A Ilha dos Horrores


A Ilha dos Horrores

(por Fernando Neeser de Aragão)


Livremente inspirado num conto de Robert E. Howard.



“O mundo ocidental se encontrava então dominado pelos bárbaros do norte. [...] Os poderosos hiborianos do passado desapareceram da face da terra, deixando apenas um vestígio de seu sangue nas veias de seus conquistadores.”

(Robert E. Howard – A Era Hiboriana).


A princípio, ouviu-se apenas o ruído de pés descalços correndo. A seguir, surgiu o pisar agressivo de botas de couro. Nestes dois tipos de som, havia a diferença entre o pânico desesperado e o firme avanço da conquista. Uma conquista bastante facilitada pelos juncos dos pântanos, que mais pareciam tentáculos ameaçadores, fazendo uma apavorada e desnuda jovem loira tropeçar e cair, perto da margem de um rio.

- Para trás! – ela gritou.

Acima dela, se erguia um homem alto e musculoso, de barba e cabelos ruivos, expressão maldosa e vestindo um manto de pele de urso sobre a cota-de-malha, a qual lhe cobria o tronco poderoso e parte da tanga, também de pele de urso Seus olhos azuis, que despontavam sob o elmo azulado com chifres bem polidos de touro, miraram a moça com expressão zombeteira.

- Por Ymir, você me proporcionou uma bela caçada – disse ele, retirando o manto. – Todos os meus homens ficaram para trás.

- Deixe-me ir embora! – suspirou a moça, com o rosto coberto de lágrimas. – Já não sofri o bastante? Há, por acaso, alguma humilhação, dor ou infâmia que não me tenha causado? Quanto há de durar meu tormento?

- Durará enquanto eu encontrar prazer em seus lamentos, em suas súplicas e em suas lágrimas – ele respondeu, com um sorriso que pareceria amável a um estranho. – Você é muito atraente, Idhuna. Pergunto-me se, algum dia, chegarei a me cansar de você, como outrora me cansei de outras mulheres. Você é vivaz e alegre, apesar de tudo. Cada dia que passo a seu lado proporciona-me novas delícias.

“Mas, vamos; voltemos à minha tribo”, prosseguiu ele, “onde o Clã dos Ursos ainda celebra ao vencedor daqueles miseráveis cimérios da Tribo do Lobo, enquanto ele, o vencedor, se dedica a perseguir uma pobre fugitiva, uma tonta, adorável e estúpida garota que quer escapar. Mas primeiro...”, ele completou, com um sorriso maldoso, tirando a tanga.

Contudo, ao se deitar para violentar a mulher, ela lhe arranhou o rosto barbado, fazendo-lhe o sangue escorrer quente da testa até o queixo.

- Prefiro morrer a ser possuída outra vez por você, seu chacal vanir! – ela exclamou.

- Vagabunda! – gritou o vanir, esbofeteando a face da bela jovem e deitando-se novamente sobre ela. – Você morrerá como quer, sim... mas só depois que eu possuí-la!

Súbito, um grito inarticulado fez o homem soltar a moça e proferir uma maldição, ao mesmo tempo em que saltava para trás e desembainhava sua espada. Uma terrível aparição surgiu dos juncos e lançou outra exclamação de ódio.

Idhuna, que do chão olhava a cena, viu um homem moreno, que parecia um louco, avançar em direção a Olav, em atitude ameaçadora. Era um indivíduo de constituição tão forte quanto a do vanir, mas coberto unicamente por uma tanga manchada de sangue e de barro seco. Sua negra cabeleira também tinha abundantes manchas de lodo e sangue, e o mesmo ocorria com seu peito, braços e pernas, assim como com a espada que empunhava na mão direita. Atrás do emaranhado de cabelos escuros, seus olhos injetados em sangue brilhavam como duas frias chamas cinzentas.

- Cachorro vanir! – disse a aparição, com sotaque cimério. – Os demônios da vingança trouxeram-lhe até aqui!

- Um cimério! – exclamou Olav, recuando. – Eu não sabia que um daqueles cães da Tribo do Lobo havia escapado. Pensei que todos estivessem mortos, em meio às cinzas fumegantes de sua aldeia.

- Todos, menos eu, maldito! – gritou o outro. – Ah, como eu havia sonhado com este momento, quando me arrastava entre os espinhos ou me estendia sob os rochedos, enquanto as formigas roíam minha carne, e quando eu me revolvia na lama que me cobria até a boca! Sonhei, mas nunca achei que se tornaria realidade. Como eu desejei este momento!

Era terrível contemplar o gozo sanguinário do desconhecido. Suas mandíbulas estalavam espasmodicamente e a espuma cobria seus lábios enegrecidos.

- Para trás! – ordenou Olav, olhando fixamente o outro homem.

- Não, Olav, grande senhor do Clã dos Ursos! – respondeu o homem de cabelos negros, com uma voz que parecia o uivo de um lobo selvagem. – Ah, maldito seja, como me alegra lhe ver, miserável... você, que transformou meus amigos e parentes em pasto de abutres... você, que esquartejou todos os homens... que degolou todas as mulheres e crianças... Cachorro infame!

A voz do cimério transformara-se num grito enlouquecido, quando atacou.

Apesar do terror que aquela terrível aparição lhe provocara, Idhuna temeu que o desconhecido caísse ao primeiro choque das espadas. Louco ou selvagem, o que aquele homem seminu podia fazer contra o chefe do Clã dos Ursos, protegido por sua cota-de-malha?

As lâminas das espadas soltavam faíscas, embora mal parecessem ter se roçado; logo, a espada do cimério colidiu com a de Olav e caiu com terrível força sobre seu ombro. Idhuna não conseguiu conter uma exclamação diante da violência atroz daquele golpe. Entre o estalo metálico da malha fendida, a moça ouviu claramente o ruído de ossos quebrados. O vanir recuou, pálido como a morte e com a cota-de-malha ensopada de sangue. A espada caiu de seus dedos, incapazes de qualquer movimento.

Idhuna fechou os olhos. Aquilo já não era uma luta, mas uma carnificina infernal e sangrenta, gerada pela fúria e ódio em que culminavam os sofrimentos da batalha, massacre e tortura, e os padecimentos da sede e da fome. Embora Idhuna soubesse que Olav não merecia nenhuma piedade, ela fechou os olhos e cobriu os ouvidos com as mãos, para não ver a espada gotejante que afundava várias vezes, como o machado de um açougueiro, até que os gritos se transformaram num estertor, que finalmente enfraqueceu até cessar completamente.

Então abriu os olhos e viu o estrangeiro, no momento em que este retirava a espada do ensangüentado arremedo de ser humano que havia deixado no solo. O homem ofegava exausto e cheio de ira. Tinha a fronte gotejada de suor e a mão manchada de sangue fresco.

O desconhecido não disse uma só palavra; nem sequer olhou a moça. Ela o viu avançar entre os juncos da margem, e logo inclinar-se e puxar algo. Então, apareceu uma barca que saía de seu esconderijo entre os finos talos. Idhuna supôs que o homem tinha a intenção de ir embora, o que a impeliu a agir.

- Não; espere! – exclamou em tom choroso, correndo até ele. – Não me deixe aqui! Leve-me com você!

O homem virou-se e olhou-a fixamente, mudando de atitude. Seus olhos, injetados em sangue, pareciam os de uma pessoa sensata. Era como se o sangue que acabava de derramar lhe houvesse devolvido a condição de ser humano.

- Quem é você? – perguntou ele.

- Me chamo Idhuna. Era prisioneira desse homem e fugi dele. Perseguia-me. Por isso, chegamos até aqui. Oh, peço-lhe que não me abandone! Seus guerreiros não estão longe. Encontrarão seu cadáver, me acharão perto e...

A jovem retorceu as mãos, cheia de espanto, e o desconhecido olhou-a, desconcertado.

- Acaso prefere vir comigo? – perguntou. – Sou um cimério e sei, pela maneira como me olha, que você me teme.

- Sim, lhe temo – respondeu ela, atordoada demais para poder fingir. – Minha carne se estremece de pavor, devido a seu aspecto, mas temo mais ainda os vanires. Por favor, deixe-me ir com você! Submeterão-me a terríveis torturas e humilhações, se me encontrarem ao lado de seu chefe morto.

- Então venha.

Ele virou para um lado e ela subiu rapidamente a barca, evitando todo o contato com ele. Logo, Idhuna sentou-se na proa. O desconhecido também subiu e depois empurrou o bote com o remo; quando havia deixado para trás os juncos das margens, pôs-se a remar com pancadas suaves e regulares, que faziam mover ritmicamente todos os músculos de seu corpo.

A moça encolheu-se na proa, enquanto o homem continuava impulsionando os remos em completo silêncio. Idhuna observava-o com tímida fascinação. Suas feições, por baixo das manchas de sangue da batalha e do barro dos lamaçais, refletiam um caráter indomável e selvagem, como o dos vanires do Clã do Urso, mas não indicavam um ser malvado nem perverso.

- E você, quem é? – perguntou ela. – Você pertencia à Tribo do Lobo?

- Sou Eithriall, um cimério – disse ele com um grunhido. – Eu era um dos membros da Tribo do Lobo. Mas, como uma aesir se deixa açoitar e humilhar, como se fosse uma das chamadas “escravas”, dos shemitas e egípcios frouxos, que vivem a oeste daqui? – ele acrescentou, ao ver as marcas de chicotes em suas nádegas e dorso nus.

Ela não sabia dizer grande coisa de onde vivera sua infância, carecendo de conhecimentos geográficos, mas havia sido muito longe ao norte. Lembrava-se de uma costa desolada, açoitada pelas ondas; míseras cabanas de lama e caniço, e pessoas de cabeleira loira, como ela. Assim, Eithriall foi levado a crer que ela provinha de um ramo dos aesires que indicava a migração mais ocidental de sua raça nessa época. Tinha talvez nove ou dez anos quando fora capturada, numa incursão à aldeia por pictos em barcos.

Levaram-na, e uma tormenta empurrou-lhes em direção ao sul durante muitos dias, até que sua galera encalhou nos recifes da costa egípcia, onde homens blindados correram até a praia e mataram os sobreviventes. Por algum capricho, pouparam a garota de cabelos amarelos, e a escravizaram e venderam a um chefe vanir que vivia a leste – e este, por sua vez, a outro chefe de cabelos vermelhos.

A jovem estremeceu e ocultou o rosto entre as mãos.

- Fui submetida a todo tipo de infâmias – prosseguiu Idhuna. – O simples fato de lembrá-las é como uma chicotada. Vivi na tribo de Olav até que, há algumas semanas, ele partiu com seu bando para atacar uma tribo ciméria. Ontem, regressou triunfante e organizou uma grande festa. Enquanto todos se divertiam e embriagavam-se, aproveitei a oportunidade para fugir da tribo. Achei que havia conseguido, mas ele me seguiu e, perto do meio-dia, encontrou meu rastro. Deixei seus guerreiros para trás, mas não consegui fugir dele. Então, você chegou.

- Há uma semana, Olav nos preparou uma emboscada com vários de seus homens – disse, por sua vez, Eithriall. – Por Crom! O céu estava coberto de abutres negros. Toda a minha tribo foi transformada num campo carbonizado e devastado. Ninguém escapou. Aqueles demônios de cabelos vermelhos mataram minha esposa, meus filhos, amigos, pais... Após vingá-los, matando alguns daqueles cães ruivos, eu me dirigi para o leste e finalmente cheguei aos pântanos que cercam esta parte do Mar do Interior.

“Escondi-me entre os juncos, desde então, e me enterrei como uma serpente, alimentando-me de ratazanas almiscaradas que eu comia cruas, pois não podia fazer fogo. Pela manhã, encontrei esta barca, oculta entre os juncos. Não pensava em ir ao mar antes da noite, mas depois de ter matado Olav, fiquei sabendo que seus homens estão próximos, e por isso vou embora”.

- E agora, o que faremos?

- Não há dúvida de que nos perseguirão. Mesmo que não cheguem a descobrir os sinais do bote, os quais tentei disfarçar o melhor possível, certamente suspeitarão que nos dirigimos para o mar, sobretudo quando não nos encontrarem nos mangues. Mas já estamos seguindo, e eu continuarei grudado a estes remos, até chegarmos a um esconderijo seguro.

- Onde encontraremos um? – perguntou ela, com atitude desesperançosa. – Este é um mar interno, dominado por povos hostis.

- Algumas pessoas não pensam assim – respondeu Eithriall, com um sorriso algo sinistro. – Especialmente os escravos que vivem a leste, fugiram das galeras e tornaram-se piratas.

- Quais são seus planos?

- Os hirkanianos dominam a costa leste deste mar, ao longo de centenas de milhas. Ainda falta muito para chegarmos até suas fronteiras no norte. Pretendo seguir nessa direção até que tenhamos deixado os vanires de Olav para trás. Mais tarde, iremos para o oeste e tentaremos desembarcar nas praias cercadas pelas estepes desabitadas.

- E se nos encontrarmos com os piratas, ou formos surpreendidos por uma tormenta? – perguntou Idhuna. – Além disso, nós morreremos de fome ali.

- Não lhe pedi pra vir comigo – lembrou-lhe o cimério.

- Desculpe – respondeu ela, inclinando sua bela cabeça loira. – Piratas, tempestades, fome... Tudo isso é menos cruel que os vanires.

- Sim – disse Eithriall, com o rosto sombrio. – Mas acalme-se, garota. As tempestades são raras no Mar do Interior, nesta época do ano. Se chegarmos às estepes, não morreremos de fome. Eu nasci e me criei em terras inóspitas e simples, a sudoeste do Mar do Interior. São estes malditos pântanos, com seu fedor e seus mosquitos, que me desconcertam. Nas estepes, me sinto em casa. Quanto aos piratas...

Eithriall sorriu enigmaticamente e se debruçou com mais energia sobre os remos.

O sol havia se escondido como uma bola de cobre que cai num mar de fogo. O azul do mar fundia-se com o do céu, e depois ambos se transformavam num delicado veludo escuro, pontilhado de estrelas. Idhuna se apoiou na borda da barca, num estado quase irreal, de meio-sono. Tinha a sensação de estar flutuando no ar, com estrelas por cima e por baixo dela. Seu silencioso companheiro se destacava vagamente contra a escuridão suave. Não havia pressa nem pausa no ritmo dos remos, que ele manejava com tanta destreza. Quiçá ele era o barqueiro que a transportava ao outro lado do escuro lago da Morte. Mas a moça esqueceu seus temores e mergulhou num sono tranqüilo, acompanhada pelo movimento monótono dos remos.



A luz da aurora refletiu-se nos olhos de Idhuna, quando ela despertou com uma fome espantosa. Despertara devido a uma mudança brusca na direção da barca. Eithriall descansava sobre os remos, olhando por cima dela. A aesir se deu conta de que o cimério havia remado a noite inteira e admirou-se diante de sua resistência, ainda mais férrea que a de um nordheimr. A jovem virou-se para seguir o olhar de Eithriall e viu um muro verde de árvores e arbustos, que circundavam com uma ampla curva uma pequena baía, cujas águas estavam calmas como a superfície de um cristal azul.

- Esta é uma das muitas ilhas que existem neste mar interior – disse Eithriall. – Acredita-se que são desabitadas, e ouvi dizer que elas raramente são visitadas. Além disso, nós estivemos navegando por muitas horas. Antes que escureça, deixaremos de ver terra.

Com umas poucas batidas de remo, Eithriall dos cimérios levou o bote até a margem, amarrou a corda da proa a uma árvore e saltou à terra. Estendeu a mão a Idhuna, que fez uma expressão de pesar, ao ver as manchas de sangue que cobriam a pele do seu salvador, e se estremeceu ao sentir a força que irradiava da mão do cimério.

Uma quietude fantástica reinava na matas que circundavam a pequena enseada azul. Logo, entre as árvores, ouviu-se o gorjeio matinal de um pássaro e o sussurro das folhas movidas pela brisa. Idhuna ouviu um ruído, apesar de não saber exatamente o que era. O que poderia se esconder naqueles bosques costeiros?

Enquanto ela observava timidamente as sombras que haviam entre as árvores, algo saiu à luz do sol, voando rapidamente. Era um enorme papagaio, que aterrissou sobre o galho de uma árvore e ficou ali, balançando-se, como uma brilhante figura de jade e carmim. A ave virou a cabeça para o lado e mirou os intrusos com seus reluzentes olhos de azeviche.

- Por Crom! – murmurou o cimério. – Eis aqui o avô de todos os papagaios. Deve ter milhares de anos! Veja a perversa sabedoria que há em seus olhos. Que mistérios guarda, sábio demônio?

De repente, o pássaro estendeu suas asas multicoloridas e gritou com voz rouca:

-Yagkoolan yok tha, xuthalla!

Logo lançou um guincho que parecia uma espantosa risada humana, alçou vôo e desapareceu entre as sombras das árvores.

Idhuna olhou em direção ao local por onde havia desaparecido o papagaio, e sentiu como se uma estranha premonição lhe tocasse a espinha dorsal com uma mão gelada.

- O que disse? – perguntou, num sussurro.

- Eu juraria serem palavras humanas – respondeu Eithriall. – Mas numa língua que desconheço.

- Tampouco eu conheço – afirmou a moça. – Mas deve tê-la aprendido de lábios humanos. Humanos ou...

Permaneceu olhando a mata e estremeceu sem saber o porquê.

- Crom, estou com uma fome espantosa! – exclamou o cimério. – Seria capaz de comer um búfalo inteiro. Vamos procurar frutas. Mas antes vou lavar este barro e este sangue seco. Não é nada agradável esconder-se nos pântanos.

Deixou a espada de um lado e, adentrando a água transparente e azul, fez suas limpezas. Quando saiu à margem, sua pele bronzeada brilhava sob os raios do sol e sua cabeleira negra já não estava emaranhada. Seus olhos cinzentos, embora ardessem com um fogo inextinguível, já não estavam injetados de sangue. Mas a agilidade felina de seu andar e o aspecto perigoso de seu semblante não haviam se alterado.

Virou-se para colocar a espada e fez um sinal para que Idhuna o seguisse. Abandonaram a margem e adentraram a mata, passando sob as arcadas, formadas pelos grandes galhos das árvores. Pisaram num capim baixo e verde, que suavizava o ruído de seus passos. Entre os troncos das árvores, puderam perceber uma paisagem sobrenatural e fantástica.

Finalmente, Eithriall lançou um grunhido de satisfação, ao ver uns frutos dourados e avermelhados, que pendiam em cachos de algumas árvores. Sinalizou à moça para que sentasse num tronco caído, e foi enchendo seu colo de frutas exóticas, que se puseram a comer com óbvio prazer.

- Por Dagda! – exclamou Eithriall, entre uma mordida e outra. – Desde o dia do massacre da Tribo dos Lobos, tenho vivido de ratazanas e de raízes que tirava do barro fedorento. Isto, em compensação, é doce ao paladar, embora não encha muito o estômago. Mas nos servirá de alimento, se comermos o bastante.

Idhuna estava ocupada demais para responder. Assim que acalmou um pouco sua fome, Eithriall começou a observar sua companheira com maior interesse. Observou os cachos de sua cabeleira dourada, o tom rosado de sua pele suave e os contornos delicados de seu corpo nu.

Saciado seu apetite, a garota levantou a cabeça. Ao se deparar com aqueles olhos ardentes, mudou de cor e deixou escapar entre seus dedos o fruto que estava comendo.

Eithriall não fez nenhum comentário, mas indicou, com um gesto, que deviam continuar sua exploração. A moça ficou em pé e o seguiu por entre as árvores, até chegar a uma clareira da qual se via uns densos matagais. Ao entrarem na clareira, ouviram um ruído de folhas, que vinha dos arbustos. Eithriall saltou para um lado e empurrou a garota com ele, evitando assim uma coisa que cruzou o ar e espatifou-se estrondosamente contra o tronco de uma árvore.

Eithriall sacou rapidamente sua espada e adentrou os matagais. Logo, seguiu-se um profundo silêncio, durante o qual Idhuna encolheu-se no capim, desconcertada e horrorizada. Finalmente, o cimério voltou à clareira com uma atitude de estranheza no rosto.

- Não vi nada nos matagais – disse. – Mas nesse lugar há algo...

O guerreiro de cabelos negros aproximou-se da árvore e analisou o objeto que quase os atingira. Então, soltou um grunhido com ar incrédulo, como se não acreditasse em seus próprios olhos. Tratava-se de um enorme bloco de pedra esverdeada, que jazia ao pé da árvore, cuja madeira havia se despedaçado com o impacto.

- Uma estranha pedra, nada comum numa ilha desabitada – disse o cimério.

Idhuna abriu seus enormes e belos olhos com expressão de assombro, quando notou o pedaço de mineral. Tratava-se de um bloco de pedra com formas simétricas, sem dúvida talhado por mãos humanas. Era extraordinariamente pesado. O cimério pegou-o com ambas as mãos, e logo, apoiando firmemente suas pernas no chão e com todos os músculos contraídos, ergueu-o acima da própria cabeça e arremessou-o com força. A pedra caiu a poucos passos de onde estavam. Eithriall proferiu uma maldição.

- Não há ser humano capaz de lançar essa pedra de um lado a outro desta clareira. Não caiu obliquamente de cima, mas foi lançada daqueles matagais em linha horizontal. Não está vendo esses galhos quebrados? Alguém a arremessou como quem atira um pedregulho. Mas, quem terá sido? Vamos!

A moça o seguiu, com ar indeciso, até os matagais.

Uma vez transposto o círculo externo dos arbustos, a vegetação era menos densa. Um silêncio absoluto reinava naquele lugar. Na grama úmida, não havia pegadas. No entanto, a pedra provinha daqueles misteriosos matagais e havia sido lançada com uma terrível pontaria. Eithriall se inclinou sobre a relva, e viu que esta estava esmagada em alguns lugares. Moveu a cabeça com ar aborrecido. Nem sequer seus olhos agudos podiam descobrir indícios que permitissem adivinhar quem havia passado por ali. Eithriall levantou os olhos para o teto verde de folhas, que cobria suas cabeças, e ficou paralisado.

Logo, de espada na mão, começou a recuar, enquanto segurava Idhuna pelo braço.

- Vamos sair daqui, rápido! – disse, com um sussurro que gelou o sangue nas veias da jovem.

- O que está acontecendo? O que você viu?

- Nada, nada – ele respondeu com tom evasivo, sem interromper sua retirada cautelosa.

- Mas o que havia nesses matagais?

- A morte! – respondeu Eithriall, com a vista ainda cravada na abóbada de cor jade que cobria o céu.

Uma vez saindo dali, o cimério pegou a moça pela mão e conduziu-a rapidamente através de uma rampa onde as árvores eram escassas, até chegarem a um planalto, onde o capim era alto e mal se via árvores. No centro da chapada, erguia-se um amplo edifício em ruínas, construído com pedras verdes.

Ambos contemplaram, assombrados, a estrutura de pedra. Não havia lendas que mencionassem a existência de tal edifício numa das ilhas do Mar do Interior. O casal se aproximou cautelosamente, viram que o musgo e os liquens subiam pelas paredes de pedra e que, no teto, havia numerosas brechas que deixavam ver o céu. Por todos os lugares se via escombros, alguns parcialmente ocultos entre o capim alto. Dava a impressão de que, em épocas remotas, fora erguida uma cidade inteira ali. Mas agora só restava de pé a grande sala, cujas paredes se mantinham em equilíbrio precário entre as trepadeiras.

As portas, que poderiam existir naqueles vãos, haviam desaparecido há tempos. Eithriall e a jovem pararam na ampla entrada e olharam para dentro. Os raios de sol entravam abundantemente através dos buracos das paredes e do teto, criando um vivo contraste de luzes e sombras. Eithriall agarrou sua espada com força e entrou no edifício com a cabeça encolhida entre os ombros e o andar cauteloso de uma pantera. Idhuna seguiu-o sigilosamente.

Uma vez dentro, o cimério soltou um grunhido de surpresa e Idhuna abafou um grito:

- Oh, veja, veja!

- Sim, já vi – respondeu ele. – Mas não há nada a temer. Não são mais que estátuas.

- Entretanto, parecem vivas. E que expressão maligna elas têm! – sussurrou ela, chegando mais perto de Eithriall. 

Encontravam-se numa enorme sala, cujo chão de pedra polida estava coberto de poeira de escombros, caídos do teto. As trepadeiras, que cresciam entre as pedras, cobriam as inúmeras brechas. O teto, bastante alto, plano e sem abóbadas, era sustentado por enormes colunas enfileiradas ao longo das paredes. Entre uma coluna e outra, havia umas figuras de estranho aspecto.

Eram estátuas aparentemente feitas de ferro, negras e brilhantes, como se alguém estivesse polindo-as constantemente. Eram de tamanho humano e representavam homens altos, delicados e robustos, com uma expressão cruel num rosto aquilino. Estavam nus, e todos os detalhes dos músculos, articulações e tendões haviam sido representados com incrível realismo. Mas a característica mais real das estátuas era seu semblante altivo e impiedoso. Era evidente que aquelas feições não estavam esculpidas da mesma forma. Cada rosto possuía uma característica individual, apesar de vislumbrar-se um parentesco racial entre todos eles. Naqueles rostos não havia a monótona uniformidade da arte decorativa.

- Parecem estar escutando... e esperando! – murmurou Idhuna, inquieta.

Eithriall bateu numa das estátuas com o cabo da espada.

- É de ferro, mas... por Crom, de que maneira foram feitas?

O cimério moveu a cabeça e logo encolheu os ombros, claramente desconcertado.

Idhuna lançou um olhar tímido ao silencioso recinto. Seus olhos percorreram as pedras cobertas de hera, as altas colunas com trepadeiras e as estátuas escuras que havia diante dela. Sentiu vontade de partir dali o quanto antes, mas as estátuas exerciam uma estranha fascinação sobre seu companheiro. Este as examinou minuciosamente, e logo tentou levantar uma e arrancar-lhe um braço ou uma perna. Mas o material era mais forte e resistente que ele. Não conseguiu entortar, nem tirar de seu lugar, uma só estátua. Finalmente desistiu, praguejando.

- A quem queriam reproduzir? – perguntou Eithriall em voz alta. – Estas figuras são negras e, entretanto, não representam pessoas da raça negra. Jamais vi homens como esses.

- Vamos para a luz do dia – suplicou Idhuna, olhando com receio para as figuras que estavam entre as colunas.

Passaram, do sombrio salão, ao claro resplendor do sol. A moça se surpreendeu, ao ver a posição do astro-rei no céu. Havia transcorrido, dentro das ruínas, bem mais tempo do que ela havia imaginado.

É melhor voltarmos ao bote – ela sugeriu. – Tenho medo. É um lugar estranho... parece amaldiçoado. Tenho a impressão de que podem nos atacar a qualquer momento.

- Já eu acredito que estaremos mais seguros, enquanto não estivermos debaixo das árvores – respondeu Eithriall. – Venha.

A chapada, cujas beiradas desciam até as praias cobertas de vegetação, continuava ascendendo para o norte, até chegar a um grupo de escarpados rochosos, que constituíam o ponto mais alto da ilha. Eithriall caminhou para lá, seguido de perto pela garota. De vez em quando, olhava-a com uma expressão indecifrável no rosto, e ela sentia seu olhar.

Alcançaram a extremidade setentrional da chapada, de onde contemplaram a escarpada pendente. As árvores cresciam densamente pela beirada da colina, para leste e oeste dos escarpados. Eithriall olhou-a com receio, mas começou a subir, ajudando sua companheira. A costa não era uniforme, vez que estava interrompida por penhascos e cornijas rochosas. Vez ou outra, a moça se sentiu levantada do chão, quando havia um obstáculo que lhe dificultava o avanço, e sua admiração aumentou ao notar a enorme força física do homem ao seu lado. Já não achava repulsivo o contato com o cimério, pois se sentia protegida por aquelas mãos de ferro.

Finalmente chegaram ao topo, onde o vento agitou seus cabelos. De onde estavam, viam toda a ilha como um enorme espelho ovalado, cercado por um anel de verdor luxuriante, com exceção da parte mais vertical da pendente. Diante de sua vista, estendiam-se as águas azuis e plácidas, que se dissipavam à distância entre brumas.

- O mar está tranqüilo – disse Idhuna, suspirando. – Por que não continuamos a viagem na barca?

Eithriall, erguido como uma estátua de bronze sobre o cume, apontou para o norte. A jovem aguçou a vista e viu uma mancha branca, que parecia estar suspensa em meio à densa bruma que se via à distância.

- O que é aquilo?

- Uma vela.

- Serão hirkanianos?

- É difícil saber, a tanta distância. Mas, neste mar, apenas eles navegariam.

- Vão ancorar aqui! Buscarão-nos por toda a ilha! – exclamou ela, tomada de pânico.

- Duvido. Não são vanires e vêm do norte, de modo que não estão nos procurando. Talvez parem aqui por alguma outra razão, de modo que teremos que nos esconder o melhor possível. Creio que se trata de piratas, ou talvez de uma galera hirkaniana regressando de alguma incursão pelas costas do norte. Neste último caso, não creio que pare aqui. Mas não podemos voltar ao mar até que sumam de nossa vista, pois eles vêm por onde nós deveremos partir. Certamente, passarão a noite na ilha e, ao amanhecer, podemos seguir viagem.

- Então teremos que passar a noite aqui? – perguntou ela com um tremor.

- É o mais conveniente.

- Nesse caso, vamos dormir aqui, entre as rochas – suplicou a garota.

Eithriall mexeu negativamente a cabeça, enquanto observava as árvores próximas, que constituíam uma massa verde com prolongamentos de ambos os lados dos rochedos.

- Há árvores demais. Dormiremos nas ruínas.

Idhuna lançou um grito de protesto.

- Ninguém lhe fará mal lá – disse o cimério, procurando acalmá-la. – Seja quem for que arremessou a pedra, não nos seguiu fora da floresta. E não havia nenhum indício de alguém oculto entre as ruínas.

Idhuna assentiu silenciosamente, e ambos empreenderam a descida. Depois de cruzarem a chapada, aproximaram-se mais uma vez das ruínas sombrias, às quais o tempo tinha dado um ar de mistério. O sol se punha sob a chapada. Nas árvores próximas ao declive, encontraram frutos que lhes serviram de jantar.

A noite caía rapidamente naquelas latitudes do sul, pontilhando o céu escuro com grandes estrelas brancas. Eithriall entrou nas ruínas sombrias, trazendo Idhuna, que o seguia de má vontade. A moça estremeceu, ao ver aquelas altivas figuras negras entre as colunas. Na escuridão, mal atenuada pelo suave fulgor das estrelas, a jovem quase não podia ver os contornos das estátuas. Percebia tão-somente sua atitude de espera, uma espera que parecia ter se prolongado ao longo de muitíssimos séculos.

Eithriall trouxe uma grande quantidade de galhos macios, cheios de folhas, e improvisou uma espécie de leito para Idhuna, que se estendeu sobre ele com a estranha sensação de estar dormindo no esconderijo de uma serpente.

O cimério não compartilhava os temores da garota. Sentou-se ao seu lado, com as costas apoiadas numa coluna e a espada em cima dos joelhos. Seus olhos brilhavam como os de uma pantera no escuro.

- Durma tranqüila – disse ele. – Meu sono é leve como o de um lobo. Ninguém pode entrar neste recinto sem que eu acorde.

Idhuna não respondeu. Do seu leito de folhas, observou as figuras imóveis, que se via com menos nitidez na escuridão. Que estranho lhe parecia estar acompanhada de um cimério, e ser cuidada e protegida por um homem de uma raça com a qual, desde pequena, lhe havia assustado tantas vezes! Enquanto uma deliciosa languidez invadia seus membros, Idhuna submergiu num sono suave e seu último pensamento foi a lembrança do firme contato dos dedos de Eithriall em sua carne.



Idhuna sonhou, e em seus sonhos aparecia constante e obsessivamente um ser maligno, semelhante a uma serpente negra, que deslizava por uns jardins floridos. Seus sonhos eram fragmentados e cheios de cores, como exóticas peças de um desenho desconexo e desconhecido, até se cristalizarem numa cena de horror e loucura, contra um fundo de pedras e colunas ciclópicas. A moça viu, em sonhos, um grande salão, cujo teto, muito alto, era sustentado por colunas de pedra, encostadas em filas regulares às paredes resistentes. Entre os ditos pilares revoavam papagaios de plumagem verde e escarlate. A sala estava abarrotada de guerreiros de pele negra e rosto aquilino. Mas não eram homens da raça negra. Tanto eles, quanto suas roupas e armas, eram-lhe absolutamente desconhecidos.

Agrupavam-se em torno de alguém que estava amarrado a uma das colunas. Tratava-se de um rapaz esbelto, de pele branca e cachos dourados. A beleza do jovem não era em absoluto humana... era como o sonho de um deus, esculpido em mármore vivo.

Os guerreiros negros riam e zombavam dele numa língua estranha. A figura delgada e nua se retorcia sob aquelas mãos cruéis, enquanto o sangue deslizava por suas pernas de marfim e salpicava o chão polido. Os ecos dos gritos da vítima ouviam-se por toda a sala. Então, o jovem levantou a cabeça em direção ao forro do teto e pronunciou um nome com uma voz estremecedora. Uma adaga, empunhada por uma mão de ébano, interrompeu-lhe o grito, e sua cabeça dourada caiu sobre o peito de marfim.

Como resposta ao lamento desesperado, ouviu-se o retumbar de uma espécie de carruagem celeste e, diante dos assassinos, apareceu uma figura que dava a impressão de ter se materializado no ar. A forma era humana, mas nenhum mortal havia jamais desfrutado de beleza tão sobre-humana. Existia uma inconfundível semelhança entre ele e o jovem morto, mas os traços de humanidade, que suavizavam as feições do jovem, não existiam nas do desconhecido, que resultavam surpreendentes em sua beleza.

Os negros recuaram diante da aparição, com olhos que eram como riscos de fogo. O desconhecido levantou a mão e falou, e as ondas de sua voz ressoaram através das silenciosas salas com tons profundos e cadenciosos. Como se estivessem em transe, os guerreiros negros continuaram recuando até ficarem alinhados ao longo das paredes, em filas regulares. Então, dos lábios cinzelados do desconhecido, surgiu uma terrível invocação, que era uma ordem:

- Yagkoolan yok tha, xuthalla!

Ao escutarem aquele grito terrível, as negras figuras ficaram rígidas, como que paralisadas. Seus membros adquiriram uma estranha aparência pétrea. O desconhecido tocou o corpo inerte do jovem, e as correntes que o atavam caíram a seus pés. Levantou o corpo em seus braços e começou a afastar-se, enquanto seu olhar sereno percorria as silenciosas filas de figuras de ébano. Apontou com a cabeça para a lua, que brilhava através de algumas brechas no teto. Aquelas estátuas rígidas e expectantes, que haviam sido homens, compreenderam...



Idhuna despertou sobre seu colchão de folhas com um estremecimento; um suor frio cobria-lhe a pele. Seu coração batia tão aceleradamente que quase se podia ouvi-lo no silêncio reinante. Olhou em redor e viu que Eithriall continuava dormindo, com as costas apoiadas na coluna e a cabeça inclinada sobre o volumoso peito. O brilho prateado da lua atravessava os buracos do teto e desenhava enormes faixas brancas no chão empoeirado. Podia ver vagamente as sombras negras, que pareciam continuar esperando. Ao mesmo tempo em que lutava contra seu crescente nervosismo, raiando no espanto, Idhuna viu que os raios da lua iluminavam tenuemente as colunas e as figuras que haviam entre elas.

O que era aquilo? A jovem observou um estremecimento nas estátuas, sobre as quais se refletia a lua. Um horror paralisante tomara conta dela, pois, onde devia reinar a quietude da morte, havia movimento: lentas flexões e torções de membros de ébano. Então, ao quebrar-se o encantamento que a mantinha muda e imóvel, Idhuna lançou um grito dilacerador. Eithriall saltou quase instantaneamente e ficou de pé, com a espada preparada e os dentes brilhando na penumbra.

- As estátuas! As estátuas! – exclamou a jovem. – Oh, deuses, as estátuas estão ganhando vida!

Em seguida, a moça saltou através de uma larga fenda que havia na parede e pôs-se a correr freneticamente, sem parar de gritar. Finalmente, uns braços rodearam-na e ela lutou desesperadamente contra aquilo que a segurava, até que uma voz familiar atravessou a cortina de horror e ela viu Eithriall, cujo rosto era uma máscara perplexa sob o luar.

- Em nome de Crom, garota, o que está acontecendo? Você teve um pesadelo? – ele perguntou, e sua voz ressoou estranha e distante.

Sem deixar de soluçar, Idhuna envolveu o pescoço do cimério com os braços e agarrou-se a ele, tremendo convulsivamente.

- Onde estão? Seguiram-nos?

- Ninguém está nos seguindo – respondeu Eithriall.

A jovem levantou-se, ainda agarrada a ele, e olhou temerosa ao seu redor. Sua fuga desesperada havia levado-a até a borda sul da chapada. Logo abaixo dela, encontrava-se a pendente, cuja parte inferior ficava oculta pelas espessas sombras dos bosques. Atrás deles, erguiam-se as ruínas iluminadas pela lua.

- Não viu as estátuas? – ela perguntou a Eithriall. – Não viu como se moviam, como levantavam as mãos, como olhavam das sombras com seus olhos?

- Não, não vi nada – respondeu o cimério, com certa inquietação. – Dormi mais profundamente que o normal, pois fazia tempo que eu não dormia. No entanto, não creio que alguém pudesse entrar nesta sala, sem que eu ouvisse e despertasse.

- Ninguém entrou – disse Idhuna, tendo um acesso de risada histérica. – Era algo que já estava ali dentro. Oh, Ymir, e pensar que deitamos pra dormir entre eles, como cordeiros próximos a um bando de lobos!

- Do que está falando? – perguntou ele. – Me levantei quando lhe ouvi gritar, mas antes que tivesse tempo de olhar a meu redor, vi você desaparecer pelo buraco da parede. Segui-lhe por medo de que lhe acontecesse alguma coisa, certo de que você teve um pesadelo.

- Sim! – exclamou Idhuna, sem conseguir reprimir um calafrio. – Escute...

Logo após, a jovem contou-lhe tudo o que havia sonhado e que acreditara ver. Eithriall escutou com atenção. O cimério não compartilhava o ceticismo dos homens civilizados. A mitologia de seu povo estava cheia de espíritos, fantasmas e necromantes. Quando ela concluiu, Eithriall se sentou silenciosamente a seu lado e acariciou sua espada, com ar distraído.

- Me diga, o jovem torturado era semelhante ao homem que apareceu no final? – perguntou Eithriall, rapidamente.

- Como um pai e um filho. – respondeu ela. – Se a mente fosse capaz de conceber o filho da união de um ser divino com um humano, seu aspecto seria como o daquele jovem. Os deuses da antiguidade copulavam, às vezes, com mulheres mortais, segundo contam as lendas.

- Que deuses? – perguntou o cimério.

- Deuses esquecidos. Quem sabe? Desapareceram nas águas quietas dos lagos, no centro das montanhas, nos abismos siderais que existem além das estrelas. Os deuses não são mais eternos que os homens.

- Mas se essas estátuas eram homens, transformados em imagens de ferro por algum deus ou demônio, como podem estar vivas?

- Há magia na lua – disse ela, estremecendo-se. – No sonho, vi que o homem apontava para a lua. Nisso eu acredito.

- Mas você já vê que eles não nos perseguem – murmurou Eithriall, lançando um olhar para as ruínas sombrias. – Talvez você tenha sonhado que haviam se movido. Acho que vou voltar para confirmá-lo.

- Não, não! – exclamou Idhuna, agarrando-se desesperadamente a ele. – Talvez algum feitiço os detenha naquela sala. Não volte! Vão lhe torturar sem piedade! Oh, Eithriall, vamos para o bote, fugir desta ilha maldita! Certamente, o barco hirkaniano já terá partido! Vamos!

Sua súplica era tão desesperada, que Eithriall estava impressionado. Sua curiosidade com relação às estátuas se via refreada por seu espírito supersticioso. Não temia inimigos de carne e osso, por mais poderosos que fossem, mas qualquer alusão ao sobrenatural despertava nele o monstruoso terror atávico dos cimérios.

Finalmente, Eithriall pegou a moça pela mão e ambos desceram colina abaixo, entrando nos bosques frondosos, onde as folhas sussurravam e desconhecidas aves noturnas murmuravam sonolentas. Debaixo das árvores fazia sombra, e Eithriall avançou, procurando contornar as manchas mais escuras. Seus olhos examinavam todos os cantos, inclusive os galhos que estavam acima de suas cabeças. Avançava rápida, mas cautelosamente, e seu braço apertava com tal força a cintura da garota, que esta se sentia mais transportada que guiada. Nenhum dos dois falou. O único som que se ouvia era o rápido e nervoso ofego de Idhuna, assim como o atrito de seus pequenos pés sobre a grama. Assim chegaram até a beira do mar, que brilhava como prata derretida à luz da lua.

- Deveríamos ter trazido alguns frutos conosco – murmurou Eithriall. – Mas certamente acharemos outras ilhas. Ainda faltam algumas horas para amanhecer e...

A voz morreu em seus lábios. A corda do bote ainda estava amarrada ao galho, mas na outra ponta só havia restos de madeira, despedaçada e meio submersa na água.

Idhuna soltou um grito abafado. O cimério virou-se rapidamente e ficou em frente às densas sombras, agachado como uma ameaça. Na floresta reinava um total silêncio. As aves noturnas haviam deixado de cantar, e nem sequer a brisa agitava os galhos. No entanto, de algum lugar, ouviu-se um atrito de folhas.

Rápido como um felino, Eithriall tomou Idhuna nos braços e começou a correr. Avançou como um fantasma entre as sombras, enquanto continuava ouvindo, atrás de si, o estranho ruído de folhas, que ia aproximando-se implacavelmente. De repente, a lua iluminou seus rostos, enquanto Eithriall subia a ladeira com grande rapidez.

Uma vez na parte superior do promontório, o cimério depositou Idhuna no solo e voltou a olhar o abismo de sombras que haviam deixado para trás. Os galhos continuavam movendo-se, graças à brisa que se erguera subitamente. Isso era tudo. Eithriall sacudiu a cabeça e lançou um grunhido furioso. Idhuna se aproximou dele, como uma menina assustada, e o fitou, com olhos que pareciam poços azuis de horror.

- O que faremos, Eithriall? – sussurrou.

O cimério observou as ruínas, e lançou outro olhar aos bosques que haviam mais abaixo.

- Vamos aos escarpados – afirmou, enquanto voltava a tomá-la nos braços. – Amanhã, construirei uma jangada e voltaremos a confiar nossa sorte ao mar.

- Não terão sido... eles que destruíram nosso bote? – perguntou Idhuna, com um tom que era quase uma afirmação.

Eithriall moveu negativamente a cabeça, com ar taciturno.

Cada passo que davam, pela chapada enluarada, em direção às ruínas, era motivo de terror para Idhuna. Mas não saiu nenhuma sombra das ruínas, e finalmente chegaram ao pé dos penhascos que se erguiam majestosamente por cima deles. Ali, Eithriall parou como se hesitasse, e logo escolheu um lugar resguardado, debaixo de um penhasco e longe das árvores.

- Deite-se e durma se puder, Idhuna – disse ele. – Vou ficar de vigia.

Mas Idhuna não conseguiu conciliar o sono, e ficou olhando em direção à floresta e às ruínas distantes, até que as estrelas ficaram pálidas, o oriente clareou e a aurora, de cores rosa e ouro, derramou seu fogo sobre as gramas do bosque.

A moça levantou-se rapidamente e lembrou todos os acontecimentos da véspera. À luz do dia, seus terrores noturnos lhe pareceram invenções de uma imaginação superexcitada. Eithriall aproximou-se dela e lhe disse algo que a eletrizou.

- Pouco antes do amanhecer, ouvi um ruído de aparelhos e um estalar de remos. Um barco ancorou perto daqui. Deve ser o que vimos ontem. Iremos aos escarpados para ver o que está ocorrendo.

Subiram os rochedos e, estendidos de bruços entre as rochas, viram um mastro que se destacava por cima das árvores.

- É uma nave hirkaniana, pelo aspecto – murmurou o cimério.

Chegou até eles um rumor de vozes distantes e, pelo extremo sul do escarpado, viram aparecer uma horda multicolorida que, após avançar alguns passos, parou na margem da colina para entrar em conciliábulo. Agitavam os braços, manejavam suas espadas e discutiam em voz alta. Finalmente, todo o grupo dirigiu-se às ruínas, cruzando a chapada obliquamente, de modo que deviam passar pelo pé do escarpado.

- Piratas! – sussurrou Eithriall, e um sorriso malicioso aflorou em seus lábios. – Venha, esconda-se entre essas rochas e não saia daqui até que eu lhe diga.

Uma vez que a garota ficou bem oculta entre os penhascos que existiam em cima do escarpado, o cimério acrescentou:

- Vou me defrontar com esses cães. Se meu plano der certo, tudo se ajeitará e partiremos com eles. Do contrário... será melhor que continue escondida entre as rochas, até que tenham ido, pois não há demônios mais cruéis em toda a ilha do que esses lobos do mar.

E, soltando-se dos braços da garota, que procurava segurá-lo, o cimério desceu rapidamente pelo escarpado.

Idhuna olhou, espantada, do seu esconderijo e viu que o grupo aproximava-se do pé do promontório. Eithriall saltou entre as rochas e defrontou-se com os piratas, com a espada na mão. Estes recuaram, proferindo gritos de ameaça e surpresa. Logo, se mantiveram a uma distância segura e observaram aquele personagem, que aparecera tão de repente entre as rochas. Eram uns setenta homens, uma horda selvagem composta por homens altos e esguios, todos de pele morena e cabelos e olhos negros. Aqueles hirkanianos em particular eram miscigenados com uma raça aborígine, de baixa estatura e olhos puxados, que vivia nas montanhas a leste do Vilayet. Tal miscigenação dava, a alguns daqueles arqueiros, olhos amendoados e estatura mediana. Eles estavam dentre os poucos que não recuaram até o leste do continente, durante as invasões cimérias e nórdicas ao agora destruído Império Hirkaniano.

Seus rostos refletiam sua condição de selvagens. Muitos daqueles descendentes longínquos dos lemurianos tinham cicatrizes de espadas, de chicotes ou de ferros incandescentes. Haviam também orelhas cortadas, narizes decepados, órbitas sem olhos e amputações em braços e pernas; eram as marcas de múltiplas batalhas. A maioria deles andava seminua, mas o pouco que vestiam era de excelente qualidade: casacos com bordados de ouro, cintos de cetim e calças de seda. Tudo estava rasgado, sujo de sangue e de lodo, e, em alguns casos, as peças de roupa cobriam uma couraça prateada, finamente trabalhada. As gemas reluziam em suas orelhas e narizes, assim como nos cabos de suas adagas.

A figura robusta, bronzeada e de olhos cinzentos do cimério contrastava com essa multidão.

- Quem é você? – rugiram alguns integrantes da horda.

- Sou Eithriall, um cimério – ele disse, com uma voz profunda e desafiadora como a de um leão. – Eu quero me unir à Irmandade Escarlate. Quem é o líder de vocês?

- Eu, por Ymir! – rugiu uma voz de touro.

A voz era tão imponente quanto a figura que se adiantou, oscilante. Tratava-se de um gigante seminu, cujo enorme ventre usava um largo cinto que segurava largas calças de seda. À moda hirkaniana, a qual adotara, ele tinha a cabeça raspada, com exceção de uma mecha loira, e os bigodes dourados caíam-lhe a ambos os lados da boca. Calçava sapatos de cor verde com a ponta retorcida para cima, e empunhava uma longa espada de lâmina reta.

Eithriall olhou pra ele e seus olhos cintilaram.

- Helgi! – exclamou.

- Sim, por Atali! – respondeu o gigante, com uma intensa expressão de ódio em seus olhos azuis. – Achou que eu havia me esquecido? Não! Helgi jamais esquece um inimigo! Vou pendurá-lo pelos pés e lhe esfolar vivo! A ele, rapazes!

- Sim, pode enviar seus cães contra mim, gorducho – disse Eithriall, com desprezo. – Você sempre foi um covarde, porco aesir.

- Covarde, eu? – rugiu o referido, e seu largo rosto se avermelhou de ira. – Em guarda, cão cimério! Vou atravessar seu coração!

Um segundo depois, os piratas formavam um círculo em torno de ambos os adversários. Seus olhos brilhavam e o ar ressoava entre seus dentes, diante da excitação que lhes causava a possibilidade de ver um espetáculo sangrento. Idhuna observava do alto dos rochedos, e cravou fortemente as unhas nas palmas das mãos, devido à dolorosa emoção.

Os dois inimigos iniciaram a luta sem mais formalidades. Helgi avançou com a rapidez de um gigantesco felino, apesar de seu corpo volumoso. Sem deixar de gritar maldições, detinha golpes e atacava. Eithriall lutava em silêncio, e seus olhos eram duras frestas de gelo cinza.

O aesir deixou de praguejar para poupar o fôlego. Os únicos sons que se ouviam eram o rápido atrito dos pés sobre a grama, a respiração ofegante do pirata e os ecos do aço. As espadas cintilavam fortemente sob o sol da manhã, traçando círculos e linhas quebradas no ar. Pareciam repelir-se mutuamente, para voltarem a se encontrar com violência redobrada. Helgi recuava. Apenas sua enorme habilidade havia salvado-o de cair nos primeiros instantes, diante da rapidez cegante do cimério. De repente, ouviu-se um choque metálico mais forte, e logo uma praga abafada. Da horda de piratas surgiu um grito feroz que cortou o ar, quando Eithriall se esquivou de um giro mortal da espada de Helgi e lhe decepou a perna, na altura do joelho, abrindo-lhe em seguida o crânio como a um melão maduro. O pesado corpo caiu de bruços ao chão, enquanto suas mãos largas se retorceram por alguns instantes.

Eithriall virou-se rapidamente para os atônitos piratas e rugiu:

- Bem, cães! Já enviei seu chefe ao inferno! O que diz a lei da Irmandade Escarlate?

Antes que alguém pudesse responder-lhe, um hirkaniano com cara de rato, que estava atrás de seus companheiros, girou rapidamente uma funda e atirou uma pedra, que avançou como um dardo até seu alvo. Eithriall cambaleou e caiu abatido, como uma enorme árvore sob o machado do lenhador. Acima, no alto do escarpado, Idhuna teve que segurar-se a uma pedra para não cair. A cena girou vertiginosamente diante de seus olhos. A única coisa que viu foi o cimério jazer, estendido sobre a grama, enquanto o sangue brotava de sua cabeça.

O indivíduo com cara de rato soltou um grito triunfal e correu para apunhalar o abatido, mas um pirata esguio o deteve e empurrou-o para trás.

- Quê! Vai romper a lei da Irmandade, Noyon?

- Não estou quebrando nenhuma lei – grunhiu Noyon.

- Como não, cachorro? Este homem que você acaba de abater é, por justo direito, nosso capitão!

- Não, de modo algum! – exclamou Noyon. – Não pertencia ao nosso grupo; era um intruso. Não havia sido admitido na Irmandade. O fato de ter matado Helgi não faz dele o nosso capitão, como ocorreria se qualquer um de nós tivesse matado-o.

- Mas ele queria unir-se ao nosso grupo. – respondeu o outro. – Todos o ouvimos.

Então, ouviu-se o clamor de uma forte discussão; alguns se mostraram partidários de Noyon e outros do pirata que intercedera a favor de Eithriall, a quem chamavam Tarkut. Proferiram-se maldições e ameaças, e as mãos agarraram os cabos das espadas. Finalmente, um deles disse em voz alta:

- Pra que discutir, se esse homem está morto?

- Não, não está morto – respondeu Tarkut, após examinar rapidamente Eithriall. – Só está atordoado pelo golpe.

Com isso, reataram-se as discussões e Noyon tentou acabar com o ferido, o que Tarkut impediu com atitude ameaçadora e a espada desembainhada. Idhuna teve a sensação de que Tarkut apoiava Eithriall, nem tanto por defendê-lo, mas por se opor a Noyon. Certamente, ambos os homens haviam sido lugar-tenentes de Helgi e não se devotavam nenhuma simpatia. Após muitas discussões, decidiram amarrar Eithriall e levá-lo com eles, para decidirem mais tarde sua sorte.

O cimério, que começava a recuperar os sentidos, foi atado com grossas cordas de couro e, entre queixas e maldições, quatro piratas robustos o levantaram e levaram consigo através da chapada. O corpo de Helgi continuou estendido ao solo, no mesmo lugar onde havia caído.

No alto da escarpa, Idhuna estava atordoada e desolada por sua desastrosa situação. Sem saber o que fazer, optou por permanecer oculta, enquanto observava, com olhos assustados, como a horda brutal levava seu protetor.

A moça não soube quanto tempo esteve ali, até que viu, ao outro lado da chapada, que os piratas chegavam até as ruínas e entravam no edifício, arrastando seu prisioneiro. Logo percebeu que os integrantes do grupo entravam e saíam por portas e orifícios, subiam pelas paredes meio caídas e apoiavam-se nos escombros. Em pouco tempo, vinte deles voltaram pela chapada, recolheram o cadáver de Helgi e levaram-no, possivelmente para lançá-lo ao mar. Perto das ruínas, os demais piratas dedicavam-se a cortar árvores e partiam lenha, provavelmente para fazer fogo. Idhuna ouviu suas vozes e seus gritos, ininteligíveis devido à distância. Finalmente voltaram os que haviam recolhido o cadáver de Helgi, trazendo barris de bebida e sacos de comida. Avançaram para as ruínas, praguejando devido ao peso que carregavam.

Idhuna observava tudo isto de forma quase mecânica, pois seu cérebro cansado estava a ponto de explodir, devido à intensidade das emoções sofridas. Agora que estava sozinha diante de tantos perigos, ela se dava conta do quanto significara para ela a proteção do cimério. Eithriall, por ser de um povo rival do dela, poderia tê-la simplesmente violentado e matado, mas ele a ajudara e protegera, sem pedir nada em troca por enquanto. A garota apoiou a cabeça nos braços e pôs-se a chorar amargamente, até que uns gritos distantes lembraram-lhe da perigosa situação em que se encontrava.

Lançou um olhar para as ruínas escuras, onde os piratas moviam-se como figuras diminutas, devido à distância. Alguns deles dirigiam-se para a densa vegetação. Embora o terror que sentira nas ruínas na noite anterior pudesse ser fruto de sua imaginação, a ameaça que pairava sobre ela da espessura da floresta era algo bem real. Se matassem Eithriall ou se os piratas o levassem consigo, a única saída que lhe restava era entregar-se àqueles lobos do mar ou ficar só naquela ilha enfeitiçada.

O horror de sua triste sina dominou-a a ponto de fazê-la desmaiar.



O sol já estava se pondo, quando Idhuna recobrou os sentidos. Uma suave brisa levava, até seus ouvidos, gritos distantes e o som de canções obscenas. A moça nua levantou a cabeça curiosamente, subiu no alto de uma árvore e olhou através da chapada. Viu os piratas reunidos em torno da fogueira, no exterior das ruínas, e seu coração acelerou-se, quando percebeu que um grupo de corsários saía do interior do edifício em ruínas, arrastando alguém que ocorria ser Eithriall. Colocaram-no contra uma parede, ainda firmemente amarrado, e logo aconteceu uma longa discussão, durante a qual brandiram armas. Depois voltaram a levá-lo para dentro do templo e continuaram bebendo muito. Idhuna suspirou; ao menos, Eithriall continuava vivo. Então, tomou uma decisão. Ao cair da tarde, se arrastaria até aquelas lúgubres ruínas e tentaria libertar o cimério. Se fracassasse, cairia nas mãos daquela turba de desalmados. A moça era consciente de que, ao libertar Eithriall, não o faria apenas por motivos egoístas.

Tranqüilizada por esta idéia, arrastou-se pelos arredores do lugar onde se encontrava, em busca de alguns frutos que cresciam ali perto. Não comera nada desde o dia anterior. Enquanto estava ocupada naquela tarefa, teve a estranha sensação de que alguém a observava. Cheia de medo, subiu pela parte norte do escarpado e olhou nervosamente para baixo, em direção aos matagais, que se encheram de sombras depois do pôr-do-sol. Idhuna não viu nada suspeito. Do lugar onde estava, era impossível que alguém pudesse vê-la. No entanto, sentiu um olhar oculto, e teve a certeza de que um ser animado e sensível era consciente de sua presença.

A moça regressou ao seu esconderijo e ficou debruçada entre as rochas, observando as ruínas distantes até cair a noite. Logo, a luz das chamas vacilantes indicou-lhe o local onde estavam as negras figuras dos piratas, que corriam cambaleantes por causa do vinho.

Então, Idhuna ficou em pé. Era hora de levar a cabo um plano. Primeiro, voltou ao extremo norte dos rochedos e olhou para baixo, em direção aos bosques à beira da praia. Aguçou a vista ao máximo e, sob a tênue luz das estrelas, viu algo que a deixou paralisada; sentiu como se uma mão gelada lhe tocasse o coração.

Lá embaixo, algo se movia. Tratava-se de uma sombra negra que se destacava das demais e se deslocava lentamente, subindo pela abrupta ladeira do escarpado. Era uma vaga massa disforme, que se movia na penumbra. O pânico atormentava-lhe a garganta; Idhuna dominou um grito instintivo, levando a mão à boca. Logo deu a volta e desceu rapidamente pela ladeira sul.

Aquela fuga pela ladeira sombria foi como um pesadelo. Tropeçava e escorregava em sua tentativa de agarrar-se às lisas rochas com suas mãos geladas. As pedras rasgaram a fina pele de seus braços, pernas e torso. Idhuna sentiu falta do cimério de músculos de aço, que no dia anterior havia levado-a nos braços. Mas este era apenas um dos muitos pensamentos, que assaltaram, feito um turbilhão, a mente da jovem desamparada.

Idhuna teve a sensação de que a descida era interminável, mas seus pés finalmente pisaram a grama da colina. Então, pôs-se a correr, com louco frenesi, para as fogueiras que ardiam como o rubro coração da noite. Atrás de si, ouviu-se o ruído de uma cascata de pedras que caíam pela ladeira da colina, e esse som deu asas a seus pés. Procurou não pensar em quem podia ter provocado a queda daquelas pedras.

O esforço físico que teve de realizar dissipou, em parte, o terror cego que a dominava e, antes de chegar às ruínas, sua mente estava clara e suas faculdades, alertas, apesar de suas pernas tremerem devido à correria.

Depois, ficou de bruços e se arrastou sobre a grama, até que pôde observar seus inimigos, escondida atrás de umas árvores que haviam se salvado do machado dos piratas. Estes já tinham jantado, mas continuavam enchendo suas jarras e taças douradas nos barris de vinho. Alguns já roncavam alto sobre a grama, enquanto outros cambaleavam em direção às ruínas. A jovem não viu sinal algum do cimério. Permaneceu ali, deitada, enquanto o orvalho começava a impregnar as folhas que haviam a seu redor. Os poucos homens que estavam próximos à fogueira jogavam, praguejavam e discutiam. Os demais estavam dormindo no interior das ruínas.

Sem saber o que fazer, Idhuna continuou onde estava, enquanto sua angústia era aumentada pela incerteza da espera. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, ao pensar no que vira subir pela ladeira norte, e em quem podia estar observando-a e aproximando-se por trás dela. O tempo passou com uma lentidão extraordinária. Um a um, os piratas que ainda estavam despertos foram caindo no sono da embriaguez, até ficarem todos dormindo próximos ao fogo moribundo.

Idhuna hesitou. Logo decidiu agir, ao ver um brilho tênue que se erguia entre as árvores. A lua estava saindo!

Ergueu-se de um pulo e correu para as ruínas. Amedrontada, avançou nas pontas dos pés entre os piratas bêbados que dormiam diante do portal do edifício semi-arruinado. Dentro dele, havia muito mais piratas, que se mexiam e falavam em meio a seus agitados sonhos etílicos, mas nenhum acordou quando a moça deslizou entre eles. Um soluço mudo de alegria surgiu de seus lábios, quando viu Eithriall. O cimério estava acordado e amarrado a uma coluna; seus olhos cinzentos brilhavam, refletindo o brilho tênue da fogueira que havia lá fora.

Avançou entre os que dormiam e se aproximou de Eithriall, que a havia visto no momento em que apareceu no portal. Um leve sorriso se desenhou em seus lábios.

Idhuna aproximou-se e abraçou-se a ele. O cimério notou a batida acelerada do coração da jovem contra seu peito. Através de uma enorme rachadura que havia na parede, entrou um raio de luar; o ar estava carregado de uma tensão sutil. O cimério percebeu isso e seu corpo ficou rígido. O mesmo ocorreu à jovem, que lançou um suspiro. Os piratas continuavam roncando alto. Idhuna se inclinou e tirou uma adaga do cinto de um deles, e começou a cortar as fortes ataduras que seguravam o cimério. Eram cabos de aparelhos, grossos e resistentes, e estavam amarrados com a destreza dos marinheiros. A moça se empenhou desesperadamente, enquanto a luz da lua aproximava-se devagar, pelo chão da sala em direção às negras figuras entre as colunas.

Idhuna ofegava. Os pulsos de Eithriall ficaram livres, mas seus cotovelos e pernas continuavam firmemente atados. A jovem olhou fugazmente as estátuas, que pareciam esperar e esperar. Teve a impressão de que estavam olhando-na com a impaciência atroz de um ser vivo. Os bêbados que jaziam a seus pés começaram a mover-se e a resmungar em sonhos. A luz da lua aproximava-se dos negros pés das estátuas. Nesse momento, romperam-se as cordas que seguravam os braços de Eithriall, que tirou a adaga da mão de Idhuna e, de um só talho, cortou a corda que lhe imobilizava as pernas. Afastou-se da coluna, flexionando os braços, intumescidos depois de tantas horas amarrados. A jovem se encolheu contra ele, tremendo como uma folha. Seria uma ilusão, criada pelo luar, que enchia de fogo os olhos das negras estátuas e fazia-os brilhar com um resplendor avermelhado na penumbra?

Eithriall se moveu com a rapidez de um felino. Ergueu sua espada do chão e, pegando Idhuna nos braços, deslizou através de uma abertura do muro coberto de hera.

Não disseram uma só palavra. Com a jovem nos braços, Eithriall avançou rapidamente sobre a grama banhada pelo luar. Idhuna envolveu com seus braços o enorme pescoço do cimério, cerrou os olhos e apoiou sua cabeça no ombro de seu acompanhante. Invadia-a uma deliciosa sensação de segurança.

Apesar do peso que levava, o cimério cruzou a chapada em poucos segundos e, ao abrir os olhos, Idhuna pôde confirmar que estavam passando sob a sombra do escarpado.

- Havia alguém subindo os rochedos – sussurrou ela. – Ouvi-o atrás, quando eu estava descendo.

- Teremos que arriscar. – disse ele.

- Não tenho medo... agora – respondeu Idhuna, suspirando.

- Tampouco teve medo quando foi me libertar. Por Crom, que dia! Não sei como escapei vivo. Noyon queria me matar, e Tarkut se negou, talvez para contrariar Noyon, a quem odeia. Estiveram discutindo, brigando e cuspindo um no outro, mas seus amigos estavam bêbados demais para tomar partido.

Eithriall parou subitamente, como uma estátua de bronze sob a luz da lua. Num gesto rápido, lançou para um lado a moça, que se pôs atrás dele. Idhuna não pôde evitar um grito de espanto diante do que viu.

Das sombras dos rochedos, surgiu uma massa monstruosa, um horror com forma vagamente humana, uma grotesca paródia de homem.

Seu aspecto lembrava o de um ser humano, mas seu rosto era bestial, com orelhas pregadas, nariz largo e brilhante, e enormes lábios flácidos que deixavam ver uns dentes afiados. Estava coberto por um emaranhado de cabelo prateado, que brilhava ao luar. Suas mãos grandes, como garras disformes, quase tocavam o chão. O volume de seu corpo era enorme; mesmo quando estava encurvado e suas pernas curtas se arqueavam, sua cabeça cônica erguia-se bem acima da do cimério. A amplitude de seu tronco peludo e de suas enormes costas tiravam o fôlego. Os braços eram como grandes árvores nodosas.

A cena, iluminada pela lua, dava voltas diante dos olhos de Idhuna. Desse modo, sua viagem acabava ali. Qual ser humano seria capaz de resistir ao ataque daquela peluda montanha de músculos e de violência? Entretanto, enquanto observava, com olhos arregalados pelo horror, o corpo de bronze que enfrentava o monstro, percebeu uma pavorosa semelhança entre ambos os antagonistas. Teve a sensação de que aquele enfrentamento era menos a luta entre um homem e uma besta do que o confronto entre dois seres selvagens, igualmente implacáveis e ferozes. Era um macaco cinza, um dos pavorosos devoradores de homens, das florestas que ondulam nas montanhosas praias orientais do Mar Interno. Meio míticos e completamente horríveis, estes macacos eram os duendes das lendas dos há muito exterminados hiborianos – e agora, dos cimérios e nordheimrs que os substituíram –, e eram na realidade os ogros do mundo natural, canibais e assassinos das florestas escuras.

Eithriall sabia que a coisa havia farejado sua presença, pois ela agora se aproximava rapidamente, rolando velozmente seu corpo em forma de barril sobre suas pernas curtas, poderosas e arqueadas. O cimério escolheu enfrentá-lo face a face.

As presas amarelas da fera brilhavam ao luar, mas ela não fez som. Criaturas da noite e do silêncio, os macacos cinzentos do Mar Interno não tinham voz. Mas, em suas feições distintas e hediondas, as quais eram uma caricatura bestial de um rosto humano, aparecia uma medonha alegria.

Eithriall se manteve em equilíbrio, observando, sem um tremor, o monstro que se aproximava. Ele sabia que arriscaria sua vida com uma estocada; não haveria chance para outra, nem haveria tempo para atacar e pular fora. O primeiro golpe deveria matar, e matar instantaneamente, se ele esperava sobreviver àquela terrível luta corpo-a-corpo. Ele percorreu o olhar sobre o curto pescoço quadrado, a peluda e enorme barriga, e o peito poderoso, inchado em arcos gigantes como escudos gêmeos. Tinha que ser o coração; melhor correr o risco da lâmina ser desviada pelas costelas espessas, do que atacar onde um golpe não seria instantaneamente fatal. Com total conhecimento das possibilidades, Eithriall pôs sua rapidez de olhos e mão, e sua força muscular, contra a força bruta e ferocidade do antropófago. Ele deveria enfrentar a fera peito a peito, dar um golpe mortal e então confiar no vigor de sua estrutura para sobreviver ao instante de uso de força muscular, que ele certamente passaria.

Quando o macaco se aproximou em sua direção, balançando largamente os braços terríveis, o cimério pulou para dentro deles e golpeou com toda a sua força desesperada. Ele sentiu a lâmina afundar até o cabo no peito peludo, e instantaneamente largou o cabo, abaixou a cabeça e contraiu o corpo inteiro numa massa compacta de músculos unidos, e, enquanto fazia isso, ele agarrou os braços que se fechavam e bateu ferozmente o joelho na barriga do monstro, firmando-se contra aquele aperto esmagador.

Por um vertiginoso instante, ele se sentiu como se estivesse sendo desmembrado no aperto de um terremoto; logo, ele estava subitamente livre, esparramado no chão, e o monstro arfava moribundo sob ele, seus olhos vermelhos virados para o alto, o cabo da espada estremecendo em seu peito. Sua desesperada estocada havia encontrado seu alvo.

Eithriall ofegava como se após um longo conflito, com todos os membros tremendo. Algumas de suas articulações doíam como se houvessem sido deslocadas, e o sangue pingava de arranhões no seu lado, onde as garras do monstro haviam rasgado; seus músculos e tendões haviam sido selvagemente puxados e torcidos. Se a fera tivesse vivido mais um segundo, ela certamente o teria desmembrado. Mas a enorme força do cimério havia resistido, pelo instante fugaz que havia durado, à convulsão moribunda do macaco, a qual teria rasgado, membro a membro, um homem mais fraco.


Idhuna, meio desmaiada, viu que o macaco retorcia-se no chão, em meio a estertores, enquanto apertava, com gesto humano, o cabo da espada que sobressaía de seu corpo. Em pouco tempo, ele estremeceu-se e ficou imóvel.

Eithriall se curvou, arrancou a espada do peito do monstro e se ergueu cambaleante. O cimério respirava entrecortadamente e avançou com dificuldade, como um homem cujas articulações e músculos foram submetidos a um esforço que está quase no limite da resistência humana.

- Por Crom! – ofegou. – Me sinto como se tivessem me moído a pauladas! Preferiria lutar contra uma dúzia de homens.

A seu lado, Idhuna observava, com olhos arregalados, o corpo da besta.

- O que... o que é...? – perguntou a moça, num sussurro.

- É um homem-macaco cinza – respondeu o cimério. – Um animal que, segundo me contaram, come seres humanos e habita as costas orientais deste mar. Talvez tenha chegado até aqui, agarrado a algum tronco arrastado pela correnteza.

- Será que foi ele quem atirou a pedra? – indagou Idhuna.

- Sim. Eu já havia suspeitado, quando estávamos na floresta e vi que os galhos se moviam sobre nossas cabeças. Estes seres sempre se escondem nos bosques mais impenetráveis, e raramente saem deles. Não entendo o que pôde fazê-lo sair de seu refúgio, mas em todo caso foi uma sorte para nós, pois entre as árvores, eu não teria tido a menor possibilidade de vencê-lo.

- Ele me seguiu até aqui – disse a garota, tremendo. – Eu o vi subir os rochedos.

- E, seguindo seus instintos, escondeu-se nas sombras, ao invés de lhe seguir através da chapada. Estas criaturas das trevas vivem em lugares silenciosos e odeiam a luz do sol e da lua.

- Crê que haja outros por aqui?

- Não acredito. Do contrário, os piratas teriam sido atacados quando atravessaram o bosque. O macaco cinza é muito cauteloso, apesar de sua força colossal, como demonstra o fato de que não tenha decidido nos atacar na floresta. Deve ter se sentido terrivelmente atraído por você, para seguir-lhe até um lugar aberto. Mas...

Eithriall sobressaltou-se e girou em círculo, para olhar para o local de onde vieram. Um grito pavoroso cortou o ar da noite. Vinha das ruínas.

Logo, seguiu-se uma série de berros, gritos e lamentos de agonia. Embora se ouvisse o choque do aço, os sons pareciam derivar mais de um massacre que de uma batalha.

Eithriall ficou atônito, com a moça em pânico abraçada a ele. O clamor ascendeu numa loucura crescente, e então o cimério deu meia-volta e aproximou-se rapidamente da beirada da chapada, delineada pelas árvores iluminadas pelo luar. As pernas de Idhuna tremiam tanto, que ela era incapaz de caminhar, obrigando Eithriall a levá-la nos braços. A batida agitada de seu coração se acalmou, quando se encolheu em seus braços acolhedores.

Logo cruzaram a tenebrosa floresta, mas as sombras escuras pareciam agora menos temíveis. Os raios prateados da lua, que se filtravam entre os galhos, não escondiam ameaça alguma. As árvores noturnas murmuravam sonolentas. Os gritos da matança se atenuaram, até transformarem-se numa confusa mistura de sons. Em algum lugar, um papagaio gritou, como um eco misterioso:

- Yagkoolan yok tha, xuthalla!

Pouco depois, chegaram à praia e viram a galera ancorada e com a vela desdobrada. As estrelas começaram a empalidecer diante da chegada do dia.

Sob a pálida luz da aurora, um punhado de figuras esfarrapadas e ensangüentadas avançou cambaleante entre as árvores, até chegar à estreita praia. Eram apenas quarenta e quatro homens, que formavam um grupo amedrontado e desmoralizado. Lançaram-se, ofegantes, à água e começaram a nadar até alcançarem a galera. Então, os desanimados piratas se defrontaram com um novo contratempo. Destacando-se contra o céu luminoso, viram Eithriall, o cimério, de pé sobre a proa, com a espada na mão e a negra cabeleira agitando-se ao vento.

- Alto! – ordenou Eithriall. – Não cheguem mais perto, cães!

- Deixe-nos subir a bordo! – suplicou um pirata peludo, apertando o coto sangrento de uma orelha decepada. – Queremos ir embora desta ilha endemoniada.

- O primeiro homem que tentar subir pela beirada, eu corto a cabeça – avisou o cimério.

Eram quarenta e quatro homens contra um, mas Eithriall tinha tudo a seu favor. A terrível experiência que passaram havia lhes destruído todo impulso combativo.

- Deixe-nos subir ao barco – choramingou um sujeito de cinturão vermelho, ao mesmo tempo em que olhava, temeroso, por cima de seu ombro, em direção aos silenciosos bosques. – Estamos tão destroçados, feridos e cansados de lutar, que não temos condições de erguer uma espada.

- Onde está o cão do Noyon? – perguntou Eithriall.

- Morto, como tantos outros! Caíram sobre nós como demônios! Teriam despedaçado a todos nós, se não tivéssemos despertado e abandonado nossos arcos. Uma dúzia de nossos homens morreu enquanto dormia. As ruínas estavam cheias de sombras, com olhos ardentes, garras e dentes afiados.

- Sim! – interveio outro corsário. – Eram os demônios da ilha, que adotaram forma de estátuas para nos enganar. Por Erlik, que fomos incautos ao dormimos entre eles! Mas não somos covardes e lhes demos luta, com as desvantagens de um mortal que luta contra os poderes das trevas. Logo fugimos e eles ficaram lá, destroçando cadáveres, como se fossem chacais. Mas temos certeza de que nos perseguirão.

- Sim, deixe-nos subir a bordo! – suplicou um pirata magro. – Deixe-nos subir por bem, ou empunharemos as espadas, apesar de nosso cansaço, e, mesmo que mate vários de nós, você não poderá com todos.

- Então, farei um buraco no casco e afundarei o barco – respondeu Eithriall, com tom lúgubre e ameaçador.

- Não, não! – protestaram em coro. – Seremos amigos, Eithriall. Somos seus camaradas, rapaz, pois somos todos proscritos.

O abatido grupo olhou o cimério, que por sua vez observava-os com a testa franzida.

- Então, se sou um da Irmandade – disse, com um grunhido –, as leis desta se aplicam a mim também. E, posto que matei seu chefe numa luta corpo-a-corpo, sou o capitão de vocês!

Não houve vozes dissidentes. Os piratas estavam esgotados e acovardados demais para pensarem em outra coisa, que não fosse ir embora, o quanto antes, daquela ilha temível. Eithriall viu, entre os homens, Tarkut, que tinha alguns ferimentos e estava manchado de sangue.

- Você, Tarkut! – disse o cimério. – Há pouco, colocou-se a meu lado. Voltaria a fazê-lo?

- Sim, por Tarim! – respondeu o pirata, que desejava consagrar-se com o cimério. – Ele tem razão, rapazes! Ele é o nosso capitão, de acordo com a lei da Irmandade!

Ouviu-se um rumor de vozes aprovadoras, talvez não muito entusiastas, mas com uma convicção acentuada pela suspeita de que, atrás deles, poderiam estar seguindo-os os negros seres demoníacos de olhos avermelhados e garras sangrentas.

- Jurem-no de espada na mão – disse o cimério.

Em direção a ele, ergueram-se quarenta e quatro espadas, e outras tantas vozes pronunciaram o juramento de lealdade dos piratas.

Eithriall sorriu e, logo após, embainhou a espada, ao mesmo tempo em que lhes dizia:

- Subam a bordo, meus bravos, e peguem os remos.

A seguir, virou-se e levantou Idhuna, que havia permanecido oculta atrás da bordo.

- O que será de mim, senhor? – indagou a moça, agora com as nádegas e partes íntimas cobertas por uma tanga de seda hirkaniana, ao redor da cintura.

- O que deseja fazer? – perguntou Eithriall, por sua vez, olhando-a fixamente.

- Quero ir contigo, aonde quer que vá! – respondeu Idhuna, envolvendo, com seus braços brancos, o pescoço bronzeado do cimério.

- Está disposta a seguir um caminho de sangue e morte? – perguntou ele. – Esta galera deixará um rastro vermelho por onde passar.

- Não me importa navegar sobre águas azuis ou vermelhas, se o faço a seu lado – respondeu ela, em tom apaixonado. – Você é um cimério e eu sou, assim como você, a última pessoa que sobreviveu de minha tribo. Ambos vagamos por um mundo sem rumo fixo. Por favor, leve-me com você!

Lançando uma súbita gargalhada, Eithriall pegou-a pela cintura e levantou-a até seus lábios ferozes e ardentes, exclamando:

- Lhe transformarei em rainha do mar azul! A seus postos, tigres do mar! Por Crom, que não tardaremos em queimar as largas calças dos chefes hirkanianos das costas orientais!

Então, o cimério pressionou seus impetuosos lábios finos contra os de Idhuna. A aesir seminua não ofereceu nenhuma resistência, pois, pela primeira vez em três anos, a loira pôde sentir o toque de um homem sem estremecer de pavor. Ali estava alguém que não trairia sua confiança – que não a usaria como outros a usaram.

Então, sob o fulgor da alvorada, o navio zarpou... Eithriall... os piratas hirkanianos... e Idhuna – uma ex-escrava, e agora uma mulher livre! O sol nascente era o rumo deles. A galé os conduzia para bem longe daquela ilha amaldiçoada, e a caminho de um destino incerto que lhes fora reservado por deuses insanos.



FIM 

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