Em Argos

(por Fernando Neeser de Aragão)


- Aquela maldita esfinge alada e seus mercenários já reduziram, a fumaça e cinzas, uma aldeia vizinha que se recusou a pagar o pesado tributo que aquela criatura nos cobra – disse o líder de uma pequena aldeia, de agricultores e boiadeiros atarracados (tipicamente argoseanos), não muito longe da cidade de Kyros.

- Precisamos de alguém que nos ajude a acabar com aquela criatura – disse um jovem de vinte anos.

- Mas não se esqueça de que você já tem sua noiva, Lívio – respondeu uma bela garota, de cabelos castanhos, com a mesma idade do rapaz.

Ele sorriu para sua linda futura esposa:

- Não se preocupe, Cibele. A refém da criatura será um prêmio para Conan – ele respondeu, apontando, com o queixo, para o cimério ali presente –, ou para quem ela quiser... e que não seja a mim que aquela moça queira! – Lívio concluiu gargalhando.

Conan sorriu. Era um homem alto, de físico avantajado, com uma longa túnica negra de malha metálica e um capacete de aço azul, decorado com chifres bem polidos de touro Um cinturão largo, de couro cru, com uma fivela dourada, segurava a bainha da espada que ele empunhava. Debaixo do capacete de chifres, a cabeleira negra, em corte reto, contrastava com seus brilhantes olhos azuis.

Embora tivesse a mesma idade de Lívio e Cibele, aquele mercenário bárbaro era endurecido por guerras e perambulações, e sua estada em muitas terras era evidente em seu vestuário. O capacete com chifres era do mesmo tipo usado pelos aesires; sua cota-de-malha e grevas eram da mais fina manufatura kothiana; a armadura que protegia seus braços e pernas era nemédia; a lâmina que trazia pendurada à cintura era uma larga espada vinda da Aquilônia.


Horas depois, o cimério foi ao encalço do grifo. Os aldeões que o contrataram lhe prometeram cem peças de ouro, caso ele a resgatasse. Os boatos de que ninguém voltara vivo do covil da criatura, bem como o temor ancestral de Conan pelo sobrenatural, não intimidaram o cimério.

Poucos dias depois, o pequeno grupo chegou aos arredores da gruta onde o grifo morava. Ela era cercada por pouco mais de vinte soldados a cavalo, contratados pela criatura. Eles se esconderam atrás das pedras e se prepararam para chegar lá, mas não sem antes tomarem umas providências preventivas...

Após isto, todos ficaram a postos, de arcos e flechas nas mãos. Logo, Conan lançou sua primeira flecha no coração de um dos cavaleiros, derrubando-o da montaria. Lívio lançou a sua no pescoço de outro e os demais arqueiros entraram em ação, sem saírem da tocaia, acertando peitos, barrigas, gargantas e testas.

Após lançarem suas flechas, Conan, Lívio e outros jovens guerreiros saíram desafiadoramente de seus esconderijos. Os guardas da caverna já sabiam de onde vieram as setas, mas não haviam visto quem as lançara. Agora, ao verem, eles bradaram furiosamente e cavalgaram em direção ao cimério e aos camponeses.

Súbito, um dos mercenários do grifo tropeçou no fio de uma armadilha que disparou uma flecha. Outra armadilha surgiu de repente, quando outro deles caiu num alçapão forrado por afiadas e letais estacas de madeira, que lhe perfuraram o corpo. Gritos ecoaram pelo local, enquanto as armadilhas de Conan liquidavam um lutador após o outro.

Então, os cavaleiros restantes se aproximaram.

- Vamos pagar a dívida com esses porcos – disse Lívio, desembainhando sua espada, investindo contra o cavaleiro mais próximo e seguido de perto por Conan e seus aliados.

Com sua lâmina, Lívio perfurou as costelas e pulmão esquerdo do guerreiro mais próximo, evitando-lhe a espada. Aproveitando-se da sua altura, Conan abriu a jugular do guerreiro seguinte e o crânio de mais um, num espirro sangrento. Com outro giro da espada, o cimério abriu outro cavaleiro, do peito até a espádua. Em pouco tempo, os demais guardiões da caverna estavam mortos, com pescoços abertos, intestinos e miolos derramados ao chão, costelas e corações perfurados, e pescoços quebrados. Os fugitivos foram abatidos por novas flechas, lançadas pelos camponeses, e por Conan, cujo alcance e precisão superavam até mesmo o de seus falecidos mestres, na distante Hirkânia.

O caminho para a caverna do grifo estava livre. O cimério olhou para seus aliados, e percebeu que o medo daqueles camponeses era grande demais para que eles o acompanhassem até a gruta. Conan não podia condená-los; até mesmo ele, que já enfrentara vários obstáculos sobrenaturais, estava quase tão apreensivo quanto aqueles rapazes que nunca enfrentaram inimigos inumanos.

Então, com sua espada, arco, elmo e armadura, ele adentrou a caverna do grifo. Súbito, uma bela jovem mostrou seu rosto, o qual apareceu por trás de uma das saliências da caverna mal-iluminada. O bárbaro instintivamente apontou uma flecha para ela, antes de lhe ver as belas feições, largar o arco, desembainhar a espada com a típica prontidão dos bárbaros, e caminhar até ela.

- Garota, o saque e a liberdade estão próximos – o bárbaro disse a ela em Argoseano com forte sotaque cimério.

- Beije-me, herói. Deixe-me ver que você é real – a loira pediu, numa voz tão sedutora quanto ela própria.

Ele atendeu ao pedido da garota, beijando-lhe ferozmente os lábios até ela ofegar de um desejo tão grande quanto o do próprio cimério.

- Onde está o grifo? – Conan perguntou abruptamente, logo após beijá-la.

- Aqui! – ela respondeu, arranhando a couraça que cobria o ombro do cimério. Enquanto ele cambaleava com o impacto do golpe, surpreso em ver que as marcas em sua malha metálica eram de garras, uma horrível transformação ocorreu na bela jovem: seus lindos dentes se tornaram presas afiadas, seu cabelo dourado se transformou na juba castanho-clara de um leão, o corpo dela ficou totalmente masculino e lhe cresceram asas nas costas. Horrorizado, o cimério percebeu que a bela moça não era prisioneira do grifo, mas o próprio em disfarce humano.

A criatura voou em direção ao bárbaro, tentando dilacerá-lo com duas patadas, mas Conan se esquivou e golpeou o grifo com a espada – sem efeito, para espanto do cimério. O grifo investiu novamente, despedaçando-lhe o arco para intimidar Conan, mas ele, com um plano recém-formulado na mente, esquivou-se outra vez e deu uma chave-de-braço no pescoço da criatura, por trás. Ela voou de ré, batendo o cimério contra a parede da caverna e lhe despedaçando a aljava, mas Conan, com a resistência típica dos bárbaros e a proteção de sua cota-de-malha, mal sentiu a dor e, agarrando-lhe uma das patas, arranhou o próprio peito do grifo e, logo depois, a garganta do mesmo, fazendo-o desabar morto ao chão.


De volta à aldeia, com Lívio e os camponeses sobreviventes, Conan trazia um saco de couro. Enquanto Cibele abraçava e beijava ardentemente o noivo, o cimério abriu o saco, mostrando a todos os campônios a cabeça do grifo. Apesar de toda a aldeia aclamar o bárbaro, o olhar de Conan estava estranhamente taciturno por todo o caminho desde a caverna. Ele se lembrava de sua nauseante e repulsiva descoberta, de que aquela linda jovem não passava de um demônio disfarçado. Apesar do saco de moedas de ouro que acabava de receber, juntamente com um manto escarlate ophiriano (pois os argoseanos, às vezes, se aliavam a Ophir, e até a Zingara, em vãs tentativas de invadir e tomar Poitain), o cimério se afogou numa onda de futilidade, num medo de serem falsos os sonhos e idolatrias dos homens.

Entretanto, ao ver que Lívio e Cibele se ofereciam para acompanhá-lo até a cidade vizinha, o bárbaro se reanimou, lembrando-se da possibilidade de continuar sua carreira mercenária. O líder da aldeia alertou os jovens noivos para terem cuidado com o comportamento traiçoeiro, da maioria dos moradores de grandes cidades, mas desejou boa sorte a eles, que preferiam se casar em Messantia, capital daquele reino. De lá, garantiu Lívio, ele e Cibele voltariam à sua aldeia natal.

* * *

Durante uma breve estadia em Kyros, Conan, Lívio e Cibele conheceram o vinho daquela cidade – um dos mais saborosos dos Reinos Hiborianos – e, entediados com a falta de batalhas, seguiram para o sul, rumo a Messantia. No caminho, velhos parados na frente de pousadas, embaixo de longos galhos de carvalhos, cumprimentavam os viajantes. Homens trabalhavam nas campinas e velhos tagarelavam nas pousadas, onde o trio saciava a sede com grandes odres cheios de cerveja espumante e se divertiam à noite – Conan com as prostitutas das tavernas, e Lívio e Cibele um com o outro.

Após seguirem por uma estrada com mercadores de olhares aguçados vestidos com seda, os três finalmente chegaram à capital de Argos. Em contraste com as províncias do interior, todos os portos de Argos eram cosmopolitas, e Messantia era o mais poliglota de todos. Navios de todas as nações marítimas atracavam em sua baía; refugiados e fugitivos de diversas terras se reuniam ali, onde as normas legais eram frouxas. Messantia prosperou pela lei dos mares, e seus cidadãos achavam ser lucrativo fazer vista grossa em seus tratos com os homens que lá chegavam. Não era apenas escambo legítimo que fluía em Messantia; contrabandistas e bucaneiros também desempenhavam seus papéis.

O trio adentrou a cidade de manhã sem ser questionado, misturando-se às massas que vertiam continuamente para dentro e para fora daquele grande centro comercial. Não existiam muros cercando Messantia – apenas o mar e seus navios guardavam a próspera cidade sulista do comércio. Na tarde daquele dia, Lívio entrou para o serviço de soldado mercenário, na esperança de encontrar uma oportunidade de lutar. Conan, no entanto, achou Messantia tranqüila demais para que ele criasse expectativas de batalhas.

* * *

Era noite quando eles entraram numa taverna messântia, sentaram-se a uma mesa, e começaram a beber e comer. Então, quando Cibele se levantou para perguntar ao taverneiro onde ficava o banheiro dali, um homem meio embriagado e de aparência rude, mas vestido como um capitão da guarda, apareceu diante da moça e, com um sorriso libidinoso, se dirigiu a ela:

- Boa noite, garota linda. Sou o Capitão Gormio, da Guarda Real de Argos. Vejo que você tem um rosto muito bonito e um corpo escultural. Vamos beber juntos, beldade?

- Estou acompanhada – ela respondeu ultrajada. – Tenho noivo, e ele está aqui na taverna.

- Então, é um bom sinal, de que esse seu traseiro lindo já está bem rodado... – ele retrucou, abraçando-a subitamente.

Quando Gormio a agarrou pela cintura, Cibele viu os dentes amarelados do capitão e sentiu-lhe o hálito fedendo a vinho e cerveja. Ele a beijou na boca e apertou-lhe os seios redondos e as nádegas firmes, roçando o falo ereto na moça, mas ela se desvencilhou, cuspiu na cara de Gormio e quase lhe acertou uma joelhada nos testículos. Conan já havia desembainhado a espada, mas Lívio, também de espada desembainhada, segurou a mão do cimério.

- Deixe comigo, Conan! Eu faço questão de cuidar deste verme!

O bárbaro abriu um sorriso sinistro e deixou o jovem argoseano passar, ao mesmo tempo em que Gormio desembainhou a própria lâmina e encarou o jovem soldado. Conan manteve sua larga espada azulada de prontidão, a fim de impedir que alguém naquela taverna tentasse interferir na luta.

Antes que Gormio pudesse brandir sua lâmina, a espada de Lívio foi mais rápida e lhe atravessou a boca do estômago, até se projetar pelas costas do capitão.

Então, cientes da existência de uma maldita lei que impedia que soldados matassem oficiais – mesmo que estes últimos estejam errados –, Conan e o jovem casal fugiram pela porta da taverna noite adentro.

* * *

O jovem casal se escondeu na infame casa de Sérvio – uma pousada suja e de péssima fama. Era uma construção mal-feita, de pedras com pesadas hastes de navios, numa viela estreita próxima ao cais, de frente para o mar. Ladrões e mendigos proliferavam naquela parte de Messantia durante a noite inteira, mas dificilmente atacariam aquele jovem e robusto soldado camponês, de espada gotejante na mão, acompanhado por um agigantado colega mercenário – era mais provável que ganhassem um belo talho na garganta, do que ganharem a bela jovem que se aninhava à proteção de seu amado.

Sérvio – que conhecia o cimério desde a época em que este era ladrão na cidade aquiloniana de Shamar – os acolheu ao saber que eram amigos de Conan. Após algum tempo escondidos, Lívio e Cibele fugiriam de Messantia e casar-se-iam na aldeia onde nasceram. Mas o cimério não teve a mesma sorte. Indo para outro bairro da cidade, de onde pretendia fugir para leste, o bárbaro foi identificado como o homem que estava na companhia do jovem casal.


Andaram dizendo que viram Conan com eles. Após matar alguns guardas que o abordaram, o cimério foi derrubado semi-inconsciente com um golpe de maça na cabeça, e arrastado ao tribunal, onde o Juiz Philipus o perguntou onde o rapaz estava escondido. O cimério respondeu que, sendo ele seu amigo, não poderia traí-lo. Ficaram com raiva, e o juiz fez um demorado discurso sobre a responsabilidade do bárbaro para com o Estado e a sociedade, e outras coisas que Conan nem entendeu; e lhe ordenou que dissesse para onde seu amigo tinha fugido. Aí ele também começou a ficar com ódio, porque já explicara sua posição mais de uma vez.

Mas o cimério procurou se controlar e ficou calado. O juiz acabou achando que ele tinha desrespeitado a corte, e que devia ser mandado para o calabouço e apodrecer lá até se decidir a trair seu amigo. Em Argos, não existia mais justiça do que em outros reinos hiborianos: os ricos subornavam os juízes, e os pobres passavam fome na cadeia até morrerem – ou, no caso do cimério, até delatarem os próprios amigos. Uma onda de fúria tomou conta de Conan. Então, decidindo que todos eles estavam loucos, ele arrebentou as cordas que lhe amarravam os pulsos, puxou sua espada – que ficara na mão de um dos guardas ao seu lado – e rachou a cabeça do juiz, numa explosão de sangue e miolos sobre a mesa do tribunal; então, abriu caminho para fora do recinto. Quando viu o cavalo de um oficial da guarda amarrado ali perto, o bárbaro montou e fugiu em disparada para o porto, onde esperava encontrar um navio zarpando para alguma terra bem distante.


FIM




Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Ricardo Medeiros, de Brasília – DF.




A seguir: A Rainha da Costa Negra – parte 1 (por Robert E. Howard).



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