Na Trilha do Deus Manchado de Sangue

 



Na Trilha do Deus Manchado de Sangue
The Trail of the Bloodstained God

(Por Robert E. Howard)



Capítulo 1 - No Beco de Satã

Estava escuro, como a boca de um lobo, aquele fedorento beco afegão pelo qual Kirby O’Donnell, com seu disfarce de espadachim curdo, avançava em uma busca tão impenetrável como a escuridão que lhe rodeava. Foi um agudo uivo de dor que fez com que mudasse por completo o rumo de sua busca. Os gritos de dor e agonia não eram um som estranho nos labirínticos becos de Medina el Harami, a Cidade dos Ladrões, e nenhum homem tímido ou sensato poderia pensar em interferir em assuntos que não eram de seu interesse. Mas O’Donnell não era nenhum dos dois, e havia algo arraigado em sua alma irlandesa que não lhe permitia ouvir um grito de dor sem tentar prestar ajuda.   

 

Obedecendo aos seus instintos, ele se virou para um raio de luz que, concidentemente ao lado dele, atravessava a escuridão. E no instante seguinte, estava espiando por uma fenda em uma janela fechada numa parede de pedra. O que viram seus olhos despertou uma maré vermelha de fúria em sua mente, apesar do fato de que sua alma já estivesse endurecida depois de tantos anos de aventuras nas terras mais cruéis do mundo.

 

Mas O'Donnell jamais poderia permanecer indiferente ao ver como torturavam uma pessoa.

 

Ele olhava para uma ampla sala, com paredes cobertas por cortinas de veludo e o chão repleto de tapetes e divãs caros. Ao redor de um desses divãs estava agrupado quase uma dúzia de homens... Sete bravos yusufzai de pele escura, e mais dois, que eram difíceis de identificar. No divã estava estendido outro homem, um nativo da tribo Waziri, nu até a cintura. Era um homem corpulento, mas os rufiões, tão grandes e musculosos como ele, seguravam seus tornozelos e pulsos. Quatro deles forçaram-no a permanecer deitado no divã, incapaz de se mover, embora seus músculos se debatessem, sofrendo violentos espasmos nos membros e na altura dos ombros. Seus olhos resplandeciam com um brilho avermelhado e seu peito largo brilhava de suor. Havia uma boa razão para isso. O'Donnell viu um homem grande, com um turbante de seda vermelha, usando uma pinça de prata, puxando um pedaço de carvão incandescente dentro de um braseiro, para trazê-lo ao peito nu do cativo, que mostrava queimaduras de brasas anteriores.

 

Outro homem, ainda mais alto que o de turbante vermelho, resmungou uma pergunta que O'Donnell não entendeu. O waziri balançou a cabeça violentamente e cuspiu no interrogador. No instante seguinte o carvão incandescente caiu em seu peito     peludo, arrancando um brado desumano do homem torturado. E, nesse mesmo momento, O'Donnell se jogou, com todo o seu peso, contra a janela.

 

O americano, de ascendência irlandesa, não era um homem alto, mas seus ossos eram fortes e sua constituição feita de aço. Os cacos de vidro se estilhaçaram com um estrondo e ele caiu do outro lado da janela em pé, com a cimitarra na mão e o kindhjal na outra. Os torturadores se viraram e olharam perplexos para ele.

 

E o que viram foi uma figura misteriosa e mascarada, usando o traje típico de um curdo, com a adição de um kafiyeh ondulante em volta do rosto. Acima de sua máscara, seus olhos brilhavam como brasas, paralisando-os. Mas a cena permaneceu congelada e imóvel por apenas um instante, pois logo se tornou uma maré de um combate furioso.

 

O homem de turbante vermelho deu uma ordem rápida, e um gigante peludo avançou para enfrentar o intruso recém-chegado. O yusufzai empunhava um punhal Khiber de quase um metro de comprimento em guarda baixa e, dando um passo para frente, levantou a lâmina. Mas a cimitarra de O’Donnell projetou um golpe vindo de cima para baixo, atingindo o pulso que empunhava o terrível aço. A mão, ainda segurando o punhal, voou para longe do pulso com um banho de sangue, e a longa e estreita lâmina que O'Donnell segurava na mão esquerda deslizou pela garganta do assassino, causando-lhe um engasgo de agonia.

 

Enquanto o cadáver ainda se mexia com os últimos espasmos, o americano saltou sobre ele, na direção do homem de turbante vermelho e de seu guarda-costas alto. Ele não temia que pudessem atacá-lo com armas de fogo. Mesmo no beco de Satã, o tiroteio à noite certamente seria investigado, e nenhum dos habitantes do beco desejava sofrer uma investigação policial.

 

Ele estava certo quanto a isso, pois o homem de turbante vermelho empunhou uma faca e o homem alto, um sabre.

 

—Corte o pescoço dele, Jallad! grasnou o homem de turbante vermelho, afastando-se do ataque impetuoso do americano. Achmet, me ajude!

 

O homem chamado Jallad, que significa Executor, interrompeu a estocada de O'Donnell e a devolveu. O'Donnell evitou o contra-ataque com uma agilidade que poderia ter envergonhado uma pantera faminta e, com o mesmo movimento, aproximou-se do homem de turbante vermelho novamente, que estendeu a adaga para se defender. O homem de turbante vermelho uivou e deu um salto para trás, evitando o kindhjal de O’Donnell por uma margem tão estreita que a lâmina cortou sua roupa de seda, arranhando a pele abaixo. Ele tropeçou em um divã e perdeu o equilíbrio, caindo atrás do móvel. Mas antes que O'Donnell pudesse aproveitar sua vantagem, Jallad lançou-se sobre ele, desferindo uma chuva de estocadas de seu sabre. Havia tanta força quanto habilidade no braço do homem alto, e por um instante O'Donnell teve que ficar na defensiva.

 

Mas, enquanto O’Donnell defendia os relampejantes golpes de espada, o americano viu um yusufzai - aquele que o homem de turbante vermelho havia chamado Achmet - avançando em sua direção, pegando um mosquete antigo pelo cano. Um único golpe de seu pesado cabo de latão poderia quebrar o crânio de um homem como um ovo. O homem de turbante vermelho conseguiu se levantar e, em seguida, o americano viu os outros três se aproximando pelos lados.

 

Ele não esperou que o cercassem. Um golpe cintilante de sua    cimitarra, parado no último momento, enviou Jallad cambaleando para trás e O'Donnell girou como um gato assustado e saltou em direção a Achmet. O yusufzai uivou, erguendo o mosquete, mas a velocidade ofuscante do ataque do americano o pegou desprevenido. Antes que ele pudesse dar um único golpe, já estava caído no chão, assistindo seu sangue e seu interior vazarem através de um grande golpe em seu abdômen.

 

Lançado um grito selvagem, Jallad investiu novamente contra O'Donnell, mas o americano não ficou imóvel para aguardar o ataque.

 

Não havia mais ninguém entre ele e o waziri no divã. Ele saltou direto em direção aos quatro homens, que ainda estavam segurando pulsos e pés do prisioneiro. Soltaram o homem, gritando alarmados, e pegando seus tulwars. Um deles lançou uma punhalada cruel no waziri, que rolou do divã para o chão, evitando o ataque. Um segundo depois, O'Donnell ficou entre o prisioneiro e seus captores. Estes, por sua vez, começaram a assediar o americano, que  recuou, puxando o waziri. 

 

Saia daqui! Vá em frente! Rápido!

  

—Cães! — gritou o homem de turbante vermelho enquanto avançava, acompanhado por Jallad—. Não o deixe escapar!

 

—Venha e prove a morte você mesmo, cão! — O'Donnel riu de forma selvagem em meio ao clamor dos aços. Mas, mesmo envolvido na paixão do combate, ele lembrou que devia fingir um sotaque curdo.

 

O waziri, fraco e trêmulo pela tortura que havia sofrido, descobriu uma trava, abrindo a porta que levava a um pequeno pátio fechado.

 

—Fuja! —gritou O'Donnell—. Suba o muro enquanto eu os detenho!

 

O’Donnell ficou entre a porta e o pátio, com suas duas lâminas de aço afiado e mortal. O Waziri tropeçou no pátio, enquanto os homens de dentro da casa se lançavam uivando contra o americano. Mas na abertura estreita da porta, seu próprio número jogava contra eles. O americano riu e xingou, enquanto defendia estocadas e se esquivava dos golpes. O homem de turbante vermelho, atrás de seus homens suados, estava empenhado em incentivá-los, aproveitando para dedicar ao intruso curdo todos os insultos que conhecia. Jallad estava tentando fazer um bom corte na direção de O'Donnell, mas seus próprios homens estavam bloqueando seu caminho. Então, com a velocidade de uma cobra, a cimitarra de O'Donnell deslizou entre a lâmina de um tulwar, e um yusufzai, depois de sentir o aço frio em suas entranhas, caiu no chão moribundo. Jallad, que estava investindo fundo em uma estocada, tropeçou no homem morto e caiu no chão. Instantaneamente, a porta foi bloqueada por diferentes atacantes, que lançavam maldições e xingavam enquanto tentavam se organizar. Mas antes que pudessem fazê- lo, O'Donnell virou-se e correu pelo pátio em direção ao muro pelo qual o Waziri havia desaparecido.

 

O'Donnell deu um salto e agarrou o topo do muro, vislumbrando os becos escuros e labirínticos do outro lado. Nesse instante, algo colidiu com sua cabeça. Era um banquinho, jogado por Jallah, enquanto a silhueta de O'Donnell estava claramente delineada contra as estrelas. Mas O'Donnell não sabia o que o havia atingido, porque com o impacto, perdeu a consciência. Sem forças e em silencioso, seu corpo caiu no outro lado do muro, nas ruas sombrias.

 


CAPÍTULO 2

Os caminhos da suspeita

 

Foi a fraca luminescência de uma lanterna sobre seu rosto que tirou O'Donnell da inconsciência. Ele sentou-se, piscando e sobressaltado, tateando em busca de sua espada. Então a luz se apagou e, na escuridão reinante, uma voz soou:

 

—Fique tranquilo, Ali el Ghazi. Sou um amigo. 

 

—Quem diabos é você? —Quis saber O'Donnell. Ele encontrou sua cimitarra, caída no chão perto dele e, com a agilidade de uma pantera, agachou-se com um salto repentino. Estava na rua, aos pés do muro por onde caíra, e o outro homem não passava de uma forma difusa pairando sobre ele sob a sombria luz das estrelas.

 

—Seu amigo repetiu o outro. Ele falou com sotaque persa—. Aquele que sabe o nome pelo qual você se faz passar. Você pode me chamar de Hassan. É um nome tão bom quanto qualquer outro. 

      O'Donnell levantou-se, cimitarra na mão, e o persa estendeu algo para ele. O'Donnell captou o brilho do aço sob a luz estrelada, mas antes que pudesse atacar, como pretendia, viu que era seu próprio kindhjal, que Hassan havia apanhado do chão e que agora lhe entregava, oferecendo-o pela empunhadura do cabo.

—Você é tão desconfiado quanto um lobo faminto, Ali el Ghazi —Hassan riu—. Mas é melhor você guardar o aço para seus inimigos.

 

—Onde estão? —O'Donnell quis saber enquanto recuperava seu kindhjal.

 

—Eles foram para as montanhas. Em busca do Deus manchado de sangue.

 

O'Donnell sofreu um violento sobressalto. Ele agarrou o kindhjal da mão do persa com um aperto de ferro e observou os olhos escuros do homem, misteriosos e zombadores na penumbra.

 

—Maldito seja! O que você sabe sobre o Deus manchado de sangue? —A ponta afiada do seu kindhjal tocou levemente a pele do persa embaixo das costelas.

 

—Sei o seguinte —disse Hassan, imperturbável—. Eu sei que você veio a Medina el Harami seguindo alguns ladrões que roubaram seu mapa que leva a um tesouro maior que o da horda de Akbar. Eu também vim aqui procurando por algo. Estava escondido aqui perto, olhando através de um buraco na parede, quando você invadiu a sala onde o waziri estava sendo torturado. Como você sabia que foram eles que roubaram seu mapa?

 

—Não sabia! —O'Donnell murmurou—. Ouvi um homem gritar e invadi para que parassem de torturá-lo. Se soubesse que aqueles eram os homens que eu estava caçando... Escute, quanto você sabe sobre o assunto?

 

—É isso que eu sei — disse Hassan—. Nas montanhas, não muito longe desta cidade, mas escondido em um local quase inacessível, há um templo antigo em que as pessoas não ousam entrar. A região é proibida aos Ferengi, mas um certo inglês chamado Pembroke encontrou este templo por acidente e, ao entrar nele, descobriu um ídolo coberto de jóias vermelhas, que chamou de Deus manchado de sangue. Embora não pudesse levá-lo, ele desenhou um mapa, com a intenção de voltar para lá. Ele conseguiu sair das montanhas sem sofrer um único arranhão, mas foi esfaqueado em Cabul por um fanático e morreu lá. Mas, antes de morrer, deu o mapa a um curdo chamado Ali el Ghazi.

 

—E o que mais? — insistiu O'Donnell com tom sombrio. A casa atrás dele estava escura e silenciosa. Não se ouvia nenhum outro som na escuridão da rua, exceto o sussurro do vento e o murmúrio baixo de suas vozes.

 

—O mapa foi roubado —disse Hassan—. Por quem, isso é algo que você já sabe.

 

—Eu não sabia na época —rosnou O'Donnell—. Mais tarde, soube que os ladrões eram um inglês chamado Hawklin e um príncipe afegão deserdado chamado Jehungir Khan. Um servo rebelde estava espionando Pembroke quando ele estava agonizando, e contou-lhes do mapa. Eu não conhecia nenhum deles de vista, mas consegui localizá-lo nesta cidade. Hoje à noite soube que eles estavam escondidos em algum canto do beco de Satã. Procurava as cegas por alguma pista do possível esconderijo dele quando entrei nessa luta.

 

—Você lutou com eles sem saber que eram os homens que você estava procurando! disse Hassan—. O waziri é Yar  Mohammed, um espião de Yakub Khan, o chefe Jowaki proscrito. Eles o reconheceram e o convenceram a acompanhá- los até essa casa, e estavam queimando-o para forçá-lo a revelar os caminhos secretos para atravessar as montanhas, conhecidos apenas pelos espiões de Yakub. Então você apareceu e já sabe o resto.

 

—Tudo, exceto o que aconteceu quando eu escalei o muro disse O'Donnell.

 

—Alguém jogou um banquinho em você —respondeu Hassan—. Quando você caiu do outro lado do muro, eles pararam de prestar atenção em você, porque pensaram que você tinha morrido ou porque não o reconheceram por causa da sua máscara. Perseguiram o waziri, mas não sei se ele conseguiu escapar, ou se o caçaram e o mataram. O que sei é que eles voltaram depois de um tempo, carregaram seus cavalos às pressas e partiram para o oeste, deixando os cadáveres onde haviam caído. Cheguei aqui e descobri seu rosto para ver quem você era e eu o reconheci.

 

—Então o homem de turbante vermelho era Jehungir Khan — murmurou O’Donnell—. Mas, onde estava Hawklin? 


—Estava disfarçado de afegão ... ele era o homem que chamavam de Jallad, o Executor, pois matou muitos homens.

 

—Nunca me ocorreu que Jallad fosse um ferengi" —rosnou O'Donnell.

 

—Nem todos os homens são o que parecem ser —disse Hassan casualmente—. Por exemplo, eu sei que você não é um curdo, longe disso, mas um americano chamado Kirby O'Donnell.

 

Por alguns segundos, houve um silêncio tenso, no qual a vida e a morte dependiam de algo tão fino quanto um fio de cabelo.

 

—E que? —A voz de O'Donnell era tão suave e mortal quanto o silvo de uma cobra.

 

—Nada!   Como você, eu também quero esse deus vermelho. É por esse motivo que segui Hawklin aqui. Mas sozinho não consigo enfrentar com toda a gangue dele. Nem você. Mas podemos unir forças. Vamos seguir esses ladrões e tirar o ídolo!  


—Muito bem       —O'Donnell tomou a decisão rapidamente—. Mas te matarei se você tentar algum truque, Hassan! 

 

—Confie em mim! —respondeu Hassan—. Venha. Tenho cavalos cavalos selados... muito melhor do que aquele com o qual você entrou nesta cidade de ladrões.

 

O persa o conduziu por becos estreitos e intrincados, repletos de varandas ornamentadas, e por labirintícos becos fedorentos, finalmente parando em frente à porta iluminada de um pátio fechado. Depois de bater com os nós dos dedos, um rosto barbudo apareceu em uma pequena janela e, depois de murmurar certas palavras, a porta se abriu. Hassan entrou confiante, mas O'Donnell o fez desconfiado, quase esperando uma armadilha de algum tipo, pois ele tinha muitos inimigos no Afeganistão, e Hassan era um estranho. Mas as montarias estavam lá, e uma ordem seca do guardião do estábulo fez com que servos sonolentos os selassem os cavalos, enchendo seus alforjes com pacotes de comida. Hassan comprou um par de rifles de alta potência e cinturões separados cheios de cartuchos.

 

Pouco tempo depois eles estavam cavalgando juntos, saindo pela porta oeste da cidade, ignorando os gritos do guarda   sonolento. Os homens vão e vêm nas horas mais inoportunas de Medina el Harami (que, nos mapas, aparece com outro nome, embora as pessoas jurem que seu primitivo nome muçulmano se encaixa muito melhor).

 

Hassan, o persa, era um homem baixo, mas musculoso, com  um rosto largo e olhos escuros e alertas. Empunhava o rifle com habilidade e levava pendurada, do lado dele, uma cimitarra. O'Donnell sabia que, se necessário, lutaria com astúcia e coragem. E ele também sabia até que ponto podia confiar em Hassan. O aventureiro persa jogaria limpo desde que sua aliança fosse lucrativa. Mas se chegasse o momento em que não visse mais necessário a ajuda de O'Donnell, ele não hesitaria em assassinar seu parceiro se tivesse a chance, a fim de ficar com todo o tesouro. Homens do estilo de Hassan são tão implacáveis como uma cobra.

 

Hawklin também era como uma cobra, mas O'Donnell não estava preocupado com sua inferioridade numérica... pois ele deveria estar lidando com cinco homens bem armados e desesperados. Com sua frieza característica, ele decidiu que se preocuparia com isso quando chegasse a hora.

 

O amanhecer os pegou andando por desfiladeiros rochosos, alinhados com ladeiras íngremes de ambos os lados, e logo depois Hassan diminuiu a velocidade para observar a trilha. Eles estavam seguindo um caminho de areia macia, mas agora as pegadas dos cascos viravam bruscamente para um lado, desaparecendo no chão rochoso de um amplo platô.

 

—Foi aqui que eles deixaram o caminho —disse Hassan—. Até aqui é a trilha deixada por Hawklin. Não seremos capazes de segui-lo por essas rochas. Você estudou o mapa quando estava em sua posse... Para onde avança a rota  a partir daqui?

 

O'Donnell sacudiu a cabeça, exasperado com a inesperada frustração.

 

—Esse mapa era um quebra-cabeça e eu não o tinha comigo o tempo suficiente para descobrir. A rota principal, localizada em um caminho antigo que leva ao templo, deve estar em algum lugar por aqui. Mas é indicado no mapa como "Castelo de Akbar. E nunca ouvi falar de um castelo assim, ou de ruínas que são chamadas assim ... Nem aqui ou em qualquer outro lugar.

 

—Olhe! —Exclamou Hassan, com os olhos brilhantes, quando ele se ergueu acima dos estribos e apontou na direção de um grande penhasco que se erguia no horizonte, alguns quilômetros a oeste. Aquele é o castelo de Akbar! Hoje eles chamam de Rocha das Águias, mas antigamente se referiam àquela montanha como Castelo de Akbar! Eu li sobre ele em um manuscrito muito antigo e sombrio! De alguma forma, Pembroke

 

deve ter conhecido esse nome antigo, e o colocou no mapa para confundir quem pudesse roubá-lo! Vamos! Jehungir Khan certamente deve saber tudo isso também. Estamos apenas uma hora deles e nossos cavalos são melhores que os seus.

 

O'Donnell liderou o caminho, tentando forçar sua memória, para lembrar os detalhes do mapa roubado. Contornando a base da rocha, a sudoeste, ele desenhou uma linha imaginária do cume para três outros picos que formavam um triângulo, muito ao sul. Então ele e Hassan cavalgaram para o oeste, na diagonal. Onde o caminho deles se cruzava com a linha imaginária, eles descobriram restos de um caminho antigo que subia as montanhas, fazendo muitos desvios. O mapa não estava mentindo, e a memória de O'Donnell não havia falhado. Os excrementos de cavalos indicavam que um grupo de cavaleiros havia passado recentemente por esse caminho quase turvo. Hassan disse que era o grupo Hawklin e O'Donnell concordou.

 

—Eles vão direto para o Castelo de Akbar, assim como nós. Estamos encurtando a distância que nos separa deles. Mas não estamos interessados em chegar muito perto. Nos superam em número. É do nosso interesse ficar fora da vista deles até conseguirem o ídolo. Então vamos emboscá-los e tirá-lo deles. 


Os olhos de Hassan brilharam de alegria; tal estratégia era muito agradável à sua natureza oriental.

 

—Mas devemos ser cautelosos — disse ele—. Pois a partir deste ponto, a região pertence a Yakub Khan, que rouba a todos que encontra. Se eles soubessem os caminhos ocultos, poderiam evitá-lo. Agora, devem confiar na sorte para não cair em suas mãos. E nós também teremos que estar alertas! Yakub Khan não é meu amigo e odeia curdos!



CAPÍTULO 3

Espadas nos penhascos

 

Ao meio-dia eles ainda estavam seguindo o caminho antigo que serpenteava incansavelmente ... e, obviamente, era tudo o que restava de uma estrada velha e esquecida.

 

—Se esse waziri conseguiu voltar para Yakub Khan —disse Hassan, enquanto andavam em direção a um desfiladeiro estreito que se abria no sopé das montanhas que os cercavam— os jowakis estarão obviamente alertas contra estranhos. Embora Yar Mohammed não suspeitasse da verdadeira identidade de Hawklin e não descobrisse o que ele estava procurando, também. Yakub Khan não saberá. Acho que ele sabe onde fica o templo, mas é supersticioso demais para aproximar-se. Fantasmas o assustam. Ele não sabe nada sobre o ídolo. Pembroke deve ter sido o único homem que entrou naquele templo sabe Allah quantos séculos atrás. Em Peshawar, ouvi a história dos lábios de  um criado dele, morrendo de mordida de uma serpente. Hawklin, Jehungir Khan, você e eu somos os únicos homens vivos que conhecem a existência desse deus...

 

Eles ficaram assustados quando um Pathano magro, com rosto de falcão, veio cavalgando em direção a eles da boca do desfiladeiro.

 

—Pare! —Ele chamou imperiosamente, galopando na direção deles com a mão estendida. Em nome de qual autoridade você entra no território de Yakub Khan?

 

—Cuidado —O'Donnell murmurou—. É um jowaki. Pode haver dezenas de rifles apontados para nós a partir dessas rochas neste exato momento.

 

—Vou dar-lhe um dinheiro —disse Hassan entre dentes—. Yakub Khan reivindica o direito de coletar tributo de todos os que viajam por essa região. Talvez seja isso que esse cara queira. Tocando seu cinturão, ele se dirigiu ao homem da tribo.

 

—Somos apenas dois viajantes pobres, que ficarão encantados em prestar o tributo tão justamente exigido por seu  bravo chefe. Cavalgamos sozinhos.

 

 

—Então quem é esse que vem atrás de vocês? —perguntou o jowaki bruscamente, balançando a cabeça na direção em que tinham vindo.

 

Hassan, apesar de toda a cautela, virou a cabeça levemente, as mãos tateando as moedas. E, naquele instante, um feroz triunfo ardeu na face escura do jowaki e, com um movimento tão rápido quanto o de uma cobra, ele tirou uma adaga do cinto e golpeou o desprevenido persa.

 

Entretanto, por mais veloz que possa ter sido o jowaki, O'Donnell foi ainda mais rápido, pois havia sentido a armadilha que estava preparando para eles. Quando a adaga se aproximou da garganta de Hassan, a cimitarra de O'Donnell brilhou à luz do sol, e os aços colidiram. A adaga caiu das mãos do beduíno e, com um zumbido, foi parar na coronha do rifle ao lado da sela. Mas antes que ele pudesse recuperar sua arma, O'Donnell atacou novamente, rachando o turbante e o crânio do homem. A montaria do jowaki empinou, jogando o cadáver para a frente, e O'Donnell retirou a espada.

 

—Cavalgue em direção ao desfiladeiro! —Ele uivou—. É uma emboscada!

 

A breve escaramuça não durou mais que alguns segundos. Quando o corpo do jowaki caiu no chão, tiros de espingarda ecoaram pelas rochas no lado da montanha. O cavalo de Hassan saltou em uma convulsão repentina, depois galopou como um raio em direção à boca do desfiladeiro, perdendo sangue a cada passo. O'Donnell sentiu uma bala de chumbo afundar em sua panturrilha enquanto apertava suas esporas e fugia atrás do persa, que era incapaz de controlar sua montaria enlouquecida de dor.

Quando se aproximaram da entrada do desfiladeiro, três cavaleiros, consagrados espadachins do clã Jowaki, saíram, brandindo seus tulwar de lâmina larga. A montaria enlouquecida de Hassan o levou direto em suas garras, e o persa lutou em vão para freá-la. De repente, ele abandonou suas tentativas e, segurando o rifle, começou a disparar enquanto cavalgava. Um dos cavalos tropeçou e caiu, derrubando o cavaleiro no chão. Outro deles levantou os braços para o céu e caiu fulminado. O terceiro jogou em Hassan umas estocadas selvagens quando seu animal enlouquecido passou por ele, mas o persa se agachou, esquivando-se da lâmina e escapou para o desfiladeiro.

 

Um momento depois, O'Donnell estava de frente para o espadachim, que o atacou brandindo seu pesado tulwar. O americano levantou a cimitarra e as lâminas encontraram-se em um estrondo metálico, enquanto os cavalos galopavam lado a lado. A montaria do homem da tribo recuou de novo com o impacto, e O'Donnell, levantando-se nos estribos e golpeando com toda a força, quebrou a lâmina de tulwar, rompendo o crânio daquele que o empunhava. No momento seguinte, o americano estava galopando em direção ao desfiladeiro. Ele esperava que estivesse cheio de guerreiros armados, mas não tinha escolha. Lá fora, balas choveram ao seu redor, colidindo com pedras e ricocheteando em árvores secas.

 

Mas, evidentemente, o homem que havia formulado a armadilha, considerava que a pontaria dos homens no alto da montanha seria suficiente, e havia colocado apenas quatro guerreiros no desfiladeiro, pois quando O'Donnell entrou nele, só viu Hassan à frente. Alguns metros adiante, o cavalo ferido tropeçou e caiu, e o persa saltou de maneira limpa quando sua montaria caiu.

 

—Monte atrás de mim! —O'Donnell estalou, ajudando-o a subir.

 

E Hassan, com o rifle na mão, pulou para a traseira da sela. Um toque de esporas nos flancos do cavalo carregado o forçou a galopar pelo estreito desfiladeiro. Os gritos selvagens atrás deles indicaram que os homens da tribo estavam indo para as montarias do lado de fora, sem dúvida escondidos atrás do primeiro penhasco. Então o caminho da garganta girou bruscamente, e os sons de perseguição foram abafados. Mas eles sabiam que os selvagens homens das montanhas logo entrariam no desfiladeiro, procurando por ele, como lobos seguindo uma trilha.

 

—Aquele espião waziri deve ter conseguido voltar para Yakub Khan —ofegou Hassan—. Eles não querem ouro, mas sangue. Você acha que eles mataram Hawklin?

 

—Hawklin deve ter passado por esse desfiladeiro antes que os jowakis chegassem para preparar a emboscada —respondeu O'Donnell—. Ou eles o estavam seguindo quando nos viram chegando, e montaram essa armadilha para nós. Parece-me que Hawklin está em algum lugar à nossa frente.

 

—Não importa  disse Hassan—. Este cavalo não pode nos  levar muito mais longe. Ele se cansa rapidamente. Suas montarias devem estar mais descansadas. É melhor encontrarmos um lugar onde possamos dar a volta para lutar. Se conseguirmos segurá-los até o anoitecer, talvez possamos fugir mais tarde.

 

Eles haviam avançado um pouco mais de um quilômetro e já estavam começando a ouvir fracos sons de perseguição, ainda muito longe deles, quando, abruptamente, chegaram a um espaço aberto, em forma de tigela, cercado pelo sopé das montanhas. No meio de sua extensão, uma ladeira subia gradualmente, estreitando-se como um gargalo, até chegar a um passo na montanha, a saída daquele anfiteatro natural. Havia algo não natural naquela clareira, algo que alertou O'Donnell e Hassan, que saltou do cavalo, lançando um alarido. Um muro baixo de pedra fechava a entrada estreita da passagem. Um tiro de espingarda ecoou daquela parede, quando a montaria de O'Donnell ergueu a cabeça, assustada com o brilho do sol no cano da arma. A bala, destinada ao cavaleiro, colidiu na cabeça do animal.

 

A fera entrou em colapso e O'Donnell saltou dela, rolando pelo chão até um grupo de rochas, atrás das quais Hassan  havia se escondido. Numerosos lampejos de fogo iluminaram a

parede e balas assobiaram ao redor deles, colidindo com o toco de rochas que serviam de refúgio. Eles se entreolharam com um sorriso sombrio e irônico.

 

—Bem,  encontramos o Hawklin! — disse Hassan.

 

—E em alguns minutos, Yakub Khan aparecerá atrás de nós, e estaremos entre a espada e a parede! —O'Donnell riu baixinho, mas a situação era desesperadora. Com os inimigos bloqueando o caminho das montanhas, e os outros inimigos avançando pelo desfiladeiro atrás deles, eles estavam completamente presos.

 

Os tocos de rocha sob os quais eles se agachavam os protegiam do fogo vindo da parede, mas não ofereceriam proteção contra os jowakis quando emergissem do desfiladeiro. Se eles se movessem de lá, seriam expostos aos homens na frente deles. Se eles não se mexessem, seriam baleados pelas costas pelos jowakis.

 

Uma voz ecoou, desafiando-os:

 

—Saia daí, para levar um tiro, seu canalha! —Hawklin não fez  nenhuma tentativa de esconder que era britânico—. Eu te conheço, Hassan! Quem é esse curdo que está com você? Pensei que o tivesse quebrado na noite passada!

 

—Sim, um curdo! —O'Donnell respondeu—. Um chamado Ali, el Ghazi!

 

Após um momento de assombrado silêncio, Hawklin gritou: 

 

—Eu deveria ter adivinhado, cachorro ianque!"Ah, sim, eu sei muito bem quem você é! Bem, isso não importa agora! Conseguimos encurralá-lo e você não pode se mover!

 

—Você está na mesma situação, Hawklin! —O'Donnell exclamou—. Não ouviu o tiroteio na entrada do desfiladeiro?

 

—Claro! Quem está te perseguindo? 

 

—Yakub Khan e cem jowakis! —O'Donnell exagerou—. Quando ele acabar conosco, você acha que ele deixará você ir tão calmamente? Depois de torturar um de seus homens para tirar seus segredos?

 

—É melhor nos deixar juntar a você! —Hassan acrescentou, reconhecendo, como O'Donnell havia feito antes, que essa era sua única chance—. Uma grande luta está chegando, e você precisará de toda a ajuda que puder, se quiser sair vivo dela!

 

Hawklin fez um sinal por cima do muro com sua cabeça com um turbante. Evidentemente, confiava no senso de honra dos dois homens que odiava e não tinha medo de um tiro de traição.

 

—Isso é certo? —Ele exclamou. 

 

—Você não consegue ouvir os cavalos?  O'Donnell espinhou.


Não havia necessidade de perguntar. A garganta reverberou com um ruído de cascos de cavalos e uivos selvagens. Hawklin empalideceu. Ele sabia que tipo de pena podia esperar de Yakub Khan. E conhecia a perícia em combate dos dois aventureiros... e sabia até que ponto a ajuda deles poderia contar em uma luta até  a morte.

 

—Suba até aqui, rápido! —Ele gritou—. Se ainda estivermos vivos quando a luta terminar, decidiremos quem ficará com o ídolo!

 

Realmente não era hora de pensar no tesouro, nem mesmo no Deus Carmesim! Suas próprias vidas estavam em risco. O'Donnell e Hassan se levantaram, com rifles na mão e correram ladeira abaixo em direção à parede de pedra. Assim que chegaram, os primeiros cavaleiros invadiram a entrada do desfiladeiro e começaram a atirar. Agachado atrás do muro, Hawklin e seus homens devolveram o fogo. Meia dúzia de selas foram deixadas vazias, e os jowakis, desmoralizados pelo inesperado granizo de balas, viraram-se e retornaram ao desfiladeiro.

 

O'Donnell estudou os homens que Destino havia feito seus aliados: os ladrões que roubaram seu mapa do tesouro e que, quinze minutos antes, teriam ficado encantados em matá-lo; Hawklin, sombrio e perspicaz, em sua roupa afegã; Jehungir Khan, de aparência impecável, depois de ter pilotado três léguas; e três hirsutos brutamontes yusufzai, por nomes tão diversos quanto Akbar, Suliman e Yusuf, que arreganharam os dentes com nojo. Aquela era uma aliança entre lobos que duraria apenas enquanto durasse a ameaça comum.

Os homens atrás do muro começaram a atirar nas figuras vestidas de branco que se espalhavam entre as rochas e arbustos 

perto da entrada do desfiladeiro. Os jowakis haviam desmontado e estavam rastejando pela clareira, aproveitando cada pequeno espaço coberto. Os rifles deles brilhavam por trás de todo toco de pedra e cada arbusto frondoso.

 

—Eles devem ter nos seguido —resmungou Hawklin, cutucando o cano de seu rifle—. O'Donnell, você mentiu para nós! Aí for Não pode haver cem homens!

 

—De todo modo, ainda é uma quantidade suficiente para cortar nossos pescoços —disse O'Donnell, apertando o gatilho. Um homem que saltava em direção a uma pedra foi fulminado e os guerreiros ocultos uivaram de raiva—. De qualquer forma, nada impede que Yakub Khan envie alguém para pedir reforços. Sua vila não fica a muitas horas a cavalo daqui.

A conversa deles seguia o ritmo dos firmes estampidos de seus rifles. Os Jowakis, bem escondidos, deixaram de sofrer vítimas com o tiroteio.

 

—Pelo menos temos uma chance atrás desse muro —rosnou Hawklin—. Não há como saber quantos séculos atrás ele foi construído. Parece-me que foi erigido pela mesma raça que ergueu o templo do Deus Carmesim. Essas montanhas estão cheias de ruínas como essas. Maldição! —Ele gritou para seus homens—: "Não atirem tanto! Estamos ficando sem munição. Eles estão se aproximando lentamente para nos atacar corpo a corpo. Reserve seus cartuchos para esse momento. Nós vamos derrubá-los assim que eles saírem a céu aberto —e um instante depois, ele exclamou:

 

—Aí vêm eles! 

Os jowakis avançavam a pé, correndo de uma pedra para outra, de um arbusto para o outro, disparando à medida que avançavam. Os defensores contiveram os disparos friamente, agachando-se e espiando através das rachaduras na parede. O chumbo esmagou a rocha, causando poeira e faíscas. Suliman  lançou uma série de maldições quando uma bala bateu em seu ombro. Lá atrás, na foz do desfiladeiro, O'Donnell distinguiu a barba ruiva de Yakub Khan, mas o chefe se protegeu antes que pudesse atirar nele. Tão evasivo quanto uma raposa, Yakub não estava disposto a liderar o ataque pessoalmente.

 

Mas os homens do seu clã lutaram com ferocidade desenfreada. Talvez o silêncio dos defensores os tivesse levado a acreditar que eles estavam sem munição. Ou talvez a sede de sangue que ardia nas veias os tivesse deixado de lado a astúcia. De qualquer maneira, trinta e cinco ou quarenta homens subitamente saíram ao ar livre e se lançaram para cima com um uivo de uma alcateia de lobos. Eles dispararam seus rifles aleatoriamente, e logo estavam na barreira com seus punhais de um metro de comprimento.

 

—Agora! —Hawklin gritou, e um voleio à queima-roupa atingiu a frente da horda. Em um instante, a encosta se encheu de figuras despedaçadas. Os   homens que estavam abrigados atrás do muro eram combatentes veteranos; o tipo de homem que nunca pode falhar a essa distância. O tributo que se cobrou à estrondosa chuva de chumbo foi impressionante, mas os sobreviventes continuaram avançando, com seus olhos brilhando, espumando nas barbas e os largos punhais brilhando nos punhos peludos.

 

—As balas não vão detê-los! —Hawklin uivou, disparando seu último cartucho de seu rifle—. Defendam o muro ou seremos homens mortos!

 

Os defensores esvaziaram suas armas contra a maior parte da massa de beduínos e depois subiram na muralha, empunhando seus aços e até seus rifles usando como maça de combate. A estratégia de Hawklin havia fracassado, e agora era hora de lutar corpo a corpo, golpeando e esquivando-se, e o diabo levando os infelizes.

 

Os homens tropeçavam e caíam sob o impacto das últimas balas, mas, acima de seus corpos despedaçados, a horda continuou avançando contra a parede até alcançá-la. Por toda a muralha ressoavam golpes que quebravam ossos, os tinir de aço atingindo o aço e os gemidos dos moribundos. O punhado de defensores ainda mantinha a vantagem de uma posição privilegiada, e a base do muro estava cheia de cadáveres empilhados antes que os jowakis conseguissem pisar no outro lado da barricada. Um homem da tribo de olhos selvagens  colocou a ponta do cano de um velho mosquete contra o rosto de Akbar, e a descarga explodiu a cabeça do yusufzai. Um uivante jowaki deslizou pela abertura estreita deixada pelo cadáver, subindo a parede antes que O'Donnell pudesse evitá-lo. O americano recuou com a intenção de carregar o rifle, mas descobriu que não havia cartuchos no cinto. Só então ele viu o jowaki selvagem subindo na parede. Ele correu em direção ao homem, segurando o rifle como um taco, enquanto o beduíno largou o mosquete para brandir uma faca comprida. Antes que ele pudesse tirá-la da bainha, O'Donnell golpeou nele com o rifle, esmagando seu crânio.

 

O'Donnell saltou sobre o cadáver para enfrentar a horda que se espalhava por toda a parede. Enquanto empunhava o rifle como uma maça, não teve tempo de assistir à luta ao seu redor. Hawklin praguejava em inglês, Hassan em persa e alguém gritava, em língua persa, uma agonia mortal. Ele ouviu sons de batidas, gemidos e xingamentos, mas não podia se dar ao luxo de olhar para a esquerda ou para a direita. Três homens tribais, enlouquecidos pela sede de sangue, lutavam como gatos selvagens para escalar o muro. O'Donnell os golpeou até que seu rifle foi reduzido a uma pilha de fragmentos, e dois deles caíram de cabeça aberta; mas o terceiro, escalando a parede, agarrou o  americano com as mãos de gorila e o abraçou, tão perto que ele foi incapaz de usar seu bastão improvisado. Meio sufocado por aqueles dedos peludos na garganta, O'Donnell puxou seu kindhjal e cravou-o cegamente, várias vezes, até que o sangue escorreu por sua mão e, com um rugido, o jowaki o soltou e precipitou-se pela beira do muro.

 

Enquanto recuperava o fôlego, O'Donnell olhou em volta, notando que a pressão parecia ter enfraquecido. A barricada não estava mais cheia de rostos selvagens. Os jowakis tropeçavam ladeira abaixo... os poucos que restaram para escapar. Suas perdas foram terríveis, e não havia um homem sequer entre os que escaparam que não sangrasse de algum ferimento.

 

Mas a vitória tinha sido cara. Sulimán estava estendido na parede, com a cabeça quebrada como um ovo. Akbar estava morto. Yusuf estava morrendo, com uma facada no abdômen, e seus uivos eram terríveis. Enquanto O'Donnell o observava, Hawklin implacavelmente terminou sua agonia com uma bala na cabeça. Então o americano viu Jehungir Khan, sentado de costas contra a parede, pressionando as mãos contra o corpo, enquanto o sangue vazava por entre seus dedos. Os lábios do príncipe estavam azulados, mas ele conseguiu lançar um sorriso sinistro. 


—Nasci em um palácio —ele sussurrou — e vou morrer atrás de um muro de pedra! Não importa ... é o Kismet. Há uma maldição flutuando neste tesouro... Os homens sempre morrem quando seguem a trilha do Deus manchado de sangue ... —e ele morreu enquanto falava.

 

Hawklin, O'Donnell e Hassan se entreolharam em silêncio. Eles eram os únicos sobreviventes... três figuras esbeltas, enegrecidas pela fumaça da pólvora misturada com sangue e com suas roupas esfarrapadas. Os jowakis, depois de escaparem, desapareceram no interior do penhasco, deixando a clareira do desfiladeiro vazia, exceto pelos muitos mortos espalhados por toda a encosta.

 

—Yakub escapou! —Hawklin resmungou—. Eu o vi deslizar pelo desfiladeiro quando seus homens começaram a fugir. Agora ele cavalgará para sua aldeia... E colocará toda a tribo em nossos calcanhares! Vamos! Nós podemos encontrar o templo. Vamos encarar isso como uma corrida ... podemos correr o risco de tentar se apossar do ídolo e, de alguma forma, escapar pelas montanhas, antes de sermos capturados. Estamos nessa situação juntos. Poderíamos esquecer tudo o que aconteceu e unir forças para o bem comum.  tesouro suficiente para todos os três. 


—Há muita verdade no que você diz  rosnou O'Donnell—. Mas é melhor você me devolver o mapa para começar. 

 

Hawklin ainda estava segurando uma pistola fumegante na mão, mas antes que ele pudesse levantá-la, Hassan estava apontando o revólver para ele.

 

—Reservei alguns cartuchos para este momento —disse Hassan, e Hawklin verificou como as pontas azuladas das balas saíam do tambor do revólver—. Me dê sua arma. Agora dê o mapa para O'Donnell.

 

Hawklin encolheu os ombros e puxou o pergaminho amassado. 

 

—Malditos sejam! Se encontrarmos esse tesouro, mereço a terceira parte! —ele exclamou.

 

O'Donnell examinou o mapa e colocou-o no cinto. 

 

—Muito bem, não guardo rancor. Você é um porco, mas se jogar limpo conosco, nós o trataremos como outro parceiro, não é, Hassan?  O persa assentiu, colocando as duas armas no cinto. 

 

—Não há tempo para discutir. Se quisermos sair disso vivos, será melhor para nós três fazermos o nosso melhor. Hawklin, se os jowakis nos encontrarem, eu devolvo sua arma. Caso contrário, você não precisará dela. 

 

CAPÍTULO 4

O Tributo do deus manchado de sangue

 

Os cavalos estavam amarrados na passagem estreita atrás do muro. Os três homens montaram os melhores animais, soltaram os demais e galoparam pelo desfiladeiro que se estendia além do desfiladeiro. A noite caiu sobre eles, mas eles continuaram viajando sem ceder ao cansaço. Atrás deles, em algum lugar — embora não soubessem se estavam muito longe ou muito perto — os homens da tribo de Yakub Khan cavalgavam, e se o chefe conseguisse capturá-los, sua vingança seria terrível. Então eles galoparam pela escuridão da noite no Himalaia, três homens desesperados em uma busca enlouquecida, com a morte por trás, perigos desconhecidos à sua frente e uma sombra de suspeita mútua apertando seus nervos.

 

O'Donnell observou Hassan como um falcão. Depois de vistoriar todos os cadáveres na muralha, ele não conseguiu encontrar um único cartucho não disparado, de modo que as pistolas de Hassan eram as únicas armas de fogo em todo o grupo. Isso deu ao persa uma vantagem que O'Donnell não gostou nada. Se chegasse um momento em que Hassan deixasse de precisar da ajuda de seus companheiros, O'Donnell tinha certeza de que o persa não teria nenhum escrúpulo em matá-los a sangue frio. Mas Hassan não se voltaria contra eles enquanto precisasse do apoio deles, e quando houvesse uma luta ... O'Donnell acariciou suas lâminas afiadas com uma expressão sombria. Em mais de uma ocasião, ele teve que usá-las contra o chumbo ardente  e ainda estava vivo para contar a história.

 

Enquanto continuavam seu caminho sob a luz das estrelas, guiados pelo mapa que indicava a rota de maneira inconfundível  - mesmo à noite - O'Donnell se viu perguntando novamente  o que o autor do mapa havia tentado lhe dizer antes. A morte levou Pembroke mais rápido do que ele esperava. Quando ele estava imerso na descrição do templo, sua boca se encheu de sangue e sua cabeça afundou para trás, enquanto se debatia desesperadamente para sussurrar mais algumas palavras, antes de morrer. Pareciam algum tipo de aviso... Mas do que?

 

Amanhecia quando deixaram um desfiladeiro estreito que terminava em um amplo vale, cercado por pedras altas. O desfiladeiro por onde haviam entrado, um caminho estreito entre montanhas escarpadas, era a única entrada para o vale; sem o mapa, eles nunca poderiam ter encontrado. Avançaram ao longo de uma borda de rocha que corria pela extensão do muro que cercava o vale, uma estrada elevada de trinta metros de altura que, por um lado, era limitada por um muro natural que subia trinta metros e, por outro Mais de trezentos caíram. Parecia não haver maneira de descer às profundezas enevoadas do vale, que se estendiam bem abaixo deles. Mas eles não dedicaram mais do que alguns olhares ao que estava abaixo, porque o que viram diante deles retirou de suas mentes toda a fadiga e fome que sentiam. Ali mesmo, na borda, estava o templo, brilhando ao sol nascente. Foi esculpido na rocha viva da montanha, e seu grande pórtico esculpido parecia desafiá-los. A borda servia como uma    estrada calçada que levava à sua porta assombrosa.

 

Que raça ou cultura eles poderiam representar, era algo que O'Donnell não ousava conjecturar. Mil conquistadores desconhecidos haviam pisado aquelas montanhas antes do amanhecer cinzento da história. Civilizações sem nome haviam se levantado e desmoronado antes dos cumes tremerem com as trombetas de Alexandre, o Grande.

 

—Como vamos abrir a porta? —O'Donnell se perguntou. O grande portão de bronze parecia ter sido construído para resistir a uma bateria de artilharia. Desdobrou o mapa e olhou novamente para as anotações rabiscadas nas margens. Mas Hassan desceu da sela e correu em frente, gritando fora de si. Um estranho frenesi próximo à loucura se originou no persa ao ver o templo e ao pensamento da riqueza fabulosa que havia dentro dele.

 

—Ele é um estúpido! —Hawklin rosnou, desmontando do cavalo—. Pembroke deixou um aviso por escrito na margem do mapa... "Você pode entrar no templo, mas precisa ser cuidadoso, porque o deus exige um tributo."

 

Hassan tocava    e empurrava vários ornamentos e bordas do   
portal. Eles o ouviram gritar exultantemente enquanto alguns deles se moviam sob suas mãos... Mas então seu grito se transformou em um uivo de terror quando a porta, uma tonelada de bronze esculpido, se inclinou e caiu com um estrondo. O persa não teve tempo de evitá-la. Ele foi esmagado como uma formiga. Seu cadáver preso permaneceu escondido sob a enorme laje de bronze, sob a qual agora havia uma grande poça carmesim de sangue.

 

Hawklin encolheu os ombros. 

 

—Eu  te disse que ele era estúpido. Os antigos sabiam guardar um tesouro. Eu me pergunto como Pembroke conseguiu evitar ser esmagado. 

—Obviamente, de alguma forma, conseguiu acionar a porta sem que ela se soltasse de seus suportes —respondeu O'Donnell—. Foi o que aconteceu quando Hassan ativou esses mecanismos. Deve ser o que Pembroke estava tentando me dizer antes de morrer... quais mecanismos devia acionar e quais evitar.

 

—Bem, o deus cobrou seu tributo, e nós temos o caminho aberto  rosnou Hawklin, pisando indiferente à porta avermelhada. O'Donnel entrou logo atrás. Eles pararam no largo umbral, examinando o interior sombrio como se espiassem o esconderijo de uma cobra. Mas nenhuma fatalidade repentina desceu sobre eles, nem a menor ameaça apareceu diante de seus olhos. Entraram com cautela. O silêncio envolvia o templo antigo, quebrado apenas pelo suave farfalhar de suas botas.

 

A escuridão os fez piscar. Além, um clarão carmesim atingiu seus olhos, como o brilho do crepúsculo. Eles encararam o Deus manchado de sangue, um objeto de bronze incrustado com pedras flamejantes. Tinha o formato de um anão e estava de pé sobre um bloco de basalto, de frente para a porta. À sua esquerda, a poucos metros da base do pedestal, o chão do templo estava aberto de um lado para o outro por uma grande falha, com cerca de cinco metros de largura. Em algum momento de sua   existência, um terremoto havia dividido o chão de rocha, e não havia como saber até onde suas profundidades ressonantes desciam. Muitas Eras atrás, inúmeras vítimas vociferantes haviam sido lançadas naquele abismo negro pelas mãos de terríveis sacerdotes, para servir como sacrifício humano ao Deus Carmesim. As paredes do templo eram altas e tinham uma escultura fantástica. O teto estava envolto em sombras enevoadas.

 

Mas a atenção dos homens estava ansiosamente fixada no ídolo. Sua aparência era brutal, repulsiva, uma monstruosidade leprosa cujas jóias vermelhas davam a ele a aparência repulsiva de estar coberto de sangue. Mas representava uma riqueza que fazia seus cérebros dançarem.

 

—Deus! —O'Donnell murmurou—. Essas jóias são reais!

Elas devem valer uma fortuna! 

 

—Milhões! —Hawklin ofegou—. Demais para compartilhar com um ianque  condenado!

 

Foram essas palavras, sussurradas inconscientemente entre os dentes rangentes do inglês, que salvaram a vida de O'Donnell, aralisado como estava pela contemplação daquele ídolo ímpio. Ele virou a cabeça, captou o brilho do sabre de Hawklin e se afastou bem a tempo. A lâmina sussurrando cortou um pedaço do pano ao lado de sua cabeça. Amaldiçoando seu descuido, pois deveria esperar tal traição, ele pulou para trás, desembainhando sua cimitarra.

 

O grande inglês saltou para ele como uma expiração e O'Donnell o encarou, deixando sua raiva fluir com um gosto de paixão. Eles lutaram incansavelmente, movendo-se para frente e para trás, aproximando-se do ídolo e se afastando dele, os pés deslizando rapidamente sobre a rocha e as lâminas se chocando, ressoando, lançando faíscas azuladas, enquanto se moviam pelas sombras.

 

Hawklin era mais alto que O'Donnell, e seus braços eram mais longos, mas O'Donnell era igualmente forte e ágil. Hawklin temia o kindhjal que ele empunhava mais do que a cimitarra na mão esquerda, e conseguiu manter a luta o mais longe possível, para que seu maior alcance pudesse ser decisivo. Ele também tinha uma adaga na mão esquerda, mas sabia que não poderia competir com O'Donnell no manuseio do punhal. Mas ele conhecia um grande número de truques sujos e os praticou com seu aço    comprido. Vez após vez, O'Donnell evitou a morte por uma margem tão pequena quanto um fio de cabelo e, por enquanto, nem mesmo sua grande habilidade e velocidade haviam rompido a excelente defesa do inglês.

 

O'Donnell tentou em vão chegar perto do corpo a corpo. 

 

Em uma ocasião, Hawklin tentou derrubá-lo na beira do abismo, mas ele ficou ao ponto de quase ser empalado pela cimitarra do americano; então abandonou a tentativa.

 

Então, inesperadamente, chegou o fim. O pé de O'Donnell escorregou levemente no chão polido e sua espada balançou por um instante. Hawklin mergulhou com toda sua força e velocidade, numa investida que teria feito o sabre perfurar de forma limpa no corpo de O'Donnell se ele tivesse conseguido alcançar seu objetivo. Mas o americano não estava tão desequilibrado quanto Hawklin pensava. Com uma leve contorção de seu corpo, a lâmina longa passou dentro da cavidade do braço direito, serrando o khalat solto e roçando as costelas. Por um momento, a espada ficou presa entre os pedaços de tecido solto e Hawklin uivou selvagemente, pegando sua adaga. Afundo-a profundamente no braço direito de O'Donnell,  enquanto simultaneamente o kindhjal que O'Donnell segurava na mão esquerda afundava entre as costelas de Hawklin.

 

O grito do ingles se transformou em um gorgolejo assustador. Ele se afastou e, quando O'Donnell puxou a lâmina, o sangue jorrou e Hawklin recuou, morrendo antes de atingir o chão.

 

O'Donnell deixou cair a arma e se ajoelhou, arrancando um pedaço de seu khalat para improvisar um curativo. Seu braço ferido estava sangrando profusamente, mas um exame rápido garantiu que a adaga não havia cortado nenhum músculo ou veia principal.

 

Enquanto aplicava a bandagem improvisada, amarrando com o auxílio dos dedos e os dentes, olhou para o Deus manchado de sangue que parecia contemplá-lo e ao homem que acabara de matar. Ele havia cobrado um tributo pesado e seu rosto talhado como uma gárgula parecia sugerir gula. O'Donnell estremeceu. Certamente devia estar amaldiçoado. Poderia uma riqueza obtida com essa fonte trazer boa sorte pelo preço simbolizado pelo cadáver a seus pés? Ele afastou esse pensamento de sua mente. O Deus Vermelho era dele, e ele o conquistara com suor, sangue e espada. Ele teria que empacotá-lo e carregá-lo em um cavalo, e   sair dali antes que a vingança de Yakub Khan pudesse alcançá- lo. Não retornaria pelo caminho que viera. Estaria cheio de jowakis. Ele deveria escapar cegamente, avançando por montanhas desconhecidas, confiando na sorte para chegar a um lugar seguro.

 

—Levante as mãos! —Ele ouviu um grito triunfante cujos ecos subiram ao teto.

 

Em um único movimento, ele se levantou, virou-se para a porta... e ficou paralisado.

 

Dois homens estavam diante dele, e um deles apontou um rifle para ele, pronto para disparar. Um dos homens era alto e magro, com barba avermelhada.

 

—Yakub Khan! — murmurou O'Donnell. 

 

O outro sujeito era um indivíduo forte e poderoso, que lhe era vagamente familiar.

 

—Largue suas armas! —o chefe deu uma risada rouca—. Você pensou que eu tinha ido para minha aldeia, não é?    

Estúpido! Enviei todos os meus homens para lá, exceto um, que foi o único que não foi ferido. Eles avisariam a tribo, enquanto eu te seguiria, acompanhado por este homem. Eu segui sua trilha a noite toda, e cheguei até aqui enquanto lutava com aquele ali, estirado no chão. Chegou a sua hora, cão curdo! Para trás! Para Trás! Para tras!

 

Sob a ameaça de um rifle, O'Donnell se moveu lentamente até chegar perto do abismo negro. Yakub o acompanhou, a uma distância segura de vários metros, e o rifle não hesitaria.

 

—Você me levou a um tesouro —Yakub murmurou, abaixando o cano da arma na penumbra—. Eu não sabia que este templo continha um ídolo! Se eu soubesse, eu o teria roubado há muito tempo, apesar da superstição dos meus seguidores. Yar Mohammed, pegue sua espada e punhal. Ao ouvir esse nome, a identidade do corpulento companheiro de Yakub foi esclarecida. O homem se abaixou para pegar a espada e depois exclamou:

 

—Alá! 

 

Ele estava olhando para o ornamento de bronze de cabeça de falcão que coroava o cabo da cimitarra de O'Donnell.

 

—Espere! —o waziri exclamou—. Esta é a espada de quem me salvou da tortura, mesmo correndo o risco de sua própria vida! Seu rosto estava coberto, mas eu me lembro da cabeça de falcão no punho de sua espada! É esse curdo!

 

—Silêncio! —o chefe resmungou—. Ele é um ladrão vai morrer!

 

—Não! —o waziri estava inflamado com a repentina e apaixonada lealdade dos homens das montanhas—. Salvou minha vida! Eu, um estranho! O que você me deu, exceto trabalho duro e salários miseráveis? Eu renuncio a minha adesão a você, ladrão jowaki!   

—Cachorro! —Rugiu o chefe, virando-se contra Yar Mohammed, que recuou por falta de armas de fogo. Yakub Khan disparou e a bala arrancou uma mecha de cabelo da barba do waziri. Yar Mohammed uivou uma maldição e correu para ficar atrás do pedestal do ídolo.

 

Assim que o estampido do disparo ressoou, O'Donnell pulou para derrubar o chefe, mas quando pulou, percebeu que iria falhar. Com um grunhido, Yakub virou o rifle em sua direção e, naquele momento, O'Donnell sabia que a morte viria do cano da arma antes que ele pudesse alcançar o jowaki. O dedo de Yakub começou a puxar o gatilho... e então Yar Mohammed levantou o ídolo no ar, e seus poderosos músculos rangeram quando ele o jogou.

 

Ele colidiu diretamente com o jowaki, derrubando-o para trás... sobre a beira do abismo! Yakub Khan atirou às cegas quando caiu, e O'Donnell sentiu o assobio próximo da bala. Um grito frenético subiu ao teto do templo, enquanto homem e ídolo desapareciam juntos para sempre.

 

Atordoado, O'Donnell deu um passo à frente e espiou por cima da borda, examinando as profundezas negras. Ele ficou olhando e ouvindo por um longo tempo, mas nem sequer conseguiu percebeu o som da queda. Ele estremeceu com a profundidade horripilante à sua frente e se afastou rapidamente. Uma mão firme em seu ombro o fez se virar para olhar o rosto barbudo e sorridente de Yar Mohammed.

 

—A partir deste momento, você será meu camarada —disse o Waziri—. Se você realmente é quem se chama Ali, el Ghazi. É verdade, então, que há um Ferengi escondido sob essa roupa?

 

O'Donnell assentiu, observando o homem de perto. Yar Mohammed apenas sorriu ainda mais.

—Não importa! Eu matei o chefe que seguia, e agora as mãos de sua tribo se levantarão contra mim. Devo seguir outro chefe... e ouvi muitas histórias sobre as façanhas de Ali el Ghazi! Então você vai me aceitar como seu seguidor, sahib?

 

—Você é o tipo de pessoa que vale a pena ter como amigo — disse O'Donnell, estendendo a mão à maneira do homem branco.

 

—Que Allah lhe dê abençoe! —Yar Mohammed exclamou alegremente, apertando sua mão com força—. E agora, vamos 

sair daqui rápido! Os Jowakis chegarão a este lugar antes que passem muitas horas e não devem nos encontrar aqui! Mas existe um caminho secreto, além deste templo, que desce ao vale, e conheço caminhos ocultos que podem nos tirar dele e nos levar muito mais longe, antes que nossos inimigos apareçam. Vamos lá!

 

O'Donnell pegou suas armas e seguiu o waziri até a parte externa do templo. O ídolo estava perdido para sempre, mas esse tinha sido o preço de sua própria vida. E havia muitos outros tesouros perdidos para desafiar a habilidade do aventureiro incansável. Sua mente  estava se voltando para a possível busca de um tesouro mítico oculto mencionado em cem lendas.

 

—Alhamdolillah! —Ele disse e riu com uma alegria contagiante de viver enquanto seguia o waziri até o local onde deixara os cavalos amarrados.

 

FIM

 

Tradução e revisão: Marcelo Alves

Fontes: Robert E. Howard. Espadas de Shahrazar y otras historias orientales, 2008.

Robert E. Howard. El Borak and Other Desert Adventures. Del Rey Books, 2010.





 




 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 








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