em 07/10/2004
Conan ganha mais uma chance de fazer sucesso nos quadrinhos
Nem Homem-Aranha, nem Batman, nem os X-Men, nem Super-Homem. No Brasil, o personagem recordista em números de revistas em quadrinhos regulares batizadas com seu nome é um certo bárbaro que foi criado originalmente para figurar em livrinhos de pulp fiction. Agora, chega às bancas uma nova integrante para a lista que inclui Espada Selvagem de Conan; Conan em Cores; Conan, o Bárbaro; Conan Rei; Rei Conan; Conan Saga; Conan, o Aventureiro... (isso tudo fora almanaques especiais, revistas-pôsteres, quadrinizações dos filmes, graphic novels e até as seis edições pré-históricas que rebatizaram o personagem como Harthan, o Selvagem [!]). Conan, a Lenda é um prelúdio, um número zero, que a Mythos Editora lança no Brasil apenas quatro meses depois de sua publicação nos EUA, onde bateu recordes de vendas. A revista, de apenas 20 páginas, serve por sua vez de aperitivo para Conan, o Cimério, a publicação que a partir de abril passará a limpo, todos os meses, a carreira da maior criação de Robert E. Howard (1906-1936).
O novo título será uma parceria da Mythos com a Dark Horse, editora americana que passou a deter os direitos do bárbaro depois que a Marvel marcou bobeira com o personagem. Lá o coitado vinha sofrendo há anos com péssimas histórias feitas com seu nome. Para revigorar o cimério (quem não souber o que é isso, calma que em seguida eu explico) a nova casa deu carta branca para a equipe criativa começar tudo do zero, adaptando as histórias clássicas deixadas pelo criador de Conan. Os argumentos ficaram a cargo de Kurt Busiek, autor do qual já falamos algumas vezes aqui ao resenhar sua minissérie Liga da Justiça & Vingadores. Já o desenhista é desconhecido pelos brasileiros: o canadense Cary Nord, que optou por usar uma técnica de arte um tanto polêmica. A exemplo do que fizeram Andy Kubert e Richard Isanove na minissérie Origem (sobre o Wolverine, resenhada em O Malaco # 9 ), Nord dispensa a arte-final a nanquim, repassando seu desenho a lápis direto para Dave Stewart fazer a pintura digital. O efeito é bem diferente do material clássico da Marvel, feito por talentos altamente saudosos como John Buscema e Alfredo Alcala.
Bem, a arte é polêmica, mas a maior expectativa é mesmo em relação ao que Kurt Busiek pretende fazer nos textos da série mensal. Em entrevistas, o veterano escritor jurou fidelidade ao material original, dizendo que vai adaptar em ordem cronológica cada aventura criada por Howard e, entre uma história e outra, criará novos episódios para a conturbada trajetória do grandalhão. Com isso, Busiek vai inevitavelmente ter cada passo seu comparado ao trabalho de Roy Thomas, o cara que em 1970 convenceu uma reticente Marvel a apostar naquele inusitado personagem, tão diferente dos seus típicos super-heróis. Thomas, que também trabalhou com HQs baseadas no Tarzan de Edgar Rice Burroughs, tornou-se o adaptador oficial de todas as histórias de Conan, não só as do seu criador como também de diversos outros autores que trabalharam com o personagem no formato pulp. O novo roteirista, apesar de elogiar muito o trabalho pioneiro dos anos 70, disse que pretende trabalhar com um estilo bem distinto de texto. Só esperando para conferir.
A fininha Conan, a Lenda não dá uma noção muito exata do que teremos pela frente a partir de abril. As 16 páginas de quadrinhos mostram apenas o esnobe herdeiro de um vasto império, em um período de tempo indeterminado, que ao explorar os novos territórios conquistados por seu pai encontra as ruínas de uma antiga cidade chamada de Tarantia. Entre as poucas coisas que sobraram de uma civilização arruinada por um cataclisma continental, ele topa com uma estátua de Conan. Intrigado com o monumento, o herdeiro manda o intelectual que acompanhava sua comitiva pesquisar a respeito daquela misteriosa figura. O tal Wazir descobre e traduz velhas conhecidas dos leitores de Conan, as Crônicas da Nemédia, que em sua passagem mais célebre ('Saiba, ó príncipe, que entre os anos em que os oceanos tragaram a Atlântida e as cidades resplandecentes, e o período em que surgiram os filhos de Aryas, houve uma era inimaginada'), descreve justamente a carreira do dito cujo. Então é mesmo só um tira-gosto que nos EUA foi vendido a módicos 25 centavos de dólar (no Brasil, infelizmente o valor foi reajustado para R$ 3,50 e ainda cortaram alguns extras da revista), que ajudou, e muito, para que ela batesse recordes de vendas, com tiragem chegando a casa dos seis dígitos.
O preço de capa não foi estipulado à toa. Os 25 cents de Conan: The legend repetem o valor cobrado da revista de contos Weird Tales, onde em plena recessão americana o bárbaro fez sua estréia. De 1932 a 1936, o texano Robert E. Howard publicou naquele título 18 histórias do personagem, contando de forma nada organizada a vida de um aventureiro que foi ladrão na adolescência, pirata aos 20 anos, líder de saqueadores do deserto aos 30, rei aos 40, imperador aos 50... Com a morte de seu criador, no dia 11 de junho de 1936, aos 30 anos, que se suicodou ao saber que sua mãe nunca sairia de um estado de coma, o destino lógico de Conan seria cair no mesmo esquecimento que dezenas de outros personagens de pulp amargaram pós-recuperação econômica dos EUA. O fator decisivo para isso não acontecer foi um lote de histórias inéditas, algumas incompletas, encontrada entre o espólio do autor nos anos 50, pelos também escritores L. Sprague de Camp e Lin Carter (que vieram a se tornar prolíficos criadores de novas aventuras de Conan). Esse material foi publicado com sucesso, deu origem a uma coleção de livros de bolso com capa dura (produzidas por Frank Frazetta, referência do novo desenhista Cary Nord) e inspiraram muitos novos escritores a continuarem o legado de Howard. Parte desse material em forma de texto também saiu no Brasil, no meio dos anos 90, pela editora Mercuryo, com seus livros de bolso chamados Conan - Espada & Magia.
Foi em ótima hora que ocorreu tal resgate da obra do autor, um pioneiro e renovador de um estilo de ficção histórica chamado justamente de Espada e Magia, tal como acontece com Dumas e a Capa e Espada. Assim milhões de pessoas puderam conhecer o atípico Conan, um personagem que como definiu certa vez Lin Carter 'nunca será o modelo de herói, mas um mercenário calculista, lutando pela sobrevivência num mundo bárbaro onde nem sempre os finais são felizes'. Mais do que isso, evitou-se o esquecimento de todo um fascinante universo ficcional, aquela 'era inimaginada' relatada pelas Crônicas da Nemédia. Howard elaborou toda a geografia, mitologia e hábitos sociais de sua Era Hiboriana, um período de tempo demarcado há 12 mil anos, quando Ásia, Europa e África estariam unidas em um supercontinente. Dentro desse mundo imaginário a liberdade de criação do autor foi infinitamente maior e assim pôde desenvolver a trajetória de Conan, um bárbaro nascido no meio de um campo de batalha na selvagem Ciméria (onde hoje está localizada a Inglaterra, apesar dos incompetentes editores da Abril falarem para os leitores que era a Escandinávia) e que se tornou rei da poderosa Aquilônia (aproximadamente a França e a Alemanha atuais).
É grande a tentação de comparar o texano Howard com o britânico J.R.R. Tolkien e a Era Hiboriana com a Terra Média, mas existem fartas diferenças. Para resumir de forma rápida e rasteira (e correr o risco de ser assassinado por algum neo-nerd de O Senhor dos Anéis) dá para se dizer que Howard está para a História assim como Tolkien está para a Lingüística. É que enquanto o grande achado dos livros da trilogia dos Anéis está nas versões que o autor desenvolveu para dialetos élficos e de outros bichos da fauna da Terra Média (em detrimento do desenvolvimento dos personagens e da elaboração de uma trama que não fosse piegas), o criador de Conan demonstrou em suas dezenas de contos um grande conhecimento de fatos históricos, não só com seu personagem principal, mas também com outras criações (como o picto Bran Mak Morn, na Roma Antiga, ou o puritano Salomão Kane, da era Elizabetana). Todas essas qualidades voltarão a ficar em evidência a partir dos próximos meses, com o trabalho de Busiek, Nord e Stewart. Vale a pena acompanhar com um olho nos quadrinhos e outro em um bom atlas histórico.
Fonte: Marca Diabo (www.marcadiabo.com , por Romeu Martins , em 25/03/2004)