Resenhas: Conan, O Cim�rio #1 - Deixa sangrar

por Romeu Martins
em 07/10/2004
Depois de muita demora, começa a distribuição nacional da nova revista do bárbaro


Quando, em março, escrevi sobre Conan, A Lenda, espécie de número zero da nova publicação mensal do mais famoso bárbaro dos quadrinhos, esperava voltar ao assunto dali a algumas semanas, dessa vez resenhando a aguardada versão atualizada do personagem produzida pela Dark Horse. Mas o tempo passou, o que era para ser algumas semanas virou uma espera de meses, tudo porque o pessoal que vai trabalhar com o material no Brasil, a Mythos Editora, não avisou a seus leitores que a nova revista não chegaria ao mesmo tempo em todo o país. Primeiro foram servidas as bancas do famoso eixo Rio-São Paulo, para só depois o que sobrasse seguir viagem para além da Via Dutra. Tal decisão provocou ira na pequena, mas fiel, torcida do personagem criado por Robert E. Howard. Se alguém acha que estou exagerando, é porque não viu as mensagens furiosas em fóruns e listas de discussões dedicados ao seguidor do melancólico deus Crom. Finalmente, no início de julho, a revista Conan, O Cimério (pelo menos é assim que ela é chamada no expediente, mas na capa o nome do bárbaro aparecesozinho, sem adjetivos) ganhou a tão ansiada distribuição nacional.

Bem, deixando de lado as reclamações que marcaram os últimos três meses, o que essa novidade feita pelo veterano roteirista Kurt Busiek e pelo calouro desenhista Cary Nord tem a oferecer para antigos e novos leitores? Pela amostra inicial, parece ser a volta da selvageria: logo na terceira página da história "O Guerreiro das Colinas Sombrias" já unhamos uma cabeça sendo decepada, em seguida, o braço de outra vítima é arrancado, e por aí vai o sangue jorrando, contabilizando as cinco primeiras baixas provocadas por um ainda jovem Conan. É a poesia da violência extrema, a mesma que virou cartão de visitas de gente como o artista underground S. Clay Wilson e do cineasta Sam Peckimpah, algo que, convenhamos, não é palatável para muita gente. Mas quem aprecia o gênero, sabe que Conan é um dos símbolos máximos desde 1932, se considerarmos sua criação nos livros de pulp fiction, ou desde 1970, se for para contar o tempo a partir da estréia do bárbaro nos quadrinhos, então pelas mãos da Marvel Comics.

Por maior que seja a tentação de comparar o trabalho dos novos autores com a quadrinização de momentos clássicos do personagem, como "A Torre do Elefante", "A Maldição da Lua Crescente", "A Cidadela dos Condenados", "A Fronteira do Fim do Mundo" ou "O Tesouro de Tranicos", ainda é muito cedo para tanto, e Busiek garante que vai adaptar todo esse material em ordem cronológica. O mais indicado para agora seria pôr lado a lado a história de Conan, O Cimério # 1 com a tal estréia nos quadrinhos. A HQ de Conan The Barbarian # 1 foi publicada no Brasil em outubro de 1982,12 anos depois de ser lançada nos EUA, na revista Heróis da TV # 40 da Editora Abril. A história "A Origem de Conan" foi produzida pelo ainda novato roteirista Roy Thomas e pelo ainda mais novato desenhista Barry Windsor-Smith.

Já que nem o criador do personagem, nem os outros escritores que seguiram o exemplo do texano Howard criaram no formato de texto literário uma história de origem para o bárbaro, tanto Thomas quanto Busiek tiveram que partir praticamente do zero em suas versões, mas cada um dentro de seu estilo. Os dois roteiristas optaram por uma trajetória inicial comum para Conan. Nas duas histórias, ele deixa sua terra natal, a Ciméria (no fictício ambiente criado por Howard, uma versão de nosso mundo 12 mil anos no passado, esse país seria a atual Inglaterra) em direção ao norte, para uma região gelada disputada por dois povos (o lugar equivale a Escandinávia de hoje, formada por Noruega, Suécia, Dinamarca, Islândia e Finlândia). Nos dois casos, o estrangeiro entra na batalha ao lado dos loiros aesires contra os ruivos vanires, mas as semelhanças cessam por aí. Roy Thomas narrou sua história envolvendo na trama uma pedra mística, com poderes para prever o futuro e para evocar demônios alados. Busiek felizmente partiu para um conto mais simples, explorando melhor as motivações do cimério sem apelar para recursos sobrenaturais.

Quanto à arte das histórias, separadas entre si por 34 anos, também existem semelhanças nos dois casos. Naquele início da década de 70, o britânico Windsor-Smith ainda apresentava um traço hesitante, com problemas na anatomia e no enquadramento das cenas, cometendo erros primários (o mais anedótico de todos é que, apesar de Conan aparecer nessas primeiras histórias sempre sem camisa, o desenhista o fazia sem mamilos, como sele usasse uma malha estilo super-herói). Não dava pistas seguras do artista detalhista e estiloso que se tornaria ao longo dos anos, amadurecendo o estilo justamente na multi-premiada série de Conan The Barbarian. Cary Nord, empregando técnicas inovadoras em sua experiência com o cimério (ele dispensa arte-final a nanquim e tem os desenhos feitos a lápis tratados diretamente no computador), muitas vezes passa a impressão de desleixo com suas ilustrações soltas. Mas, a julgar pelos esboços publicados nesta primeira edição, aparentemente o jovem canadense está mergulhando com força no universo howardiano, procurando retratar as diversas culturas previstas por aquele autor.

Pesando tudo, dá para dizer que "O Guerreiro das Colinas Sombrias" supera "A Origem de Conan". Se Busiek, com toda sua experiência, mantiver a ênfase das histórias no barbarismo, e deixar o elemento sobrenatural para pontuar as tramas mais significativas, creio que estará resolvido um dos mais irritantes problemas da maioria das histórias produzidas pela Marvel durante três décadas: todo argumentista que trabalhava com Conan abusava de coisas como monstros, demônios, bruxos e objetos mágicos, banalizando o recurso empregado com maestria por Howard nos anos 30, quando ele ajudou a amadurecer o gênero Espada e Magia. Mas há problemas no número de estréia da nova série. No roteiro, o maior deles foi Busiek ter desperdiçado uma importante passagem da vida de Conan, a primeira batalha da qual ele participou, quando com seus compatriotas cimérios atacou um posto avançado da Aquilônia na fronteira dos dois países. Esse é um dos eventos mais simbólicos na trajetória do personagem, pois mostra o bárbaro ainda adolescente confrontando o mais poderoso e civilizado reino de sua era (a Aquilônia corresponde a França e a Alemanha atuais), um país que ele mesmo acabaria governando, trinta anos depois. Essa passagem nunca foi explorada devidamente nas HQs, como pode comprovar quem leu a fraca Conan, O Aventureiro # 1, e agora, novamente, passou quase em branco, pois ela é apenas citada em diálogo na página 12 de Conan, O Cimério quando o protagonista se refere a "batalha de Venarium". Mas, o mais grave tropeço desta edição de estréia acontece antes, na página 6, quando o texto dos recordatórios descreve a posição de batalha de Conan, "uma formação rochosa protegia seu flanco esquerdo, densos arbustos, sua retaguarda...", e o desenho não mostra nem sombra disso. Imperdoável falta de sintonia que precisa ser consertada nos próximos números.

Fonte: Marca Diabo (http://www.gardenal.org/marcadiabo, por Romeu Martins em 10/07/2004)
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