesmo para entender a situação ali, visto que seus sentidos bárbaros eram mais do que suficientes para que ele soubesse exatamente do que se tratava. De súbito, com um só golpe, o guerreiro cimério decepou a cabeça do cultista, num enorme espirro rubro sobre as pedras daquele monte. O silêncio que se seguiu quase podia ser sentido na alma.

No golpe seguinte, Conan cortou as amarras que prendiam Pebatjma ao altar.

- Conan, você veio! – ofegou a kushita, abraçando e beijando convulsivamente seu amante e salvador.

- E você está salva, Pebatjma. Nada mais pode feri-la.

Em seguida, outro soldado, enviado por Arbanus, alcançou ofegante o alto daquele monte.

- Capitão Conan! – ele arfou. – Arbanus me enviou, para informar que a facção do Príncipe Bracus está quase toda derrotada. Mas, enquanto ele viver, Khrosha nunca estará segura, nem Pebatjma, pois aquele príncipe pode arranjar outro feiticeiro para se vingar de você e dela.

Sem pensar duas vezes, o cimério deixou sua amante aos cuidados do soldado, o qual cobriu o corpo da kushita com seu manto.

Descendo até o vale, Conan montou um cavalo e viu um de seus guerreiros matar o general do príncipe, enfiando-lhe uma lança certeira no peito, enquanto o líder dos rebeldes fugia vale adentro, a fim de alcançar a fronteira de Ophir. Mas o cavalo do capitão cimério era mais veloz e logo o alcançou. Saltando de sua montaria, o bárbaro agarrou e derrubou Bracus ao solo, quebrou-lhe a espada num só golpe de sua lâmina e, no giro seguinte, abriu o crânio do príncipe rebelde até os dentes, num derramar de sangue e miolos sobre o riacho que banhava o vale.

Pouco depois, o mesmo soldado que vestira Pebatjma aparecia a cavalo, com a bela negra na garupa. Ela sorriu, desceu da montaria e abraçou Conan novamente. Então, lenta e discretamente, todos os vitoriosos se retiraram dali, com um sorriso nos lábios, a fim de darem privacidade ao casal de bárbaros. O retorno ao palácio real de Khrosha poderia esperar. Então, com um fogo mais poderoso que o de qualquer fúria de batalha, Conan e Pebatjma se beijaram ferozmente, despiram um ao outro e tiveram relações sexuais ali mesmo, enquanto o cimério sugava sofregamente cada centímetro quadrado do enorme busto trêmulo de sua atual companheira de cama, ao mesmo tempo em que arremetia o falo cada vez mais vigorosamente, arrancando gemidos de um prazer cada vez maior, tanto dele quanto da linda negra. Embora Conan preferisse, em sua adolescência, seios firmes, seu gosto a este respeito se diversificou ao conhecer Zoraide, cujas mamas eram tão enormes, trêmulas e caídas quanto as da kushita a quem ele mais uma vez possuía.



Após retornarem a Khrosha, Conan e Pebatjma se banharam, comeram, descansaram e depois se apresentaram perante o Rei Zothus, na sala do trono, onde o cimério recebeu o título de comandante, enquanto Arbanus foi nomeado capitão. Naquela noite, após mais duas deliciosas relações sexuais com a kushita, Conan adormeceu e começou a sonhar. Em seus sonhos, o cimério viu um deserto; as pernas de uma bela jovem morena, sob o véu que esvoaçava ao vento seco que soprava naquelas areias quentes, e lindos olhos negros femininos, pintados de kohl shemita, mas em estilo stígio. Então, ele avistou, como numa miragem, aquela bela jovem caminhando descalça até ele, apesar das areias escaldantes sob as solas dos pés da moça. Seus dedos, tanto das mãos quanto dos pés, tinham suas extremidades pintadas de azul-esverdeado, e sua túnica branca sem mangas possuía, na parte inferior, o mesmo véu com o qual o bárbaro a vira no inicio do sonho.

Logo, ela chegou perto, e Conan pôde ver, pelas suas feições, que ela era uma stígia.

- Meu escolhido – ela disse, abrindo um lindo sorriso e o beijando.

O cimério acordou sobressaltado.

- O que houve, Conan? – perguntou Pebatjma.

- Nada... Foi apenas um sonho. – Então, ele a abraçou, e eles se beijaram em paixão feroz na penumbra do quarto, a qual não impedia o bárbaro de ver os detalhes da linda nudez da kushita.


* * *


Nos dias seguintes, alternando treinos com suas tropas e noites de prazer com Pebatjma, Conan continuou tendo sonhos cada vez mais freqüentes com a estranha jovem stígia. Num deles, ele a viu cortar a própria mão e o beijar sobre um leito stígio, antes de lhe roçar uma estranha faca com um rubi na extremidade do cabo. Ali, o cimério viu que o rosto moreno-escuro da jovem era tatuado – bem como o corpo dela –, antes dela descer a faca sobre o musculoso peito peludo dele.

- Quem é Nekhbet? – perguntou Pebatjma enciumada, assim que o bárbaro, mais uma vez em mais uma noite, acordou sobressaltado.

- Eu não sei, mulher. Só sei que não agüento mais esses malditos pesadelos!



2)


Dias depois, o Rei Zothus convocou os principais exércitos de Khrosha para marcharem com ele. O rei ouvira boatos, de que um novo feiticeiro se aproveitara da morte de Bracus, para ocupar o trono vazio de Khorsus. O Rei de Khrosha, acompanhado pelo Comandante Conan e o Capitão Arbanus, cavalgaram à frente das principais tropas.

Após um dia de marcha, o exército descansava num dos desfiladeiros das Montanhas Flamejantes, não muito longe da cidade de Khorsus, com uma sentinela em cada entrada da garganta. Mas o sono do bárbaro estava longe de ser tranqüilo. Enquanto dormia, Conan sonhava de novo com Nekhbet, e ela desta vez lhe prometia a vida eterna e o domínio do mundo ao lado dela, na forma de um deus vivo, com o mundo caindo aos desejos dele. Foi um grito estrangulado que acordou Conan de seu sono felino. E foi com a furtividade e a rapidez de um felino, que o cimério se dirigiu até o local do som que o despertara, e se deparou com uma das sentinelas caída ao chão, morta e mumificada.

Erguendo o olhar para outro som, desta vez à sua frente, o comandante bárbaro avistou uma forma esquelética cambaleando para longe dali. Deduzindo ter sido aquela criatura quem matou o vigia, ele arremessou sua espada e ouviu o som desta se cravando nas costas do que quer que fosse aquilo, mas mesmo assim o ser inumanamente magro conseguiu fugir.

Chegando a Khorsus, Conan e os exércitos de Khrosha encontraram e enfrentaram um exército de múmias stígias, invocado por Yamses – o “novo feiticeiro”, ressuscitado no Poço de Skelos – e capazes de sugar vidas humanas até readquirirem a aparência de quando vivas. Então, Conan se lembrou das visões que tivera, de uma falecida princesa stígia o seduzindo e lhe prometendo a vida eterna. A princesa havia sido mumificada viva, séculos antes, por ter assassinado o pai, a mãe e o irmão, mas sua tumba fora achada recentemente por Yamses e levada por ele até Koth, onde o sacerdote a pretendia ressuscitar e controlar. Após ser ressuscitada, a princesa se materializou, sugou as vidas de vários kothianos e voltou à forma humana. Capturando novamente Pebatjma, Yamses, Nekhbet e duas de suas múmias arrastaram a kushita até um templo subterrâneo, onde a deitaram num altar e Nekhbet tentou lhe sugar a vida.

A caminho do local, com os exércitos de Khrosha, Conan lhe reconheceu os gritos agudos, e correu até o salão onde a negra se encontrava. Ao ver a figura cinzenta, ao mesmo tempo sensual e assustadora, que pretendia sugar a vida de Pebatjma, Conan percebeu nela traços, tanto da mulher que lhe assombrava os sonhos, quanto da estranha criatura que matara um dos guardas a caminho de Khorsus. Investindo selvagemente, com um grito de guerra nos lábios finos, o bárbaro correu até o local do sacrifício. Ciente do poder daquele punhal, Conan decepou, num golpe de espada, a mão de Nekhbet que segurava a adaga e, com aquele mesmo punhal stígio – o mesmo com a qual ela matara a família, seis milênios antes –, o cimério a esfaqueou no peito e o rubi no cabo daquela arma profana escureceu e virou pó após ele matar a morta-viva, salvando, deste modo, a vida de Pebatjma, enquanto os soldados kothianos que o seguiam despachavam as duas múmias que haviam segurado a kushita, para o recém-frustrado sacrifício.

No momento seguinte, porém, a alma de Nekhbet – cujo corpo se mumificara novamente e virara pó – se apossou do corpo de Pebatjma, deixando-a com os olhos revirados, em estado de delírio e em convulsões. Enquanto isso, Yamses, que estava ali presente, comandando o sacrifício ao ajudar a manter a kushita imóvel, investiu furiosamente contra Conan, a fim de vingar a princesa, com a qual ele pretendia restaurar a soberania da Stygia sobre os reinos de Shem, Koth, Ophir e Argos, a qual os stígios haviam perdido parcialmente para os hiborianos de Acheron – e, mais tarde, em sua totalidade, para os bárbaros hiborianos não-acheronianos que haviam destruído o Império de Acheron.

Em meio aos ossos que pavimentavam aquela catacumba, Conan e os soldados de Khrosha acuaram Yamses, permitindo que apenas o cimério o enfrentasse. Olhos negros acima de um nariz aquilino brilhavam com uma luz arcana no sacerdote morto-vivo de Set. Os dois homens nada disseram. Havia um sombrio fatalismo na expressão facial de Conan, enquanto adotava uma postura mais agachada para lutar. E, se a magia permitia a Yamses prever como aquilo terminaria, ele não demonstrou – pois, quando o cimério ficou ao seu alcance, ele se moveu.

Seguiu-se um surpreendente confronto na arte da esgrima, como nenhum kothiano jamais vira. Golpe sucedia golpe, todos rápidos demais para os olhos discernirem, com avanços e recuos; estocadas e bloqueios entre retinires e clangores, acompanhados de grunhidos através de dentes cerrados. Ninguém sabia de onde aquele bruxo, que havia sido facilmente morto pelo bárbaro dias antes, conseguira adquirir tal habilidade – embora alguns desconfiassem do Poço de Skelos, no qual um de seus devotos o colocara para ressuscitá-lo. Ali estavam dois oponentes equiparados na estatura e no alcance, igualmente habilidosos, divididos apenas pelo golfo que separa o bárbaro do homem civilizado – um golfo que quantidade alguma de talento, envergadura ou estatura pode transpor. Enquanto Yamses parava para tirar suor dos olhos, a vitalidade imponente de Conan – um dom de nascença – inundava seus membros com renovado vigor. A potência de seus golpes redobrou, até que o contato de cabo com cabo ressoou tal qual o impacto do martelo sobre a bigorna.

Mais tarde, ninguém se lembraria de ter visto o golpe fatal que rompeu a guarda de Yamses, mas, no silêncio desesperador que se impôs sobre Khorsus, todos ouviram o sibilar da espada de Conan, o ruído de músculo e osso sendo decepados, e viram a cabeça do sacerdote de Set voar num jato de sangue, em sua segunda e definitiva morte.

Grunhindo, Conan deu meia-volta e sacudiu a espada para se livrar do grosso do sangue, enquanto dava ordens para que seus soldados queimassem a cabeça e o corpo de Yamses – afinal, com feiticeiros, nunca se sabe. Fazendo pouco caso e com a espada em riste, o bárbaro se voltou para encarar o homem morto. Porém, Yamses já estava petrificado em seu rigor mortis, sua cabeça decepada com um sorriso enigmático nos lábios.

De repente, enquanto se virava novamente, para saber o que ocorrera com Pebatjma, o cimério ouviu estalos acima de si, e seus olhos se ergueram até uma estátua em madeira de uma mulher-serpente, próxima ao teto. Sua metade superior era o rosto e o corpo de uma mulher, e a inferior o corpo de uma enorme serpente. Nela, uma estranha transformação se encontrava em andamento. A vida inundava a profana e repugnante figura entalhada. Tendões de cedro rangeram, enquanto a cabeça olhava de lado a lado; seus braços se soltaram, causando uma saraivada de lascas sobre o chão. As mãos agora estavam dotadas de unhas de ferro negro. A face permaneceu serena e impassível, com olhos sombrios e sem vida; ela fitou o bárbaro abaixo de si e sibilou:

- Vingança.

- Pelo sangue de Crom! – exclamou Conan.

Ele recuou quando a fera despertou e o atacou com suas garras de ferro negro, que deixavam longos e profundos arranhões no chão do palácio. O cimério rapidamente pegou a espada nos dedos sem vida de Yamses e, com cada átimo de energia ao seu dispor, arremessou a arma no rosto da criatura. A espada atingiu o alvo com um impacto seco, rachando a testa da escultura. A mulher-serpente levou a mão ao rosto, e se livrou da arma da mesma forma que um homem se livra de um inseto.

O rei e os soldados se encolheram, aterrorizados, gritando inúmeros alertas uns aos outros. Enquanto isso, Conan se limitou a dar meia-dúzia de passos para trás e observar a mulher-serpente com olhos semi-cerrados. Ela tentou acompanhar e se mostrou perturbada quando seus esforços foram frustrados. A mulher-serpente olhou para baixo e ao redor, e em seguida se voltou para Conan. Ele sentiu as primeiras vibrações nas solas de seus pés. O tronco da criatura se contorceu, e a mesma começou a rastejar adiante, com a metade inferior serpentina se livrando da parede.

Então, após deduzir acertadamente que aquela criatura era animada pelo espírito de Yamses, o bárbaro pediu óleo e fogo aos soldados petrificados de horror.

- Por quê? – perguntou o Rei Zothus.

- Ela é feita de madeira, não? – rosnou rispidamente o cimério.

Conan deixou sua espada no chão, agarrou um machado e gritou:

- Vão logo, seus malditos!

Os soldados se apressaram em cumprir suas ordens.

A criatura media quase dez metros de comprimento, da cabeça talhada em cipreste, até a ponta da cauda de cedro. A mulher-serpente se inclinava para a frente, enquanto rastejava em direção ao bárbaro. Só se viu um borrão do cimério, quando ele escapou à investida, feita com incrível velocidade, da criatura, Conan rodopiando e se agachando sob as garras afiadas. Girou o machado com uma só mão e ouviu o estalar de madeira quando seu golpe atingiu entre o ombro e o cotovelo direito da mulher-serpente, decepando-lhe o horrendo braço.

Mas, assim que Conan se recuperou, a fera atacou novamente, açoitando-o com a cauda. Tal qual uma porta atingida por um aríete, o golpe catapultou o bárbaro para longe, fazendo-o perder todo o ar dos pulmões e cair sobre o chão de pedra. Tonto e se esforçando para respirar, ainda assim o cimério conseguiu se manter em posse do machado. A criatura deslizou em sua direção e tentou pegar seu pescoço, disposta a quebrar o mesmo.

Com os olhos de vulcânica fúria azul, Conan segurou o pulso daquela nova versão de Yamses. Músculos imbuídos de magia negra confrontavam os nervos de aço do cimério. O bárbaro cerrou os dentes. As garras da mão remanescente se roçavam e o braço de madeira rangia; mas, apesar de todo o seu esforço, Yamses nada pôde fazer quando Conan se ergueu e atingiu o cotovelo da criatura com o machado, fazendo voar o outro braço junto a uma chuva de farpas de cipreste.

Desmembrado, Yamses recuou.

Ao olhar de esguelha, Conan avistou Arbanus. Ele agora trazia um jarro de cerâmica sobre o ombro, deixando uma trilha de fumaça graças ao algodão em chamas ali contido.

- Agora! – rugiu o cimério, lançando-se para longe do alcance da coisa, no que foi seguido pelo rei e exércitos de Khorsus, enquanto Arbanus arremessava o jarro incendiário na criatura. A cerâmica se estilhaçou no tórax de Yamses, e uma explosão de chamas atingiu a cabeça do monstro. A mulher-serpente agonizou, arqueando as costas enquanto as chamas a varriam. Mais três jarros incendiários voaram para atingir o tronco e a cauda da criatura, intensificando ainda mais o incêndio.

A criatura queimava. A madeira estalava e disparava lascas. Uma densa fumaça negra emanava da enfraquecida monstruosidade, e sua cauda se debatia nos estertores finais. Finalmente, Conan, Zothus, Arbanus e todos os soldados de Khrosha prestaram atenção e viram o centro daquilo que fora Yamses rachar ao meio, devido ao calor intenso, e liberar um filete de fumaça esverdeada. Ouviu-se um sibilo e a palavra “Vingança” foi sussurrada. Então, aquilo que outrora foi uma mulher-serpente, com a alma de Yamses, se desfez em pedaços.



3)


No entanto, o último suspiro de Yamses havia liberado um feitiço que trouxe de volta uma quantidade ainda maior de múmias – desta vez, imunes a quaisquer armas humanas –, as quais cercaram Conan, o Rei Zothus e o exército de Khrosha, enquanto metade da cidade era destruída por uma tempestade de areia. Apesar da situação periclitante, nem homem nem deus, nem múmia conseguiriam domar o lobo do norte. Seu deus era Crom, sinistro e selvagem, que concedera ao homem o poder para persistir e massacrar, e mais nada. Quando ele invocava Crom, não se tratava de prece ou adoração – mas apenas uma forma de praguejar, vez que o principal deus cimério nunca ouvia orações. Nascido num campo de batalha, o choque das espadas e os gritos de matanças haviam sido suas primeiras canções de ninar.

Mas, por mais que Conan lutasse, era impossível matar quem já era morto. A não ser que... Uma idéia explodiu na mente do Rei Zothus, e ele agarrou uma tocha e a arremessou certeira na cabeça de uma das múmias. A criatura começou a se contorcer enquanto seu crânio queimava, e caiu ao chão quando o fogo se alastrou pelo restante do seu corpo. Animados, Arbanus e os demais soldados de Khrosha fizeram o mesmo com os demais morto-vivos. Mas era tarde demais para o cimério. Subjugado pela superioridade numérica daquelas criaturas, ele foi arrastado correnteza abaixo de um rio que banhava as catacumbas que guiavam para fora daquele salão subterrâneo. O bárbaro se contorcia em vão sob o aperto de dezenas de múmias que o puxavam cada vez mais para o fundo do rio, e sob a água que lhe enchia cada vez mais os pulmões, deixando-o desesperado e agonizante. As criaturas também morriam, mas Conan estava já enfraquecido demais para reagir...

Desesperado, o Rei Zothus, e o Capitão Arbanus sob suas ordens, mergulharam naquele rio subterrâneo, para tentarem salvar o cimério, mas tudo o que conseguiram foi voltarem à superfície, poucos minutos depois, sem nada acharem. As tropas seguiram o curso do rio, até encontrarem, numa de suas curvas e cercado por múmias mortas, o cadáver afogado de Conan. Em pura angústia com a perda de seu guerreiro mais valoroso e habilidoso, Zothus ordenou que seus homens tentassem despertar o bárbaro de todas as formas possíveis, mas nenhuma gota de água saiu pela boca do cimério – todas as tentativas haviam sido em vão...

Enquanto isso, do lado de fora da cidade, a tempestade de areia cessava, ao mesmo tempo em que Pebatjma, vigiada por outros soldados do exército de Zothus, os assombrou quando eles a viram despertar. Suas pupilas negras se acenderam e dividiram em duas, em cada um dos seus olhos, seus vasos sangüíneos se sobressaíram fugazmente e a bela negra se ergueu, ereta e altiva.

- Onde está Conan? – ela perguntou àqueles guerreiros morenos e esguios, de cabelos negros.

Assustado e gaguejando, um deles respondeu:

- E-ele foi arrastado pelas múmias, até o fundo do rio.

Os olhos dela se arregalaram de surpresa e horror.

- Onde eu o encontro? – Pebatjma perguntou, mas subitamente ela acrescentou: – Não, não precisam me dizer. Eu sei onde encontrar meu Conan! – E correu disparada e desesperadamente até o local onde o cadáver do cimério havia sido achado.

Pebatjama, possuída pelo espírito da princesa stígia Nekhbet, chegou até a curva do rio e, estranhamante ciente do que fazer, inclinou-se e beijou a boca do bárbaro. Abrindo repentinamente os olhos azuis, o cimério tossiu parte da água que engolira; e, inclinando-se para diante, agora sentado no chão, vomitou toda a água que havia inundado seus pulmões, voltando a respirar normalmente.

- Pebatjma – Conan ofegou, aliviado e feliz ao finalmente entender o que acontecera. – Por Crom e Mitra, muito obrigado por salvar minha vida!

- Eu não sei mais quem, ou o que eu sou, Conan – ela respondeu, ofegando, com uma das mãos apoiada no chão e a outra sobre o rosto virado para baixo. – Eu não quero lhe machucar, cimério... nem a vocês, kothianos, que me pouparam a vida enquanto estive em transe. Você está vivo. E, graças a Julah, o rei e boa parte das tropas de Khrosha também estão. Estou feliz por vocês estarem vivos. Eu não quero lhe fazer mal, Conan; nem a nenhum de vocês... 

Sem querer, ela soltou um urro, que assustou a todos ali presentes e, inesperadamente, Pebatjma sumiu diante dos olhos de todos os guerreiros, como se nunca tivesse existido. Sem saber o que fazer, Conan lamentou, em seu íntimo, o desaparecimento da kushita, convicto de que ela morreu – tanto o cimério quanto o Rei Zothus e o exército de Khrosha.



Imbuída de poderes, Pebatjma – que acabara de descobri-los – abandonou Conan, receosa de matá-lo sem querer (apesar da natureza benigna da kushita predominar sobre o espírito maligno da princesa), e se dirigiu até Zamora e Turan, onde matou aqueles que a haviam escravizado e passou a vagar imortal pelos desertos do leste de Shem. Enquanto isso, em Khorsus, Conan e o Rei Zothus de Khrosha incendiaram o Poço de Skelos, Zothus pôs um rei fantoche no trono de Khorsus e, com o apoio do Rei Strabonus, re-anexou a cidade rebelde ao reino de Koth. Conan seguiu para norte, em mais um retorno à sua Ciméria natal.

E até hoje uma bela negra, imortal e poderosa, vaga pelas areias dos desertos do Oriente Médio, onde há milhares de anos ficava o Deserto Kharamun, e sempre usando de seus poderes a favor do bem e da justiça. Os homens a procuram para prestar votos e pedem, às vezes, poderes fugazes e artificiais, os quais ela rejeita, por considerar algo mundano. Ela é reverenciada como uma deusa entre as tribos, das mais primitivas às mais sofisticadas e todos reconhecem ali uma divindade presente, uma deusa que ouve aqueles que realmente necessitam. Em um mundo indiferente, em meio a seres primordiais que pouco se importam com a vida humana e até que a consideram irrisória, a bela negra se destaca pela forma como concede sua magia a aqueles que merecem. O homem Conan a mereceu, visto que ele era autêntico, apesar de sua brutalidade, lutando a guerra reta dos bárbaros que não se domam jamais à degenerescência dos homens civilizados.



FIM



 

Agradecimentos especiais: aos howardmaníacos e amigos Marco Antonio Collares e Károly Mazak.

 


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