A Gata de Delcardes

(por Robert E. Howard)


Na companhia de Tu, conselheiro-chefe do trono, o rei Kull compareceu para ver a gata falante de Delcardes, pois ainda que um gato possa olhar para um rei, não é dado a todos os reis ver uma gata como a de Delcardes. Assim, Kull se esqueceu das ameaças do necromante Thulsa Doom, e foi ver Delcardes.

Kull se mostrava cético, e Tu era cauteloso e se mostrava desconfiado sem saber o porquê, mas anos de contra-conspirações e intrigas lhe haviam azedado o pensamento. Jurava obstinadamente que uma gata falante não era mais que uma fraude e um engano, e afirmava que, se algo assim realmente existia, isso seria um insulto direto aos deuses, pois estes haviam ordenado que só o homem tivesse o poder da palavra.

Mas Kull sabia que, nos tempos antigos, os animais haviam conversado com os homens, pois ouvira contar as lendas, transmitidas de geração em geração por seus antepassados bárbaros. Assim, embora cético, tinha a mente aberta às crenças.

Delcardes ajudou a aumentar esta convicção. A dama estava estendida com uma sutil naturalidade sobre seu divã de seda, como um grande e belo felino, e olhou Kull por baixo de cílios longos e curvados, que proporcionavam um encanto inimaginável a seus olhos estreitos, atrativamente rasgados.

Tinha lábios cheios e vermelhos, habitualmente curvados, como agora, num suave sorriso enigmático. Sua vestimenta de seda, e seus ornamentos de ouro e pedras preciosas pouco escondiam de sua gloriosa figura.

Mas a Kull não interessavam as mulheres. Governava a Valúsia, é certo, mas à parte disso continuava sendo um atlante e um selvagem aos olhos de seus súditos. A guerra e a conquista atraíam toda a sua atenção, junto com o trabalho de manter os pés firmemente assentados sobre o sempre cambaleante trono de um império antigo, e o de aprender os costumes e a forma de pensar do povo que governava.

Para Kull, Delcardes era uma figura misteriosa, como uma rainha atraente, mas cercada por uma auréola de sabedoria antiga e de magia feminina.

Para Tu, por sua vez, não era mais que uma mulher e, conseqüentemente, fundamento latente de intriga e perigo.

Para Ka-nu, o embaixador picto e conselheiro mais íntimo de Kull, ela era como uma menina ávida, mas Ka-nu não estava presente quando Kull veio ver a gata falante.

A gata estava sobre uma almofada de seda, num pequeno divã apropriado, e observou o rei com olhos inexploráveis. Se chamava Saremes, e dispunha de um escravo, posto atrás dela, disposto a satisfazer seus menores desejos: se tratava de um homem alto e magro, que mantinha oculta a parte inferior de seu rosto sob um tênue véu que lhe caía até o peito.

- Rei Kull. – disse Delcardes – Devo pedir-lhe um favor antes que Saremes comece a falar, já que então deverei permanecer em silêncio.

- Pode falar. – disse Kull.

A mulher sorriu ansiosamente e entrelaçou as mãos.

- Peço-lhe que me permita casar com Kulra Thoom, da Zarfhaana.

Tu interveio antes que Kull pudesse falar.

- Milorde, este assunto já foi longamente discutido. Eu já imaginava que havia algum propósito oculto ao lhe pedirem esta visita. Esta mulher tem sangue real nas veias, e vai de contra os costumes da Valúsia permitir que as mulheres de sangue real se casem com estrangeiros de classe inferior.

- Mas o rei pode ditar outra coisa, se assim o deseja. – replicou Delcardes.

- Milorde – disse Tu, movendo as mãos como alguém que se encontra nos últimos estágios da irritação nervosa –, se lhe permitir casar-se desse modo, isso provavelmente será motivo de guerra, rebelião e discórdia durante os próximos cem anos.

Pareceu disposto a se lançar num discurso sobre classe social, genealogia e história, mas Kull lhe interrompeu, com sua breve reserva de paciência já esgotada.

- Por Valka e Hotath! Por acaso sou uma anciã ou um sacerdote, para ser importunado com tais assuntos? Se conserte e não mais me importune com questões matrimoniais. Por Valka! Na Atlântida, os homens e as mulheres se casam com quem querem, e com mais ninguém.

Delcardes fez cara feia para Tu, que se encolheu; logo, ela sorriu encantadoramente e se voltou para o divã, com um movimento ágil.

- Fale com Saremes, antes que ela sinta ciúmes de mim.

Kull olhou a gata com desconcerto. Ela tinha uma pelagem longa, sedosa e cinza, e olhos rasgados e misteriosos.

- Ela parece bem jovem, Kull, mas na verdade é muito velha. – disse Delcardes – É uma das gatas da velha raça, que viviam até os mil anos. Pergunte sua idade, Kull.

- Qual a sua idade, Saremes? – perguntou Kull, distraído.

- A Valúsia ainda era jovem, quando eu já era velha. – respondeu a gata, com voz clara, ainda que curiosamente timbrada.

Kull se sobressaltou violentamente.

- Por Valka e Hotath! – exclamou – Ela fala!

Delcardes pôs-se a rir suavemente, alegre, mas a expressão da gata não se alterou.

- Falo, penso, sei e sou. – acrescentou a gata – Fui aliada de rainhas e conselheira de reis, desde muito antes que as praias brancas da Atlântida conhecessem seus pés, rei da Valúsia. Vi os antepassados valusianos cavalgarem para os extremos mais orientais, para esmagarem aqueles da velha raça, e já estava aqui quando os da velha raça surgiram dos oceanos, há tantas eras que a mente humana se atordoa ao tentar medi-las. Sou mais velha que Thulsa Doom, a quem poucos homens viram. Vi surgirem impérios e reinos se desmoronarem, vi reis cavalgarem seus corcéis e saírem de suas guaridas. Fui uma divindade em minha época, e estranhos foram os neófitos que se inclinaram diante de mim, e terríveis os ritos praticados em minha honra. Fui respeitada por seres louvados de minha própria classe, seres tão estranhos quanto suas façanhas.

- Você consegue ler as estrelas e predizer o futuro? – perguntou Kull, cuja mente de bárbaro lançou-se de imediato sobre idéias materiais e práticas.

- De fato, os livros do passado e do futuro estão abertos diante de mim, e digo ao homem o que é bom que ele saiba.

- Neste caso – disse Kull –, diga-me onde está guardada a caixa secreta que Ka-nu me enviou ontem e que já não encontro.

- Tu a guardaste no fundo da bainha de sua adaga, e a esqueceu de imediato. – respondeu a gata.

Kull se sobressaltou, puxou a faca e sacudiu a bainha, da qual caiu uma delgada tira de pergaminho.

- Por Valka e Hotath! – exclamou – Saremes, você é a maga dos gatos! Veja isto, Tu!

Mas Tu mantinha os lábios apertados, formando uma linha de expressão desaprovadora, e olhou tenebrosamente para Delcardes. Ela lhe devolveu o olhar sem vacilar, e o conselheiro, irritado, virou-se para Kull.

- Reflita, milorde! Isto não passa de algum tipo de farsa ridícula.

- Tu, ninguém me viu guardar esta carta aqui, pois até eu mesmo havia esquecido.

- Milorde, qualquer espião poderia...

- Espião? Não seja mais estúpido do que já é, Tu. Por acaso, acredita que uma gata possa enviar espiões para que vejam onde escondo uma carta?

Tu suspirou. À medida que envelhecia, lhe era cada vez mais difícil conter as manifestações de exasperação diante dos reis.

- Pense, milorde, nos humanos que podem haver atrás da gata.

- Milorde Tu – interveio Delcardes com um tom de suave censura –, suas palavras me envergonham e ofendem Saremes.

Kull se sentiu vagamente aborrecido com Tu.

- A gata, pelo menos, fala. – ele disse a Tu – Isso, você não pode negar.

- Tem que haver algum truque. – sustentou obstinadamente Tu – O homem fala; os animais não o conseguem.

- As coisas não são assim. – disse Kull, convencido da realidade da gata falante, ávido para demonstrar que tinha razão – Um leão falou com Kambra, e os pássaros falavam com os anciãos da tribo da montanha do mar, dizendo-lhes onde a caça se escondia. Ninguém nega que os animais possam conversar entre si. Mais de uma noite, me deslizei pelos sopés das montanhas cobertas por bosques, ou saí pelas pradarias cobertas de capim, e ouvi os tigres rugirem uns aos outros, sob a luz das estrelas. Se é assim, por que alguns animais não poderiam aprender a falar com o homem? Houve um tempo em que eu quase conseguia entender os rugidos dos tigres. O tigre é meu totem, e é tabu para mim, como não seria em caso de auto-defesa. – acrescentou, sem dar-lhe importância.

Tu se sentiu constrangido. Que este chefe selvagem falasse de totem e tabu, estava tudo bem, mas lhe irritava muito ouvir tais observações dos lábios do rei da Valúsia.

- Milorde, uma gata não é um tigre. – ele disse.

- É bem verdade. – admitiu Kull – E esta é muito mais sábia que todos os tigres.

- Isso não é mais que a verdade. – disse Saremes, serenamente – Senhor conselheiro, acreditaria se ela lhe dissesse o que ocorre, neste momento, no tesouro real?

- Não! – exclamou Tu – Pelo que descobri, espiões astutos são capazes de ficarem a par de qualquer coisa.

- Nenhum homem pode se convencer, se não quiser. – disse Saremes, imperturbável, citando um velho ditado valusiano – E, no entanto, senhor Tu, deve saber que foi descoberto um excedente de vinte peças de ouro, e que neste exato momento um mensageiro cruza apressadamente as ruas, para lhes comunicar. Ah, creio que está chegando. – acrescentou, quando passos soaram no corredor externo.

Um delgado cortesão, vestido com as alegres roupas da tesouraria real, entrou na moradia, se inclinou profundamente e pediu permissão para falar. Uma vez que Kull a concedeu, o homem disse:

- Poderoso rei e senhor Tu, acabamos de encontrar um excedente de vinte peças de ouro no tesouro real.

Delcardes pôs-se a rir e aplaudiu, encantada. Tu, por sua vez, se limitou a perguntar:

- Quando descobriram isso?

- Há apenas meia hora. – foi a resposta.

- Quantos sabiam disso?

- Ninguém, meu senhor. Só eu e o tesoureiro real sabíamos, até o instante em que lhes comuniquei.

- Isto nós veremos! – exclamou Tu, que dispensou o homem num gesto áspero – Vá. Me ocuparei mais tarde com este assunto.

- Delcardes – disse Kull –, esta gata é sua; é verdade?

- Milorde, ninguém é dono de Saremes. – respondeu a mulher – Ela é minha convidada. É sua própria dona, como foi durante mil anos.

- Eu gostaria de tê-la no palácio. – disse Kull.

- Saremes – disse Delcardes com deferência –, o rei gostaria que você fosse sua convidada.

- Irei com o rei da Valúsia – disse a gata com dignidade –, e permanecerei no palácio real até o momento em que eu queira ir a qualquer outra parte, pois sou uma grande viajante, rei Kull, e às vezes me agrada sair pelo mundo e percorrer as ruas das cidades, situadas nos mesmos lugares onde há muito tempo eu vagava pelos bosques, e visitar as areias dos desertos onde, também há muito tempo, se ergueram ruas imperiais.


Desse modo, Saremes, a gata falante, chegou ao palácio real da Valúsia, acompanhada por seu escravo. Lhe foi dada uma câmara espaçosa, coberta com primorosos leitos e almofadões de seda. Diariamente, colocavam diante dela as melhores refeições da mesa real, e todo o pessoal do serviço do rei lhe rendia homenagem, exceto Tu, que grunhia ao ver uma gata exaltada desse modo, mesmo que ela pudesse falar. Saremes o tratava com um divertido menosprezo, mas recebia Kull com um nível de dignificada igualdade.

Comparecia freqüentemente ao salão do trono, transportada por seu escravo numa almofada de seda, pois este sempre a acompanhava para onde fosse.

Em outras ocasiões, era o próprio Kull quem comparecia à sua câmara, e ambos conversavam até o amanhecer, e foram muitas as histórias que a gata lhe contou, e muito antiga a sabedoria que ela lhe transmitiu. Kull a escutava com interesse e atenção, pois evidentemente esta gata era muito mais sábia que a maioria de seus conselheiros, e tinha mais sabedoria antiga que todos eles juntos. Suas palavras eram sentenciosas e oraculares, mas ela se negava a emitir profecias sobre os assuntos menores que se manifestavam na vida cotidiana do palácio ou do reino, exceto pelo fato de que ela lhe advertiu que se protegesse de Thulsa Doom, que havia enviado uma ameaça contra Kull.

- Pois eu, que vivi muito mais anos que os minutos que vocês viveram – disse –, sei que o homem se sente melhor em saber as coisas que ainda irão acontecer, pois o que há de ser, será, e o homem não pode impedi-lo nem acelerá-lo. É melhor caminhar na escuridão, quando o caminho tem que passar diante de um leão e não há outra via.

- Então – disse Kull –, se o que tem de acontecer termina acontecendo, algo que duvido, e se um homem a quem falam as coisas que hão de passar tem seu braço enfraquecido ou fortalecido por isto, quer dizer que isso também estava predestinado?

- Se ele estava predestinado ao que lhe disserem, sim. – respondeu Saremes, aumentando a perplexidade e a dúvida de Kull – No entanto, nem todos os caminhos da vida se estabelecem previamente, pois um homem pode fazer isto ou aquilo, e nem sequer os deuses sabem o que passa na mente de um homem.

- Nesse caso, nem tudo está predestinado se o homem pode seguir mais de um caminho. – refletiu Kull, duvidando – Como se pode então profetizar os acontecimentos?

- A vida tem muitos caminhos, Kull. – respondeu Saremes – Eu me encontro nas encruzilhadas do mundo, e sei o que há em cada um dos caminhos. Entretanto, nem os deuses sabem que caminho tomará o homem: se o da direita ou o da esquerda, uma vez que tenha chegado à encruzilhada que os divide. E uma vez que tenha começado a percorrer um deles, já não pode refazer seus passos.

- Então, em nome de Valka, por que não me indica os perigos ou as vantagens de seguir um caminho ou outro, quando chega a hora de escolher? – perguntou Kull.

- Porque até mesmo os poderes de alguém como eu têm também seus limites. – respondeu a gata –, e não podemos impedir o funcionamento da alquimia dos deuses. Não podemos retirar completamente o véu que cobre os olhos dos humanos, a não ser que os deuses tirem nosso poder e que causemos dano ao homem. Assim, a esperança acende sua lâmpada ao longo do caminho que o homem segue, mesmo que esse caminho seja o pior de todos. – Ao ver que Kull tinha dificuldade para compreender suas palavras, prosseguiu: – Como vê, milorde, nossos poderes também têm que estar sujeitos a limites, pois de outro modo, seríamos poderosos demais e ameaçaríamos os próprios deuses. Assim, um conjuro místico foi lançado sobre nós, e embora possamos abrir os livros do passado, não podemos oferecer mais que fugazes visões do futuro, através da bruma que o vela.

De alguma forma, pareceu a Kull que a argumentação de Saremes era bastante inconsistente e ilógica, e que cheirava a bruxaria e farsa, mas ao ver que os olhos frios e oblíquos da gata miravam-no sem piscar, não se sentiu inclinado a fazer objeção alguma, ainda que isso lhe ocorresse.

- E agora – disse a gata –, afastarei o véu, ainda que seja só por um instante, porque é pelo seu próprio bem... Permita que Delcardes se case com Kulra Thoom.

Kull se levantou, com um encolhimento de impaciência em seus poderosos ombros.

- Não quero ter nada a ver com o casamento de uma mulher. Que Tu se ocupe disso.

Kull, no entanto, meditou calmamente sobre essa idéia, e sua determinação sobre o assunto foi se enfraquecendo à medida que Saremes entretinha habilmente o conselho nas conversações físicas e morais que iam acontecendo.

Era realmente estranho ver Kull, com o queixo apoiado sobre seu enorme punho, inclinado para a frente pra beber nas claras entoações das palavras da gata Saremes, enroscada sobre uma almofada de seda, ou estendida languidamente sobre um divã, absorvida em falar sobre temas misteriosos e fascinantes, com os olhos brilhando-lhe estranhamente, quase sem mover os lábios – se é que os movia –, enquanto o escravo Kuthulos ficava em pé atrás dela, como uma estátua, imóvel e silencioso.

Kull valorizava muito as opiniões da gata, e se mostrava inclinado a lhe pedir conselhos sobre assuntos do governo, os quais ela dava cautelosamente, ou não dava. No entanto, os conselhos que Kull recebia costumavam coincidir com seus desejos mais íntimos, e ele começou a se perguntar se, por acaso, aquela gata não seria também capaz de ler as mentes dos homens.

A presença de Kuthulos lhe irritava, com seu aspecto tão austero, sua imobilidade e silêncio, mas Saremes não permitia que nenhum outro a atendesse. Kull tentou penetrar, com seu olhar, o véu que mascarava as feições do homem; mas, apesar de ser bastante tênue, não distinguiu nada no rosto que se escondia atrás dele e, por cortesia a Saremes, nunca pediu a Kuthulos que o tirasse.

Um dia, Kull compareceu à câmara de Saremes, e a gata lhe mirou com olhos enigmáticos. O escravo mascarado estava de pé atrás dela, como uma estátua.

- Kull – disse a gata –, afastarei o véu para ti. Brule, o lanceiro picto, guerreiro de Ka-nu e seu amigo, acaba de ser atacado por um monstro horrível, da superfície das águas do Lago Proibido.

Kull se ergueu de um salto, encolerizado e enfurecido.

- O quê? Brule? Em nome de Valka! O que ele está fazendo no Lago Proibido?

- Estava nadando em suas águas. Se apresse, porque ainda pode salvá-lo, mesmo que ele seja arrastado em direção ao país encantado, que se encontra sob o lago.

Kull se precipitou em direção à porta. Se sentia perplexo, mas não tanto quanto se sentiria caso o nadador fosse outro, porque conhecia a implacável irreverência do chefe picto, um dos mais poderosos aliados da Valúsia.

Começou a gritar, chamando os guardas, mas a voz de Saremes lhe interrompeu.

- Não, milorde. Será melhor se fores sozinho. Nem sequer vossas ordens induziriam homem algum a acompanhá-lo às águas daquele lago cruel; e, segundo a lenda da Valúsia, a morte espera qualquer um que entre em suas águas, exceto o rei.

- Está bem, irei só – assentiu Kull –, e assim salvarei Brule da ira do povo, caso escape das garras dos monstros. Informe Ka-nu.

Kull rechaçou, com grunhidos sem palavras, as respeitosas perguntas que lhe fizeram, montou em seu grande corcel e saiu da Valúsia a toda velocidade. Cavalgava só, pois havia ordenado que ninguém o seguisse. O que tinha de fazer, podia fazê-lo sozinho, e não desejava que houvesse alguém presente quando tirasse Brule, ou o cadáver de Brule, das profundezas do Lago Proibido. Amaldiçoou a implacável falta de consideração do picto, e também amaldiçoou o tabu que pendia sobre o lago, e cuja violação poderia causar uma rebelião entre os valusianos.

O crepúsculo descia pelas montanhas de Zalgara, quando Kull parou seu cavalo junto à margem do lago, que se estendia em meio a um bosque grande e solitário. Com certeza, não havia nada de proibido em suas águas azuis e plácidas, com a praia toda branca, e as ilhas diminutas que se erguiam de seu fundo pareciam pequenas gemas de esmeralda e jade. Uma débil e trêmula neblina se erguia delas, o que dava ao ar um alento de irrealidade que se estendia por toda a área ao redor do lago. Kull escutou com atenção por um momento, e teve a impressão de que uma música débil e distante surgia das águas cor-de-safira.

Lançou uma praga impaciente, e se perguntou se, por acaso, não estaria sendo enfeitiçado. Despiu-se de todas as roupas e ornamentos, com exceção do cinto, tanga e espada, e adentrou as trêmulas águas azuis até estas lhe chegarem à altura das coxas. Logo, sabendo que a profundidade aumentava rapidamente, ele aspirou profundamente o ar e mergulhou.

Enquanto descia através do brilho cor-de-safira, teve tempo para pensar que aquela talvez fosse uma missão estúpida. Deveria primeiro averiguar, através de Saremes, onde Brule havia nadado no momento em que fora atacado, e se seus próprios esforços estavam destinados a resgatar o guerreiro ou não. No entanto, pensou que talvez a gata não o dissesse e que, mesmo que ela lhe assegurasse o mais estrondoso dos fracassos, ele tentaria de qualquer maneira o que tentava fazer agora. Pelo visto, havia algo de verdadeiro nas palavras de Saremes, quando ela afirmava que era melhor não contar aos homens nada sobre o futuro.

Quanto ao lugar onde Brule estava nadando, não faria diferença, pois o monstro poderia tê-lo arrastado para qualquer parte. Desse modo, Kull resolveu explorar todo o leito do lago, até que...

Enquanto refletia acerca de tudo isso, uma sombra passou velozmente perto dele, como um vago tremor no tremular de jade e safira do lago. Foi consciente de que outras sombras também passavam a seu lado, de todos os lugares, mas não conseguiu distinguir suas formas.

Abaixo dele, começou a vislumbrar o fundo do lago, que parecia emitir uma estranha radiação. Agora, as sombras lhe cercavam por completo, tecendo uma rede serpentina sobre ele; uma rede com cores de mil matizes distintos, sempre mutáveis. Aqui, as águas adquiriram a cor do topázio, e aquelas coisas se ondularam e tremeluziram em seu mágico esplendor. Assim como os tons e sombras das cores, eram vagas e irreais, opacas e ao mesmo tempo brilhantes.

Após perceber que eles não tinham a intenção de lhe fazer mal algum, Kull não lhes deu maior atenção e dirigiu o olhar para o leito do lago, que agora roçou levemente com os pés. Ele se sobressaltou por um momento, pois poderia quase jurar que acabava de pisar sobre um ser vivo, já que percebeu um movimento rítmico sob os pés descalços.

O brilho fraco era evidente adiante, no fundo do lago, pois podia ver que o leito do lago se estendia por todos os lados, até desaparecer nas tranqüilas sombras cor-de-safira, e formava uma superfície sólida que acendia e apagava com uma inquietante regularidade. Kull se inclinou para olhar com mais atenção: o solo estava coberto por uma espécie de substância feito musgo, que brilhava como uma chama branca. Era como se o leito do lago fosse formado por milhares de vaga-lumes que abriam e fechavam suas asas em uníssono. E este musgo parecia palpitar sob seus pés como algo vivo.

Agora, Kull começava a nadar de novo para a superfície. Criado entre as montanhas do mar da Atlântida, era quase como uma criatura marinha. Se sentia tão à vontade entre as águas quanto qualquer lemuriano, e era capaz de permanecer sob a superfície da água pelo dobro do tempo de qualquer nadador comum, mas aquele lago era um tanto profundo, e ele desejava conservar toda sua fortaleza.

Chegou à superfície, encheu o enorme peito de ar e voltou a mergulhar. As sombras voltaram a envolvê-lo, quase perturbando-lhe a visão com seus brilhos fantasmagóricos. Desta vez, nadou mais rapidamente e, ao chegar ao fundo, começou a caminhar por ele tão rapidamente quanto lhe permitia aquela substância pegajosa que envolvia seus pés, enquanto o musgo flamejante parecia respirar e acender; aquelas coisas coloridas relampejavam a seu redor, e umas sombras monstruosas de pesadelo surgiam por trás de seu ombro para caírem sobre o ardente fundo.

O musgo estava coberto pelos ossos e caveiras dos homens que se atreveram a nadar no Lago Proibido. Subitamente, acompanhando o movimento das águas, uma coisa avançou contra Kull. A princípio, o rei acreditou que se tratasse de um polvo gigante, pois o corpo era o de um polvo, dotado de longos e ondulantes tentáculos; mas, ao atacá-lo, percebeu que ele tinha as pernas de um homem, e que um espantoso rosto semi-humano lhe olhava entre os braços retorcidos e serpentinos do monstro. Kull firmou os pés e, ao notar que os cruéis tentáculos lhe enroscavam nas pernas, ele investiu a espada, golpeando com fria exatidão no meio daquele rosto demoníaco, fazendo a criatura desmoronar e morrer a seus pés, entre cruéis e silenciosos estremecimentos. O sangue se espalhou como uma névoa a seu redor e, com um forte impulso de suas pernas contra o fundo, Kull subiu novamente à superfície.

Sua cabeça surgiu violentamente à luz, que se apagava rapidamente, e nesse mesmo instante uma grande forma avançou espumando em sua direção: era uma estranha aranha d’água, porém maior que um porco, e seus olhos frios brilhavam com uma mirada infernal. Kull se manteve na superfície com movimentos dos pés e de uma mão, e levantou sua espada quando a aranha se precipitava sobre ele. A lâmina partiu o corpo em dois, e o monstro afundou em silêncio.

Um leve som o fez se virar a tempo de ver que outra, ainda maior que a primeira, já estava quase sobre ele. O monstro estendeu, sobre os braços e ombros do rei, pegajosos fios de teia-de-aranha, que significariam a ruína para qualquer um que não fosse um gigante como o rei. Mas Kull cortou as duras correntes como se fossem cordas, segurou uma pata daquela coisa que se erguia sobre ele e atravessou o monstro uma vez após outra, até que o notou debilitado, o soltou e o animal flutuou, se afastando e avermelhando as águas a seu redor.

- Por Valka! – murmurou o rei – Parece que vou ficar sem nada pra fazer. E, no entanto, é fácil demais matar estas coisas. Como superaram Brule, que só se vê superado por mim em combate em todos os Sete Impérios?

Mas Kull não tardaria a descobrir que outros espectros mais cruéis povoavam os abismos mortais do Lago Proibido. Mergulhou de novo, e seu olhar só encontrou desta vez as sombras coloridas e os ossos de homens esquecidos. Voltou a nadar para a superfície, em busca de ar, e logo mergulhou pela quarta vez.

Não estava longe de uma das ilhas e, ao descer, se perguntou que coisas estranhas se esconderiam por trás da densa folhagem esmeralda que cobria as ilhas. Segundo a lenda, ali se haviam levantado templos e santuários que não foram construídos por mãos humanas e, em certas noites, os seres do lago surgiam das profundezas para realizar ali seus ritos misteriosos.

A agitação se produziu justo no momento em que seus pés tocavam o musgo. Vinha de trás, e Kull, avisado por um instinto primitivo, se virou bem a tempo de ver uma silhueta grande que se erguia sobre ele; uma forma que não era nem de homem nem de animal, mas uma estranha e horrível mistura de ambos. Sentiu, então, dedos gigantescos se fecharem sobre seu braço e ombro.

Resistiu selvagemente, mas aquela coisa agarrou com firmeza o braço que segurava a espada, deixando-o impotente, e suas garras afundaram profundamente no antebraço esquerdo. Tomado por um impulso vulcânico, se retorceu para dar meia volta e poder finalmente ver seu atacante. Aquela coisa parecia com um tubarão monstruoso, mas dotada de um chifre longo e duro, que se curvava como um sabre e lhe sobressaía do focinho. Tinha quatro braços, de forma humana, mas era inumano no tamanho e na força que havia nas garras em seus dedos.

Com apenas dois braços, o monstro imobilizava Kull, enquanto com os outros dois lhe inclinava a cabeça para trás, para quebrar-lhe a nuca. Mas nem um ser tão persistente quanto este, por mais poderoso que fosse, conseguia dominar tão facilmente Kull da Atlântida. Uma raiva selvagem se apoderou dele, e o rei da Valúsia ficou furioso.

Ele firmou os pés sobre o musgo, soltou o braço esquerdo com uma poderosa contorção e um puxão do ombro, e, com a velocidade de um felino, tentou passar a espada da mão direita à esquerda. Ao ver fracassado seu intento, golpeou o monstro selvagemente com o punho. Mas a zombeteira matéria cor-de-safira que lhe cercava o enganou e amorteceu a força de seu golpe. O homem-tubarão fez o focinho descer, mas, antes que pudesse golpear para cima, Kull agarrou o chifre com a mão esquerda e o segurou com firmeza.

A isso, seguiu uma verdadeira prova de poder e resistência. Kull, incapaz de se mover rapidamente na água, sabia que sua única esperança consistia em permanecer próximo ao seu inimigo, para resistir a ele e, desse modo, contrabalançar a maior rapidez do monstro. Ele se esforçou desesperadamente para libertar o braço que segurava a espada, a ponto de o homem-tubarão se ver obrigado a prendê-lo com as quatro mãos de que dispunha. Kull continuava segurando firmemente o chifre, sem se atrever a soltá-lo, para que não o dilacerasse com sua terrível investida para cima, enquanto o homem-tubarão tampouco se atrevia a afastar uma só de suas mãos do braço de Kull, que sustentava a longa espada.

Assim engalfinhados, forcejaram e se retorceram. Mas Kull não demorou em perceber que estava condenado se continuassem daquela forma, pois já começava a sofrer os efeitos da falta de ar. O brilho que ele observou nos olhos do homem-tubarão lhe indicou que ele também havia percebido que só precisava segurar Kull desse modo, sob a superfície da água, até que ele se afogasse.

Era uma situação realmente desesperadora para qualquer homem. Mas Kull da Atlântida não era um homem comum. Treinado desde a infância numa escola dura e sangrenta, dotado de músculos de aço e de um cérebro impávido, acrescentava a tudo isso a coordenação de movimentos que distingue o super-lutador, uma valentia que nunca desanimava e uma ira que, em certas ocasiões, lhe impulsionava a realizar façanhas sobre-humanas.

Agora, consciente que o fim se aproximava com rapidez e impulsionado freneticamente por sua própria impotência, decidiu tomar uma atitude tão desesperada quanto a necessidade em que se encontrava. Soltou o chifre do monstro, ao mesmo tempo em que inclinava ao máximo o corpo para trás, e com a mão livre agarrava o braço mais próximo daquela coisa.

O homem-tubarão golpeou imediatamente, e o chifre arranhou uma das coxas de Kull, quando repentinamente (atlante afortunado!) se enganchou no pesado cinto do rei. Enquanto o monstro lutava para soltar o chifre, Kull imprimiu toda a potência aos dedos que seguravam um dos braços daquela coisa e esmagou uma carne fria e úmida, junto com ossos inumanos, como se fossem uma fruta madura.

A boca do homem-tubarão se abriu silenciosamente devido ao tormento que sofria e, com o chifre já livre, voltou a golpear selvagemente. Kull evitou o golpe, mas perdeu o equilíbrio e ambos caíram juntos, meio tragados pela superfície de jade sobre a qual se moviam. E, enquanto continuavam forcejando ali, Kull finalmente soltou o braço que segurava a espada, afastando-o das garras debilitadas do monstro, e lançou um golpe para cima, rachando o monstro e abrindo-o em dois.

Toda a luta havia consumido apenas um momento, mas para Kull pareceram horas, enquanto nadava a toda velocidade para o alto, lutando contra a tontura que se apoderava de sua cabeça e contra o grande peso que parecia querer esmagar-lhe as costelas. Viu debilmente que o fundo do lago se elevava repentinamente a seu lado, e percebeu que formava um declive que dava numa ilha. Logo, a água pareceu ganhar vida a seu redor, e se sentiu açoitado, dos ombros até os calcanhares, por gigantescos anéis que nem sequer seus músculos de aço podiam quebrar. Começava a lhe falhar a consciência, sentia que se esgotava a uma velocidade terrível, notou em sua cabeça o som de muitas sinetas e então, repentinamente, se encontrou com a cabeça por cima da água e seus torturados pulmões absorveram ar em grandes quantidades. Se agitou, envolvido na escuridão maior, e só teve tempo de aspirar uma prolongada porção de ar, antes de se ver arrastado novamente para o fundo.

A luz voltou a brilhar a seu redor, e ele viu novamente o musgo flamejante palpitando lá à distância, no fundo. Se vira agarrado por uma grande serpente, que havia lhe envolvido várias vezes com os anéis de seu corpo sinuoso, como enormes cabos, e que agora lhe arrastava para um destino que só Valka podia saber.

Desta vez, Kull não ofereceu resistência, e preferiu conservar suas forças. Se a serpente não o manteve sob a água por tempo suficiente para morrer afogado, sem dúvida alguma lhe daria uma oportunidade de lutar quando a criatura chegasse a seu esconderijo, ou ao lugar para o qual o levava. Tal e como se encontrava aprisionado, os membros de Kull estavam tão presos que não conseguiria nem soltar um braço, muito menos fugir dela.

A serpente, que avançava rapidamente através das profundezas azuis, era a maior que Kull jamais vira, pois media uns sessenta metros cobertos de escamas de cor jade e dourada, vívidas e maravilhosamente coloridas. Seus olhos, quando ela se virou para ele, eram de um intenso fogo gelado, se é que algo assim era concebível. Apesar do risco de sua situação, a alma fantasiosa de Kull não pôde deixar de se maravilhar diante daquela cena tão estranha: a grande forma verde e dourada voando através do ardente topázio do lago, enquanto as cores das sombras ondulavam languidamente a seu redor.

O fundo, que parecia uma gema acesa, voltou a se curvar para cima, como se estivessem se aproximando de uma ilha ou da margem de um lago, quando repentinamente, uma grande caverna apareceu diante deles. A serpente deslizou para dentro, o musgo flamejante desapareceu, e Kull se encontrou parcialmente sobre a superfície da água, envolto pela escuridão. Foi transportado deste modo durante o que pareceu um longo tempo, e logo o monstro voltou a mergulhar.

Saíram novamente à luz, mas uma luz como Kull jamais tinha visto. Era um brilho luminoso que tremulava crepuscularmente sobre a superfície das águas, que permaneciam quietas e escuras. Kull soube então que se encontrava no reino encantado, sob o fundo do Lago Proibido, pois esta não era nenhuma radiação terrena, mas uma luz negra, mais negra que qualquer escuridão, apesar de iluminar aquelas águas cruéis o suficiente para poder ver o brilho opaco da águas e seu próprio reflexo escuro nelas. De repente, os anéis se afrouxaram ao redor de seus membros, e ele se impulsionou rapidamente em direção a um enorme vulto, que havia surgido dentre as sombras à sua frente.

Nadou com força e se aproximou do que, em alguma época, havia sido uma grande cidade. Se elevava mais e mais, sobre uma grande superfície de pedra negra, até que seus sombrios capitéis se perdiam na escuridão, acima até daquela luz profana que, também negra, parecia ter uma tonalidade diferente. Se tratava de enormes edifícios quadrados, de construção maciça; de poderosos blocos basálticos que saíram a seu encontro quando ele surgiu de dentro das águas pegajosas e começou a subir os degraus talhados na pedra, como se fossem talhados na rocha viva de um escarpado. Colunas gigantescas se elevavam entre os edifícios.

Nenhum resplendor de luz terrena aliviava a macabra visão desta cidade inumana, mas a luz negra brotava de seus muros e torres para derramar-se sobre as águas, em vastas ondas palpitantes.

Kull se deu conta de que uma enorme multidão de seres parecia esperá-lo num amplo espaço que se estendia diante dele, aberto entre os edifícios que se afastavam para os lados. Piscou, e fez esforço para acostumar sua vista a esta estranha iluminação. Os seres ficaram mais próximos, e um sussurro percorreu suas filas, como o ondular da grama sob o vento noturno. Eram luminosos e sombreados, reluzentes contra a negritude de sua cidade, e seus olhos eram fantasmagóricos e luminosos.

Então, o rei viu um que se destacava dos demais, diante dele. Parecia mais com um homem, e possuía um rosto barbudo, altivo e nobre, embora uma testa franzida se estendesse sobre suas magníficas sobrancelhas.

- Você vem como todos de sua raça. – disse repentinamente este homem lacustre – Ensangüentado e segurando uma espada avermelhada.

- Por Valka e Hotath! – exclamou o rei – A maior parte desse sangue é minha, e foi derramada pelos bichos de seu maldito lago.

- A morte e a ruína seguem o curso de sua raça. – disse sombriamente o homem lacustre – Acaso nós não sabemos? Claro que sim; nós mesmos reinamos no lago de águas azuis, antes que a humanidade fosse sequer um sonho dos deuses.

- Ninguém os incomoda... – começou a dizer Kull.

- Porque temem fazê-lo. Nos velhos tempos, os homens da terra tentaram invadir nosso reino de escuridão. Nós os matamos e se organizou a guerra entre os filhos dos homens e o povo dos lagos. Saímos de nosso mundo e espalhamos o medo entre os da terra, pois sabíamos que eles só podiam significar a morte para nós, e que eles só se sentem predispostos a matar. Lançamos conjuros e encantos. Fizemos seus cérebros arrebentarem e perturbamos suas almas com nossa magia, até que se viram obrigados a nos pedirem a paz. A partir de então, os homens da terra impuseram um tabu sobre este lago, de modo que nenhum homem pode chegar até aqui, exceto o rei da Valúsia. Isso ocorreu há milhares de anos e, desde então, nenhum homem chegou ao país encantado e pôde sair dele, salvo como um cadáver flutuante sobre as águas tranqüilas do lago superior. Rei da Valúsia, ou quem quer que você seja, está condenado.

Kull o olhou, desafiante.

- Não vim à procura de seu reino condenado – ele alfinetou –, mas de Brule, o lanceiro, a quem vocês arrastaram para cá.

- Está mentindo. – disse o homem lacustre – Nenhum homem se atreveu a entrar neste lago há mais de cem anos. Você veio buscar tesouros, ou para saquear e matar, como todos de sua linhagem sangrenta. E morrerá por isso!

Kull sentiu então os sussurros dos encantos mágicos que lhe rodeavam, que enchiam o ar e adotavam forma física, flutuando à trêmula luz como teias de aranha muito tênues que se agarravam a ele com vagos tentáculos. Mas ele soltou uma imprecação impaciente, e os afastou para um lado com um movimento da mão nua, fazendo-os desaparecer. Porque, segundo a feroz lógica elementar do selvagem, a magia da decadência não possui força alguma.

- Você é jovem e forte. – disse o rei lacustre – A podridão da civilização ainda não penetrou em sua alma e é possível que nossos encantamentos não lhe façam o menor mal, porque não os entende. Nesse caso, devemos tentar outras coisas.

Os seres lacustres que lhe cercavam sacaram suas adagas e lançaram-se sobre ele. O rei pôs-se a rir, apoiou as costas contra uma coluna e apertou o cabo de sua espada até que os músculos de seu braço direito se sobressaíram como grandes saliências.

- Este sim, é um jogo que conheço bem, fantasmas. – ele disse, com uma nova gargalhada.

Todos pararam de repente.

- Não tente escapar de seu destino – disse o rei do lago –, pois somos seres imortais e não podemos morrer pelas mãos de um mortal.

- Agora, é você quem está mentindo – respondeu Kull, com a astúcia típica do bárbaro –, pois segundo suas próprias palavras, temia a morte que aqueles de minha raça poderiam lhes causar. É possível que vocês consigam viver indefinidamente, mas o aço pode com vocês. Seria bom se vocês pensassem melhor. Vocês são fracos, delicados e não estão acostumados a lutar; nem sequer sabem segurar as armas como devem. Já eu nasci e fui educado para matar. Podem acabar comigo, posto que são milhares, e eu, um só, mas seus encantamentos fracassaram comigo e lhes asseguro que muitos de vocês morrerão antes que eu caia. Vou dizimá-los em grandes quantidades; então pensem melhor, homens do lago: valerá a pena me matar, em troca de tantas vidas suas?

Kull sabia muito bem que todos aqueles seres, capazes de matar com o aço, podiam morrer pelo aço. Por isso, não sentia o menor medo. Sua figura, ameaçadora e tenebrosa, sangrenta e terrível, se erguia sobre todos eles.

- Reflitam. – ele repetiu – É bem melhor me trazerem Brule, e ambos partiremos em paz. Caso contrário, meu cadáver se verá rodeado por pilhas de mortos seus, quando a batalha houver terminado. Além disso, se eu morrer aqui, haverá pictos e lemurianos que seguirão meu rastro, mesmo sob as águas do Lago Proibido, até encharcar este país encantado com o sangue de vocês, ou o que tiverem nas veias. Eles têm seus próprios tabus, e não recuam nem se deixam intimidar pelos tabus das raças civilizadas, nem lhes importa o que possa acontecer à Valúsia, pois só pensariam em mim, que sou de sangue bárbaro, como eles mesmos.

- O velho mundo continua sua marcha pelo caminho da ruína e do esquecimento. – disse o rei lacustre com tristeza – E nós, que fomos todo-poderosos em tempos passados, temos que suportar agora o desafio de um selvagem arrogante em nosso próprio reino. Jure que jamais voltará a pisar no Lago Proibido, que nunca permitirá que outros violem o tabu, e serás livre.

- Primeiro, traga a meu lado o lanceiro.

- Nenhum homem assim chegou a este lago.

- Não? A gata Saremes me disse...

- Saremes? Sim, nós a conhecemos de velhos tempos, quando atravessou a nado as águas verdes e viveu durante uns séculos nas cortes do país encantado; possui a sabedoria que só o tempo dá, mas eu não sabia que ela falava a linguagem dos homens da terra. De qualquer modo, esse homem não está aqui, e lhe juro...

- Não me jure pelos deuses ou demônios. – interrompeu Kull – Só quero sua palavra de homem.

- Eu a dou para você. – disse o rei lacustre.

E Kull acreditou nele, pois havia naquele rei um porte majestoso que o fazia sentir-se estranhamente pequeno e rude.

- E eu, por minha vez – disse Kull –, lhe dou minha palavra, que nunca quebrei, de que nenhum homem quebrará o tabu, nem voltará a incomodá-los de modo algum.

- E eu creio em você, pois é um homem terrestre diferente de todos que conheci até agora. Você é um rei de verdade e, o que é mais importante, um homem de verdade.

Kull o agradeceu e embainhou a espada. Logo, virou em direção aos degraus.

- Sabe como chegar ao mundo externo, rei da Valúsia?

- Quanto a isso – respondeu Kull –, suponho que se eu nadar por tempo suficiente, terminarei encontrando o caminho. Sei que a serpente me trouxe através das águas, passando por baixo de uma ilha e possivelmente muitas, e que nadamos numa caverna durante um longo tempo.

- Você é sincero – disse o rei lacustre –, mas poderia passar toda a eternidade nadando na escuridão. – Ele ergueu as mãos, e uma criatura grotesca nadou até o pé dos degraus: – Este é um corcel cruel – ele acrescentou –, mas lhe levará a salvo até a própria margem do lago superior.

- Um momento. – disse Kull – Me encontro agora sob uma ilha, sob a terra firme, ou este território se encontra realmente sob o fundo do lago?

- Você se encontra no centro do universo, como sempre esteve. O tempo, o lugar e o espaço não são mais que ilusões, não têm existência mais que na mente do homem, que deve estabelecer limites e fronteiras para poder compreender. Só existe a realidade subjacente, da qual todas as aparências não são mais que uma manifestação exterior, do mesmo modo que o lago superior se vê alimentado pelas águas que surgem deste, que é o verdadeiro lago. Vá agora, rei, pois você é um homem verdadeiro, ainda que seja apenas o primeiro de uma maré que se inicia, cheia de selvageria, que terminará envolvendo o mundo, à medida que este se encolhe.

Kull prestou uma atenção respeitosa àquelas palavras que ele pouco compreendeu, embora não tenha deixado de perceber que eram muito mágicas. Apertou a mão do rei lacustre, se estremecendo um pouco ao contato de algo que era carne, mas não humana. Logo, observou mais uma vez os grandes edifícios negros que se erguiam silenciosos; contemplou as formas de vaga-lumes, que murmuravam entre si; estendeu o olhar por sobre a brilhante superfície das águas, sulcadas por ondas de luz negra, que pareciam arrastar-se como aranhas, e finalmente voltou-se, desceu as escadas que conduziam à margem da água, e montou sobre o corcel lacustre que lhe esperava.

Transcorreram eras cheias de covas escuras e águas que se precipitavam, do sussurro de monstros gigantescos que não podia ver; às vezes por cima da superfície e outras por baixo d’água, o corcel transportava o rei, até que finalmente apareceu o musgo flamejante, e subiram através do azul da água agitada. Logo, Kull avançou em direção à terra.

O valoroso cavalo de Kull aguardava impaciente, no local em que o rei o deixara. A lua começava a se levantar sobre o lago e Kull não conseguiu disfarçar sua surpresa.

- Por Valka! Faz apenas uma hora que desmontei aqui mesmo. Acreditei que tivessem transcorrido muitas horas, e até dias, desde então.

Ele montou e regressou a cavalo para a capital da Valúsia, sem deixar de pensar que talvez houvesse algum significado oculto nas observações do rei lacustre sobre a ilusão do tempo.


Kull se sentia cansado, irritado e perturbado. A viagem através do lago havia limpado-lhe o sangue, mas o movimento sobre o cavalo lhe abriu o ferimento na coxa, que começou a sangrar de novo. Além disso, a perna estava rígida e lhe irritava um pouco. No entanto, seu principal pensamento era o fato de que Saremes lhe havia mentido – fosse por ignorância ou com intenção maliciosa –, algo que quase lhe custara a vida. Por que razão?

Lançou uma praga, e pensou no que Tu diria. Mas até uma gata falante poderia se equivocar inocentemente. De qualquer modo, decidiu não levar suas palavras em conta.

Cruzou silenciosamente as ruas prateadas da antiga cidade, e os homens que montavam a guarda diante do palácio ficaram boquiabertos ao verem-no aparecer, mas, prudentemente, não lhe fizeram perguntas.

Encontrou o palácio alvoroçado. Praguejou e se dirigiu com o passo irritado à sala do conselho e, de lá, à câmara da gata Saremes. Ela estava enroscada, imperturbável, sobre uma almofada; agrupados na câmara, se encontravam Tu e os principais conselheiros, cada um deles tentando convencer os demais. O escravo Kuthulos não se via em parte alguma.

Kull se viu saudado por uma explosiva aclamação de gritos e perguntas, mas ele se dirigiu diretamente à almofada ocupada por Saremes, e observou-a com o olhar brilhante.

- Saremes – disse o rei –, você mentiu pra mim.

A gata o olhou fixamente, bocejou e não respondeu. Kull permaneceu diante dela, irritado, e Tu lhe tomou por um braço.

- Kull, onde esteve, em nome de Valka? De onde vem este sangue?

Kull sacudiu-lhe a mão, irritado.

- Deixe-me. – disse ele – Esta gata me enviou para cumprir uma missão estúpida... Onde está Brule?

- Kull!

O rei deu meia-volta e viu Brule, que nesse momento entrava na sala, com suas roupas escassas manchadas de poeira, como se tivesse cavalgado duramente. Os traços de bronze do picto continuavam impassíveis, mas em seus olhos escuros surgiu uma expressão de alívio.

- Em nome dos sete demônios! – exclamou o guerreiro, mal-humorado demais para esconder a emoção que o embargava – Meus cavaleiros vasculharam as montanhas e os bosques. Onde você estava?

- Procurando seu valioso cadáver, nas profundezas do Lago Proibido. – respondeu Kull, com uma expressão de alegria ao ver a perturbação refletida no rosto do picto.

- O Lago Proibido! – exclamou Brule, com a liberdade própria do selvagem – Está com seu juízo perfeito? O que você ia fazer lá? Ontem, acompanhei Ka-nu até a fronteira zarfhaana e, ao voltar, soube que Tu havia posto todo o exército em pé de guerra para procurá-lo. Desde então, meus homens se espalharam em todas as direções, exceto a do Lago Proibido, onde nunca nos ocorrera procurá-lo.

- Saremes mentiu pra mim... – o rei começou a dizer.

Mas sua voz se viu abafada por uma explosão de vozes que lhe repreendiam, e cujo tema principal consistia em dizer que um rei não devia nunca desaparecer sem cerimônia alguma, e deixar que o reino cuidasse de si mesmo.

- Silêncio! – rugiu finalmente Kull, com os braços levantados e um brilho perigoso no olhar – Por Valka e Hotath! Acaso sou algum garoto para ter que pedir permissão? Tu, conte-me o que ocorreu aqui.

Após um silêncio repentino que se fez depois desta explosão de cólera régia, Tu começou a se explicar.

- Milorde, fomos enganados desde o início. Esta gata não é mais que um engano e uma fraude perigosa, tal e como eu havia afirmado.

- E, no entanto...

- Milorde, nunca ouviste falar de homens capazes de disfarçar suas vozes à distância, fazendo-as aparecer como se fosse outro que falasse, ou como se soassem palavras pronunciadas por seres invisíveis?

- Claro! Por Valka! – exclamou Kull repentinamente, ruborizando-se – Fui um estúpido em tê-lo esquecido. Um velho bruxo da Lemúria possuía esse dom. No entanto, quem falava...?

- Kuthulos! – exclamou Tu – Também fui um estúpido ao não lembrar de Kuthulos: um escravo, sim, mas o maior erudito e o homem mais sábio dos Sete Impérios. Escravo daquela desalmada da Delcardes, que deve estar agora se retorcendo por causa da tortura.

Kull lhe dirigiu uma penetrante exclamação.

- Sim, milorde. – prosseguiu Tu, severo – Quando cheguei aqui e descobri que havia partido só, e ninguém soube me dizer pra onde, suspeitei imediatamente de uma traição. Me sentei então para refletir. E me lembrei de Kuthulos, e sua arte de fingir vozes, e como essa gata fingida estivera dizendo coisas pequenas, sem lhe fazer nenhuma grande profecia, oferecendo falsos argumentos, com a intenção de te refrear. Percebi então que Delcardes havia te enviado esta gata e Kuthulos para enganar-te, para ganhar a vossa confiança. Mandei buscar Delcardes e submeti-a a tortura, para que confessasse tudo. Ela havia planejado as coisas de forma bem astuta. Ah, claro... Saremes devia levar sempre consigo o escravo Kuthulos, para que ele pudesse falar com sua voz fingida e induzir estranhas idéias em vossa mente.

- Então, onde está Kuthulos? – perguntou Kull.

- Havia desaparecido quando cheguei à câmara de Sameres e...

- Lhe saúdo, Kull! – exclamou então uma voz alegre, vinda da porta, pela qual entrou na sala uma figura barbuda feito um duende, acompanhada por uma moça delgada e aparentemente assustada.

- Ka-nu! Delcardes! Então, terminaram não lhe torturando?

- Oh, milorde! – exclamou a jovem, se ajoelhando diante dele e abraçando-lhe as pernas – Sou culpada de tê-lo enganado, milorde, mas não pretendia lhe fazer mal algum. Eu só desejava me casar com Kulra Thoom!

Kull tomou-a pelos ombros e fê-la se levantar, perplexo, mas apiedado ao ver o evidente terror e remorso daquela mulher.

- Kull – disse Ka-nu –, é uma sorte que haja voltado quando eu o fiz, a tempo de evitar que você e Tu lançassem o reino ao mar. – Tu emitiu um grunhido sem palavras, sempre invejoso do embaixador picto, que também era conselheiro de Kull – Encontrei todo o palácio alvoroçado quando voltei: os homens andavam de um lado a outro, tropeçavam uns nos outros sem saberem o que fazer. Enviei Brule e seus cavaleiros para lhe procurar, e me dirigi à câmara de torturas... naturalmente, isso foi a primeira coisa que fiz, posto que Tu havia ficado responsável por tudo... – O conselheiro-chefe o olhou com uma careta – O fato é compareci à câmara de torturas – prosseguiu calmamente Ka-nu –, e os encontrei prestes a torturarem a jovem Delcardes, que nada fazia senão chorar e contar-lhes tudo o que tinha para contar, apesar deles não acreditarem nela. É apenas uma garota inquisitiva, Kull, apesar de toda a sua beleza. Então, eu a trouxe aqui. Delcardes lhe disse a verdade, Kull, ao lhe informar que Saremes era sua convidada e que se tratava de uma gata muito antiga. Isso é certo. É de fato uma gata da Raça Antiga, mais sábia que outros gatos; ela vai e vem aonde quiser... mas não é mais do que isso: uma simples gata. Delcardes tinha, no palácio, espiões que lhe informaram de detalhes tão pouco importantes, como o lugar onde você havia guardado uma carta, na bainha de sua adaga, ou do excedente encontrado no tesouro... O cortesão que lhe informou isso era exatamente um desses espiões, e comunicou o fato a ela antes de dizê-lo ao tesoureiro real. Seus espiões eram seus servos mais leais e próximos; as coisas que lhe contavam não podiam lhe causar mal algum e, em troca, ajudariam a ela, de quem todos gostam, porque não tem a intenção de fazer mal a ninguém. Sua idéia consistia em fazer Kuthulos falar através da boca de Saremes, e ganhar sua confiança, através de pequenas profecias e fatos dos quais qualquer um poderia saber, como adverti-lo contra Thulsa Doom. Logo, através da constante sugestão da questão, pretendia obter de você a permissão para que Kulra Thoom se casasse com Delcardes. Esse era o único desejo da garota.

- E então, Kuthulos se tornou um traidor. – disse Tu.

Nesse momento, se fez um ruído na porta da sala e entraram uns guardas, arrastando pelos braços uma figura com um véu no rosto e as mãos amarradas às costas.

- Kuthulos!

- Sim, Kuthulos. – assentiu Ka-nu, embora não parecesse estar muito tranqüilo, pois seus olhos se moviam inquietos – Kuthulos, sem dúvida, com o véu sobre o rosto para esconder assim os movimentos de sua boca e pescoço, ao falar através de Saremes.

Kull observou a figura silenciosa que se encontrava em pé diante dele, como uma estátua. Um profundo silêncio se fez entre o grupo, como se um vento frio houvesse passado entre eles. Havia uma grande tensão no ambiente. Delcardes olhou a silenciosa figura e seus olhos se abriram enormemente, enquanto os guardas explicavam como haviam capturado o escravo, que tentava escapar do palácio, deslizando-se por um pequeno e velho corredor.

Voltou a reinar o silêncio, e Kull avançou e estendeu uma das mãos para arrancar o véu que cobria o rosto oculto. Através do tecido tênue, Kull sentiu como se dois olhos lhe atravessassem até a consciência. Sem que ninguém percebesse, Ka-nu fechou as mãos e transformou-as em punhos, ficando todo tenso, como se estivesse se preparando para uma luta terrível.

Logo, quando a mão de Kull quase tocava o véu, um som repentino quebrou o tenso silêncio... um som produzido por um homem ao bater no chão com a testa ou com um cotovelo. O ruído parecia vir de trás de uma parede. Kull cruzou a sala em duas passadas largas e golpeou uma placa, atrás da qual vinha o barulho. Uma porta oculta se deslizou para dentro, deixando à mostra um corredor poeirento, em cujo chão se encontrava a figura de um homem amarrado e amordaçado.

Puxaram-no para a sala, colocaram-no de pé e desamarraram-no.

- Kuthulos! – gritou Delcardes.

Kull olhou-o fixamente. O rosto do homem, agora revelado, era delgado e de expressão suave, como o que teria um mestre de filosofia e de moral.

- Sim, meus senhores e minha senhora. – ele disse – Esse homem, que agora usa meu véu, lançou-se sobre mim e me escondeu atrás dessa porta secreta, depois de me golpear e amarrar. Fiquei lá, ouvindo como ele mandava o rei para o que acreditava ser sua morte certa, sem que eu pudesse fazer nada para evitá-lo.

- Então, quem é ele?

Todos os olhares se voltaram para a figura com o rosto ainda coberto pelo véu. Kull avançou em sua direção.

- Tome cuidado, meu senhor! – exclamou o verdadeiro Kuthulos – Esse homem...

Com um só movimento da mão, Kull arrancou o véu do homem, e ficou boquiaberto. Delcardes lançou um grito, seus joelhos cederam e ela caiu ao chão. Os conselheiros recuaram, pálidos, e os guardas soltaram os braços que seguravam e se encolheram, horrorizados.

O rosto do homem não era mais que uma caveira limpa e branca, em cujas órbitas ardia um fogo vivo.

- Thulsa Doom! Era isso o que eu havia imaginado! – exclamou Ka-nu.

- Sim, Thulsa Doom, estúpidos. – repetiu uma voz cavernosa – O maior de todos os bruxos e seu eterno inimigo, Kull da Atlântida. Você ganhou esta partida, mas eu lhe aviso, haverá outras.

Ele se libertou das amarras que lhe atavam os braços, com um único e depreciativo gesto, e se dirigiu para a porta, fazendo as pessoas presentes recuarem.

- Você é um estúpido, sem discernimento algum, Kull. – ele disse – Do contrário, nunca teria me confundido com esse outro idiota do Kuthulos, nem mesmo com o véu e as roupas.

Kull percebeu isso, pois embora os dois tivessem, a grosso modo, uma silhueta e altura semelhantes, a carne do bruxo com rosto de caveira era como a de um homem morto há muito tempo.

O rei havia ficado ali, de pé, não temeroso como os demais, mas simplesmente atônito diante dos rumos que os acontecimentos haviam tomado. Logo, quando já se dispunha a saltar para a frente como um homem que acabara de despertar de um sonho, Brule se lançou ao ataque com a silenciosa ferocidade de um tigre, fazendo sua espada curva faiscar sob a luz. Como se fosse um raio de luz, a lâmina da espada atravessou as costelas de Thulsa Doom, de modo que a ponta lhe sobressaiu entre os ombros.

Brule puxou a lâmina rapidamente, recuou e se agachou, disposto a lançar-se novamente ao ataque caso fosse necessário. Então, ele parou, atônito. Nenhuma gota de sangue brotou de um ferimento que seria mortal em qualquer homem vivo. Aquele ser com rosto de caveira nada fez senão rir.

- Já faz muito tempo que morri como morrem os homens! – ele zombou – Não; passarei para outra esfera quando chegar minha hora, mas não antes. Eu não sangro, posto que minhas veias estão vazias, e não experimento mais que um leve frio nesse ferimento, que passará assim que cicatrizar, como já está fazendo agora mesmo. Para trás, idiotas, pois vosso amo já está indo embora! Mas voltaremos a nos ver, e então você gritará, se estremecerá de dor e morrerá. Eu te saúdo, Kull.

E, enquanto Brule vacilava, amedrontado, e Kull permanecia imóvel, atônito e indeciso, Thulsa Doom cruzou a porta e desapareceu diante dos olhares de todos os presentes.

- Ao menos, você ganhou seu primeiro encontro com aquele rosto de caveira, como ele mesmo admitiu. – disse-lhe Ka-nu, um pouco mais tarde – Na próxima vez, devemos ser muito mais cautelosos, já que se trata de um inimigo desencarnado, possuidor de uma magia negra e ímpia. Ele lhe odeia, posto que não é mais que um acólito da Grande Serpente, cujo poder você quebrou. Ele tem o dom de provocar a ilusão e a invisibilidade, algo que só ele possui. É um ser cruel e terrível.

- Não o temo. – disse Kull – Na próxima vez, estarei preparado, e minha resposta será um bom golpe de espada, ainda que ele não possa ser atravessado, coisa que duvido muito. Brule não lhe acertou nas partes vitais, que até um morto-vivo deve ter. Isso é tudo. – Se voltou, então, para Tu e acrescentou: – Parece que as raças civilizadas também têm seus tabus, uma vez que o lago azul está proibido para todos, menos para mim.

Tu respondeu com gesto mal-humorado, zangado com o fato de Kull ter dado permissão à feliz Delcardes para se casar com quem ela quisesse.

- Milorde, esse não é um tabu pagão, como aqueles ante os quais se inclinam os de vossa tribo. Aqui se trata de uma questão de estado, necessária para preservar a paz entre a Valúsia e os seres lacustres, que são magos.

- Nós, a nosso turno, mantemos os tabus para não ofender os espíritos invisíveis dos tigres e águias. – disse Kull – Na verdade, não vejo nenhuma diferença.

- De qualquer forma – acrescentou Tu –, deves tomar muito cuidado com Thulsa Doom, porque ele desapareceu para passar a outra dimensão, e enquanto se encontrar lá, será invisível e inofensivo para nós, mas estou certo de que voltará.

- Ah, Kull – suspirou o velho Ka-nu –, a minha vida é muito dura em comparação à sua. Brule e eu nos embriagamos em Zarfhaana, e eu caí de um lance de escada, o que me prejudicou as canelas. E, enquanto isso, você não fazia outra coisa senão ficar na pecaminosa indolência rodeada de sedas, tão típica dos reis.

Kull o olhou intensamente, sem dizer nada. Finalmente, se virou, dando-lhe as costas, para desviar sua atenção para Saremes, que cochilava.

- Não é nenhum animal enfeitiçado, Kull. – disse o lanceiro – É um animal sábio, mas simplesmente expressa sua sabedoria com o olhar e, sem dúvida, não fala. Seus olhos, no entanto, me fascinam por toda a antiguidade que expressam. De qualquer forma, não é mais que uma gata.

- De qualquer modo, Brule – disse Kull, acariciando a pelagem sedosa –, continua sendo uma gata muito antiga... Muito.







Tradução: Fernando Neeser de Aragão.


Fonte: http://www.ebooket.net/
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