por Robert E. Howard
originalmente publicado em abril/ 1934
Um rápido galope entre os juncos, uma pesada queda e um grito desesperado. O montador do primeiro animal ficou em pé, cambaleando. Era uma moça esbelta, arrumada com uma túnica e sandálias. Seus cabelos escuros caíam-lhe em cascata sobre os ombros brancos. Os olhos da jovem pareciam os de um animal encurralado. Não olhou para a selva de juncos que cercava a pequena clareira, nem para as águas azuis que lambiam a praia atrás dela. Seus olhos grandes e intensos estavam fixos no cavaleiro que avançava entre as plantas e que, ao chegar até ela, desceu de seu cavalo.
Era um homem alto e magro, duro como o aço. Estava coberto por uma fina cota-de-malha da cabeça aos pés, a qual adaptava-se a seu corpo como uma luva na mão. Seus olhos castanhos, que despontavam sob o capacete semi-esférico com incrustações de ouro, miraram a moça com expressão zombeteira.
- Para trás! – ela exclamou, apavorada – Não toque em mim, Shah Amurath, ou me atiro na água para morrer!
Ele deu uma gargalhada, que era como o rumor de uma espada de aço ao sair de uma bainha de seda.
- Não, você não se afogará, Olívia, filha da desordem, pois as águas não são profundas e eu lhe pegarei antes que afunde! Você me proporcionou uns bons momentos de caça, e deixamos meus homens para trás. Mas não há cavalo algum, a oeste do Mar Vilayet, que possa obter vantagem de meu Irem durante muito tempo.
E, ao dizer isto, o homem apontou, com a cabeça, para o cavalo de finas patas, que estava atrás dele.
- Deixe-me ir embora! – suspirou a moça, com o rosto coberto de lágrimas – Já não sofri o bastante? Há, por acaso, alguma humilhação, dor ou infâmia que não me tenha causado? Quanto há de durar meu tormento?
- Durará enquanto eu encontrar prazer em seus lamentos, em suas súplicas e em suas lágrimas. – ele respondeu, com um sorriso que pareceria amável a um estranho – Você é muito atraente, Olívia. Me pergunto se, algum dia, chegarei a me cansar de você, como outrora me cansei de outras mulheres. Você é vivaz e alegre, apesar de tudo. Cada dia que passo a seu lado proporciona-me novas delícias.
“Mas, vamos, voltemos a Akif... – prosseguiu ele – onde o povo ainda celebra ao vencedor dos miseráveis kozaks, enquanto ele, o vencedor, se dedica a perseguir uma pobre fugitiva, uma tonta, adorável e estúpida garota que quer escapar”.
- Não! – exclamou a jovem, recuando em direção às águas entre os pequenos juncos.
- Sim.
A pancada de cólera do homem foi como a faísca acesa pela pederneira. Com incrível rapidez, pegou-a pelo pulso e retorceu-a cruelmente, até que ela caiu de joelhos, gritando.
- Rameira! – disse ele – Eu devia arrastá-la até Akif, amarrada à cauda de meu cavalo, mas terei compaixão e te levarei em minha sela. Por este favor, deverá me agradecer humildemente, e logo...
O homem soltou a moça e proferiu uma maldição, ao mesmo tempo em que saltava para trás e desembainhava sua espada. Uma terrível aparição surgiu dos juncos e lançou uma exclamação de ódio.
Olívia, que do chão olhava a cena, viu um homem, que parecia um selvagem ou um louco, avançar em direção a Shah Amurath, em atitude ameaçadora. Era um indivíduo de constituição forte, coberto unicamente por uma tanga manchada de sangue e de barro seco. Sua negra cabeleira também tinha abundantes manchas de lodo e sangue, e o mesmo ocorria com seu peito, braços e pernas, assim como com a espada que empunhava na mão direita. Atrás do emaranhado de cabelos escuros, seus olhos injetados em sangue brilhavam como duas chamas azuis.
- Cachorro hirkaniano! – disse a aparição, com sotaque bárbaro – Os demônios da vingança trouxeram-lhe até aqui!
- Um kozak! – exclamou Shah Amurath, recuando – Eu não sabia que um daqueles cães havia escapado. Pensei que todos estivessem mortos na estepe, às margens do rio Ilbars.
- Todos, menos eu, maldito! – gritou o outro – Ah, como eu havia sonhado com este momento, quando me arrastava entre os espinhos ou me estendia sob os rochedos, enquanto as formigas roíam minha carne, e quando eu me revolvia na lama que me cobria até a boca! Sonhei, mas nunca achei que se tornaria realidade. Como eu desejei este momento!
Era terrível contemplar o gozo sanguinário do desconhecido. Suas mandíbulas estalavam espasmodicamente e a espuma cobria seus lábios enegrecidos.
- Para trás! – ordenou Shah Amurath, olhando fixamente o outro homem.
- Não, Shah Amurath, grande senhor de Akif! – respondeu o kozak com uma voz que parecia o uivo de um lobo selvagem – Ah, maldito seja, como me alegra lhe ver, miserável... você, que transformou meus camaradas em pasto de abutres..., você, que mandou esquartejá-los entre cavalos selvagens..., que os deixou cegos e os mutilou...! Cachorro infame!
A voz do bárbaro transformara-se num grito enlouquecido, quando atacou.
Apesar do terror que aquela terrível aparição lhe provocara, Olívia temeu que o desconhecido caísse ao primeiro choque das espadas. Louco ou selvagem, o que aquele homem seminu podia fazer contra o lorde de Akif, protegido por sua cota-de-malha?
As lâminas das espadas soltavam faíscas, embora mal parecessem ter se roçado; logo, a cimitarra do kozak colidiu com o sabre de Shah Amurath e caiu com terrível força sobre seu ombro. Olívia não conseguiu conter uma exclamação diante da violência atroz daquele golpe. Entre o estalo metálico da malha fendida, a moça ouviu claramente o ruído de ossos quebrados. O hirkaniano recuou, pálido como a morte e com a cota-de-malha ensopada de sangue. O sabre caiu de seus dedos, incapazes de qualquer movimento.
- Piedade! – exclamou, ofegando.
- Piedade? – disse o desconhecido, com a ira refletida em sua voz – Sim, a mesma piedade que teve conosco, porco!
Olívia fechou os olhos. Aquilo já não era uma luta, mas uma carnificina infernal e sangrenta, gerada pela fúria e ódio em que culminavam os sofrimentos da batalha, massacre e tortura, e os padecimentos da sede e da fome. Embora Olívia soubesse que Shah Amurath não merecia nenhuma piedade, ela fechou os olhos e cobriu os ouvidos com as mãos, para não ver a espada gotejante que afundava várias vezes, como o machado de um açougueiro, até que os gritos se transformaram num estertor, que finalmente enfraqueceu até cessar completamente.
Então abriu os olhos e viu o estrangeiro, no momento em que este retirava a espada do ensangüentado arremedo de ser humano que havia deixado no solo. O homem ofegava exausto e cheio de ira. Tinha a fronte gotejada de suor e a mão manchada de sangue fresco.
O desconhecido não disse uma só palavra; nem sequer olhou a moça. Ela o viu avançar entre os juncos da margem, e logo inclinar-se e puxar algo. Então apareceu uma barca que saía de seu esconderijo entre os finos talos. Olívia supôs que o homem tinha a intenção de ir embora, o que impeliu-a a agir.
- Não, espere! – exclamou em tom choroso, correndo até ele – Não me deixe aqui! Leve-me com você!
O homem virou-se e olhou-a fixamente, mudando de atitude. Seus olhos, injetados em sangue, pareciam os de uma pessoa sensata. Era como se o sangue que acabava de derramar lhe houvesse devolvido a condição de ser humano.
- Quem é você? – perguntou ele.
- Me chamo Olívia. Era prisioneira desse homem e fugi dele. Me perseguia. Por isso, chegamos até aqui. Oh, peço-lhe que não me abandone! Seus soldados não estão longe. Encontrarão seu cadáver, me acharão perto e...
A jovem retorceu as mãos, cheia de espanto, e o desconhecido olhou-a, desconcertado.
- Acaso prefere vir comigo? – perguntou – Sou um bárbaro e sei, pela maneira como me olha, que você me teme.
- Sim, lhe temo. – respondeu ela, atordoada demais para poder fingir – Minha carne se estremece de pavor devido a seu aspecto, mas temo mais ainda os hirkanianos. Por favor, deixe-me ir com você! Me submeterão a terríveis torturas e humilhações, se me encontrarem ao lado de seu amo morto.
- Então venha.
Ele virou para um lado e ela subiu rapidamente a barca, evitando todo o contato com ele. Logo, Olívia sentou-se na proa. O desconhecido também subiu e depois empurrou o bote com o remo; quando havia deixado para trás os juncos das margens, pôs-se a remar com pancadas suaves e regulares, que faziam mover ritmicamente todos os músculos de seu corpo.
A moça encolheu-se na proa, enquanto o homem continuava impulsionando os remos em completo silêncio. Olívia observava-o com tímida fascinação. Era evidente que não era um hirkaniano, e tampouco se parecia com os povos da raça hiboriana. Havia nele uma ferocidade lupina que identificava-o como um bárbaro. Suas feições, por baixo das manchas de sangue da batalha e do barro dos lamaçais, refletiam um caráter indomável e selvagem, mas não indicavam um ser malvado nem perverso.
- E você, quem é? – perguntou ela – Shah Amurath lhe chamou de kozak. Você pertencia àquele bando?
- Sou Conan da Ciméria – disse ele com um grunhido – Eu era um dos kozaks; é assim que os cães hirkanianos nos chamam.
Olívia sabia vagamente que a terra que ele mencionara encontrava-se muito longe, ao noroeste, além das fronteiras mais remotas dos diversos reinos habitados por pessoas da raça dela.
- E eu sou uma das filhas do rei de Ophir. – disse a jovem – Meu pai me vendeu a um chefe shemita, porque eu não quis casar-me um príncipe de Koth.
O cimério lançou um grunhido de surpresa e os lábios de Olívia se curvaram num sorriso amargo.
- Sim. – ela acrescentou – Os homens civilizados também vendem seus filhos como escravos aos selvagens, em algumas ocasiões. E chamam vocês de bárbaros, Conan da Ciméria.
- Nós não vendemos nossos filhos. – afirmou ele, bruscamente.
- Bem, o fato é que me venderam. O homem do deserto, que me comprou, não abusou de mim. Mas ele queria ganhar a boa-vontade de Shah Amurath, e eu estava entre os presentes que levou aos jardins purpúreos de Akif. Logo...
A jovem estremeceu e ocultou o rosto entre as mãos.
- Fui submetida a todo tipo de infâmias. – prosseguiu a jovem – O simples fato de lembrá-las é como uma chicotada. Vivi no palácio de Shah Amurath até que, há algumas semanas, ele partiu com suas tropas para combater um bando de invasores que assolava as fronteiras de Turan. Ontem, regressou triunfante e organizou uma grande festa em sua honra. Enquanto todos se divertiam e embriagavam-se, aproveitei a oportunidade para apoderar-me de um cavalo e fugir da cidade. Achei que havia conseguido, mas ele me seguiu e, perto do meio-dia, encontrou meu rastro. Deixei seus súditos para trás, mas não consegui fugir dele. Então, você chegou.
- Eu estava escondido entre os juncos. – disse o cimério – Eu era um daqueles vagabundos que compunham o bando dos Companheiros Livres, os quais incendiavam e saqueavam as fronteiras. Éramos cinco mil, de umas vinte raças e tribos. A maioria de nós havia servido como mercenários a um príncipe rebelde do leste de Koth, mas quando ele fez as pazes com seu maldito soberano, ficamos sem trabalho. Então, começamos a saquear os confins de Koth, Zamora e Turan. Há uma semana, Shah Amurath nos preparou uma emboscada com quinze mil homens. Por Mitra! O céu estava coberto de abutres negros. Quando nossas fileiras se romperam, após um dia inteiro de luta, alguns tentaram fugir para o norte e outros para o oeste. Duvido que algum tenha escapado. As estepes estavam cobertas de cavaleiros que perseguiam os fugitivos. Eu me dirigi para o leste e finalmente cheguei aos pântanos que cercam esta parte do Mar Vilayet.
“Me escondi entre os juncos desde então. Faz apenas dois dias que os cavaleiros deixaram de bater os mangues, em busca de algum fugitivo. Me escondi e me enterrei como uma serpente, alimentando-me de ratazanas almiscaradas que eu comia cruas, pois não podia fazer fogo. Pela manhã, encontrei esta barca, oculta entre os juncos. Não pensava em ir ao mar antes da noite, mas depois de ter matado Shah Amurath, fiquei sabendo que seus homens estão próximos, e por isso vou embora”.
- E agora, o que faremos?
- Não há dúvida de que nos perseguirão. Mesmo que não cheguem a descobrir os sinais do bote, os quais tentei disfarçar o melhor possível, certamente suspeitarão que nos dirigimos para o mar, sobretudo quando não nos encontrarem nos mangues. Mas já estamos seguindo, e eu continuarei grudado a estes remos, até chegarmos a um esconderijo seguro.
- Onde encontraremos um? – perguntou ela, com atitude desesperançosa – Vilayet é um mar interno, dominado pelos hirkanianos.
- Algumas pessoas não pensam assim. – respondeu Conan, com um sorriso algo sinistro – Especialmente os escravos que fugiram das galeras e tornaram-se piratas.
- Quais são seus planos?
- Os hirkanianos dominam a costa sudoeste ao longo de centenas de milhas. Ainda falta muito para chegarmos até suas fronteiras no norte. Pretendo seguir nessa direção até que tenhamos deixado-os para trás. Mais tarde, iremos para o oeste e tentaremos desembarcar nas praias cercadas pelas estepes desabitadas.
- E se nos encontrarmos com os piratas, ou formos surpreendidos por uma tormenta? – perguntou Olívia – Além disso, nós morreremos de fome ali.
- Não lhe pedi pra vir comigo – lembrou-lhe o cimério.
- Desculpe. – respondeu ela, inclinando sua bela cabeça morena – Piratas, tempestades, fome... Tudo isso é menos cruel que a gente de Turan.
- Sim. – disse Conan, com o rosto sombrio – E ainda não acertei minhas contas com eles. Mas acalme-se, garota. As tempestades são raras no Mar Vilayet, nesta época do ano. Se chegarmos às estepes, não morreremos de fome. Eu me criei em terras inóspitas e simples. São estes malditos pântanos, com seu fedor e seus mosquitos, que me desconcertam. Nas estepes, me sinto em casa. Quanto aos piratas...
Conan sorriu enigmaticamente e se debruçou com mais energia sobre os remos.
O sol havia se escondido como uma bola de cobre que cai num mar de fogo. O azul do mar fundia-se com o do céu, e depois ambos se transformavam num delicado veludo escuro, pontilhado de estrelas. Olívia se apoiou na borda da barca, num estado quase irreal, de meio-sono. Tinha a sensação de estar flutuando no ar, com estrelas por cima e por baixo dela. Seu silencioso companheiro se destacava vagamente contra a escuridão suave. Não havia pressa nem pausa no ritmo dos remos, que ele manejava com tanta destreza. Quiçá ele era o barqueiro que a transportava ao outro lado do escuro lago da Morte. Mas a moça esqueceu seus temores e mergulhou num sono tranqüilo, acompanhada pelo movimento monótono dos remos.
A luz da aurora refletiu-se nos olhos de Olívia quando ela despertou, com uma fome espantosa. Despertara devido a uma mudança brusca na direção da barca. Conan descansava sobre os remos, olhando por cima dela. A garota se deu conta de que o cimério havia remado a noite inteira e admirou-se diante de sua resistência férrea. A jovem virou-se para seguir o olhar de Conan e viu um muro verde de árvores e arbustos, que circundavam com uma ampla curva uma pequena baía, cujas águas estavam calmas como a superfície de um cristal azul.
- Esta é uma das muitas ilhas que existem neste mar interior. – disse Conan – Acredita-se que são desabitadas, e ouvi dizer que os hirkanianos raramente visitam-nas. Além disso, eles não costumam afastar-se da costa com suas galeras, e nós estivemos navegando por muitas horas. Antes que escureça, deixaremos de ver terra.
Com umas poucas batidas de remo, Conan, o cimério, levou o bote até a margem, amarrou a corda da proa a uma árvore e saltou à terra. Estendeu a mão a Olívia, que fez uma expressão de pesar, ao ver as manchas de sangue que cobriam a pele do cimério, e estremeceu-se ao sentir a força que irradiava da mão do bárbaro.
Uma quietude fantástica reinava na matas que circundavam a pequena enseada azul. Logo, entre as árvores, ouviu-se o gorjeio matinal de um pássaro e o sussurro das folhas movidas pela brisa. Olívia ouviu um ruído, apesar de não saber exatamente o que era. O que poderia esconder-se naqueles bosques costeiros?
Enquanto ela observava timidamente as sombras que haviam entre as árvores, algo saiu à luz do sol, voando rapidamente. Era um enorme papagaio, que aterrissou sobre o galho de uma árvore e ficou ali, balançando-se, como uma brilhante figura de jade e carmim. A ave virou a cabeça para o lado e mirou os intrusos com seus reluzentes olhos de azeviche.
- Por Crom! – murmurou o cimério – Eis aqui o avô de todos os papagaios. Deve ter mil anos! Veja a perversa sabedoria que há em seus olhos. Que mistérios guarda, sábio demônio?
De repente, o pássaro estendeu suas asas multicoloridas e gritou com voz rouca:
- Yagkoolan yok tha, xuthalla!
Logo lançou um guincho que parecia uma espantosa risada humana, alçou vôo e desapareceu entre as sombras das árvores.
Olívia olhou em direção ao local por onde havia desaparecido o papagaio e sentiu como se uma estranha premonição lhe tocasse a espinha dorsal com uma mão gelada.
- O que disse? – perguntou, num sussurro.
- Eu juraria serem palavras humanas. – respondeu Conan – Mas numa língua que desconheço.
- Tampouco eu conheço. – afirmou a moça – Mas deve tê-la aprendido de lábios humanos. Humanos ou...
Permaneceu olhando a mata e estremeceu sem saber o porquê.
- Crom, estou com uma fome espantosa! – exclamou o cimério – Seria capaz de comer um búfalo inteiro. Vamos procurar frutas. Mas antes vou lavar este barro e este sangue seco. Não é nada agradável esconder-se nos pântanos.
Deixou a espada de um lado e, adentrando a água transparente e azul, fez suas limpezas. Quando saiu à margem, sua pele bronzeada brilhava sob os raios do sol e sua cabeleira negra já não estava emaranhada. Seus olhos azuis, embora ardessem com um fogo inextinguível, já não estavam injetados de sangue. Mas a agilidade felina de seu andar e o aspecto perigoso de seu semblante não haviam se alterado.
Virou-se para colocar a espada e fez um sinal para que Olívia o seguisse. Abandonaram a margem e adentraram a mata, passando sob as arcadas, formadas pelos grandes galhos das árvores. Pisaram num capim baixo e verde, que suavizava o ruído de seus passos. Entre os troncos das árvores, puderam perceber uma paisagem sobrenatural e fantástica.
Finalmente, Conan lançou um grunhido de satisfação, ao ver uns frutos dourados e avermelhados, que pendiam em cachos de algumas árvores. Sinalizou à moça para que sentasse num tronco caído, e foi enchendo seu colo de frutas exóticas, que puseram-se a comer com óbvio prazer.
- Por Ishtar! – exclamou Conan, entre uma mordida e outra – Desde o dia da batalha do rio Ilbars, tenho vivido de ratazanas e de raízes que tirava do barro fedorento. Isto, em compensação, é doce ao paladar, embora não encha muito o estômago. Mas nos servirá de alimento, se comermos o bastante.
Olívia estava demais para responder. Assim que acalmou um pouco sua fome, Conan começou a observar sua companheira com maior interesse. Observou os cachos de sua negra cabeleira, o tom rosado de sua pele suave e os contornos delicados de seu corpo esbelto, realçado pela túnica de seda que usava.
Saciado seu apetite, a garota levantou a cabeça. Ao se deparar com aqueles olhos ardentes, mudou de cor e deixou escapar entre seus dedos o fruto que estava comendo.
Conan não fez nenhum comentário, mas indicou, com um gesto, que deviam continuar sua exploração. A moça ficou em pé e o seguiu por entre as árvores, até chegar a uma clareira da qual se via uns densos matagais. Ao entrarem na clareira, ouviram um ruído de folhas, que vinha dos arbustos. Conan saltou para um lado e empurrou a garota com ele, evitando assim uma coisa que cruzou o ar e espatifou-se estrondosamente contra o tronco de uma árvore.
Conan sacou rapidamente sua espada e adentrou os matagais. Logo, seguiu-se um profundo silêncio, durante o qual Olívia encolheu-se no capim, desconcertada e horrorizada. Finalmente, o cimério voltou à clareira com uma atitude de estranheza no rosto.
- Não vi nada nos matagais. – disse – Mas nesse lugar há algo...
Aproximou-se da árvore e analisou o objeto que quase os atingira. Então, soltou um grunhido com ar incrédulo, como se não acreditasse em seus próprios olhos. Tratava-se de um enorme bloco de pedra esverdeada, que jazia ao pé da árvore, cuja madeira havia se despedaçado com o impacto.
- Uma estranha pedra, nada comum numa ilha desabitada. – disse o cimério.
Olívia abriu seus enormes e belos olhos com expressão de assombro, quando notou o pedaço de mineral. Tratava-se de um bloco de pedra com formas simétricas, sem dúvida talhado por mãos humanas. Era extraordinariamente pesado. O cimério pegou-o com ambas as mãos, e logo, apoiando firmemente suas pernas no chão e com todos os músculos contraídos, ergueu-o acima da própria cabeça e arremessou-o com força. A pedra caiu a poucos passos de onde estavam. Conan proferiu uma maldição.
- Não há ser humano capaz de lançar essa pedra de um lado a outro desta clareira. Isso só é possível com uma máquina de assédio. Todavia, aqui não há catapultas nem armas semelhantes.
- Talvez tenha sido lançada, de longe, por uma dessas máquinas. – sugeriu Olívia.
Conan negou com a cabeça.
- Não caiu obliquamente de cima, mas foi lançada daqueles matagais em linha horizontal. Não está vendo esses galhos quebrados? Alguém arremessou-a como quem atira um pedregulho. Mas, quem terá sido? Vamos!
A moça o seguiu com ar indeciso até os matagais.
Uma vez transposto o círculo externo dos arbustos, a vegetação era menos densa. Um silêncio absoluto reinava naquele lugar. Na grama úmida, não havia pegadas. No entanto, a pedra provinha daqueles misteriosos matagais e havia sido lançada com uma terrível pontaria. Conan se inclinou sobre a relva, e viu que esta estava esmagada em alguns lugares. Moveu a cabeça com ar aborrecido. Nem sequer seus olhos agudos podiam descobrir indícios que permitissem adivinhar quem havia passado por ali. Conan levantou os olhos para o teto verde de folhas, que cobria suas cabeças, e ficou paralisado.
Logo, de espada na mão, começou a recuar, enquanto segurava Olívia pelo braço.
- Vamos sair daqui, rápido! – disse, com um sussurro que gelou o sangue nas veias da jovem.
- O que está acontecendo? O que você viu?
- Nada, nada. – ele respondeu com tom evasivo, sem interromper sua retirada cautelosa.
- Mas o que havia nesses matagais?
- A morte! – respondeu Conan, com a vista ainda cravada na abóbada de cor jade que cobria o céu.
Uma vez saindo dali, o cimério pegou a moça pela mão e conduziu-a rapidamente através de uma rampa onde as árvores eram escassas, até chegarem a um planalto, onde o capim era alto e mal se via árvores. No centro da chapada, erguia-se um amplo edifício em ruínas, construído com pedras verdes.
Ambos contemplaram, assombrados, a estrutura de pedra. Não havia lendas que mencionassem a existência de tal edifício numa das ilhas do Mar Vilayet. O casal se aproximou cautelosamente, viram que o musgo e os liquens subiam pelas paredes de pedra e que, no teto, havia numerosas brechas que deixavam ver o céu. Por todos os lugares se via escombros, alguns parcialmente ocultos entre o capim alto. Dava a impressão de que, em épocas remotas, fora erguida uma cidade inteira ali. Mas agora só restava de pé a grande sala, cujas paredes se mantinham em equilíbrio precário entre as trepadeiras.
As portas, que poderiam existir naqueles vãos, haviam desaparecido há tempos. Conan e a jovem pararam na ampla entrada e olharam pra dentro. Os raios de sol entravam abundantemente através dos buracos das paredes e do teto, criando um vivo contraste de luzes e sombras. Conan agarrou sua espada com força e entrou no edifício com a cabeça encolhida entre os ombros e o andar cauteloso de uma pantera. Olívia seguiu-o sigilosamente.
Uma vez dentro, o cimério soltou um grunhido de surpresa e Olívia abafou um grito:
- Oh, veja, veja!
- Sim, já vi. – respondeu ele – Mas não há nada a temer. Não são mais que estátuas.
- Entretanto, parecem vivas. E que expressão maligna elas têm! – sussurrou ela, chegando mais perto de Conan.
Encontravam-se numa enorme sala, cujo chão de pedra polida estava coberto de poeira de escombros, caídos do teto. As trepadeiras, que cresciam entre as pedras, cobriam as inúmeras brechas. O teto, bastante alto, plano e sem abóbadas, era sustentado por enormes colunas enfileiradas ao longo das paredes. Entre uma coluna e outra, havia umas figuras de estranho aspecto.
Eram estátuas aparentemente feitas de ferro, negras e brilhantes, como se alguém estivesse polindo-as constantemente. Eram de tamanho humano e representavam homens altos, delicados e robustos, com uma expressão cruel num rosto aquilino. Estavam nus, e todos os detalhes dos músculos, articulações e tendões haviam sido representados com incrível realismo. Mas a característica mais real das estátuas era seu semblante altivo e impiedoso. Era evidente que aquelas feições não estavam esculpidas da mesma forma. Cada rosto possuía uma característica individual, apesar de vislumbrar-se um parentesco racial entre todos eles. Naqueles rostos não havia a monótona uniformidade da arte decorativa.
- Parecem estar escutando... e esperando! – murmurou Olívia, inquieta.
Conan bateu numa das estátuas com o cabo da espada.
- É de ferro, mas... por Crom, de que maneira foram feitas?
O cimério moveu a cabeça e logo encolheu os ombros, claramente desconcertado.
Olívia lançou um olhar tímido ao silencioso recinto. Seus olhos percorreram as pedras cobertas de hera, as altas colunas com trepadeiras e as estátuas escuras que havia diante dela. Sentiu vontade de partir dali o quanto antes, mas as estátuas exerciam uma estranha fascinação sobre seu companheiro. Este examinou-as minuciosamente e logo tentou levantar uma e arrancar-lhe um braço ou uma perna. Mas o material era mais forte e resistente que ele. Não conseguiu entortar, nem tirar de seu lugar, uma só estátua. Finalmente desistiu, praguejando.
- A quem queriam reproduzir? – perguntou Conan em voz alta – Estas figuras são negras e, entretanto, não representam pessoas da raça negra. Jamais vi homens como esses.
- Vamos para a luz do dia. – suplicou Olívia, olhando com receio para as figuras que estavam entre as colunas.
Passaram, do sombrio salão ao claro resplendor do sol. A moça se surpreendeu ao ver a posição do astro-rei no céu. Havia transcorrido, dentro das ruínas, bem mais tempo do que ela havia imaginado.
É melhor voltarmos ao bote. – sugeriu ela – Tenho medo. É um lugar estranho... parece amaldiçoado. Tenho a impressão de que podem nos atacar a qualquer momento.
- Já eu acredito que estaremos mais seguros enquanto não estivermos debaixo das árvores. – respondeu Conan – Venha.
A chapada, cujas beiradas desciam até as praias cobertas de vegetação, continuava ascendendo para o norte, até chegar a um grupo de escarpados rochosos, que constituíam o ponto mais alto da ilha. Conan caminhou para lá, seguido de perto pela garota. De vez em quando, olhava-a com uma expressão indecifrável no rosto, e ela sentia seu olhar.
Alcançaram a extremidade setentrional da chapada, de onde contemplaram a escarpada pendente. As árvores cresciam densamente pela beirada da colina, para leste e oeste dos escarpados. Conan olhou-a com receio, mas começou a subir, ajudando sua companheira. A costa não era uniforme, vez que estava interrompida por penhascos e cornijas rochosas. O cimério, nascido num país montanhoso, podia ter subido correndo, feito um felino, mas para Olívia era difícil avançar. Vez ou outra, a moça se sentiu levantada do chão, quando havia um obstáculo que dificultava-lhe o avanço, e sua admiração aumentou ao notar a enorme força física do homem ao seu lado. Já não achava repulsivo o contato com o cimério, pois se sentia protegida por aquelas mãos de ferro.
Finalmente chegaram ao topo, onde o vento agitou seus cabelos. De onde estavam, viam toda a ilha como um enorme espelho ovalado, cercado por um anel de verdor luxuriante, com exceção da parte mais vertical da pendente. Diante de sua vista, estendiam-se as águas azuis e plácidas, que se dissipavam à distância entre brumas.
- O mar está tranqüilo. – disse Olívia, suspirando – Por que não continuamos a viagem na barca?
Conan, erguido como uma estátua de bronze sobre o cume, apontou para o norte. A jovem aguçou a vista e viu uma mancha branca, que parecia estar suspensa em meio à densa bruma que via-se à distância.
- O que é aquilo?
- Uma vela.
- Serão hirkanianos?
- É difícil saber, a tanta distância.
- Vão ancorar aqui! Nos buscarão por toda a ilha! – exclamou ela, tomada de pânico.
- Duvido. Vêm do norte, de modo que não devem estar nos procurando. Talvez parem aqui por alguma outra razão, de modo que teremos que nos esconder o melhor possível. Creio que se trata de piratas, ou talvez de uma galera hirkaniana regressando de alguma incursão pelas costas do norte. Neste último caso, não creio que pare aqui. Mas não podemos voltar ao mar até que sumam de nossa vista, pois eles vêm por onde nós deveremos partir. Certamente, passarão a noite na ilha e, ao amanhecer, podemos seguir viagem.
- Então teremos que passar a noite aqui? – perguntou ela com um tremor.
- É o mais conveniente.
- Nesse caso, vamos dormir aqui, entre as rochas. – suplicou a garota.
Conan mexeu negativamente a cabeça, enquanto observava as árvores próximas, que constituíam uma massa verde com prolongamentos de ambos os lados dos rochedos.
- Há árvores demais. Dormiremos nas ruínas.
Olívia lançou um grito de protesto.
- Ninguém lhe fará mal lá. – disse o cimério, procurando acalmá-la – Seja quem for que arremessou a pedra, não nos seguiu fora da floresta. E não havia nenhum indício de alguém oculto entre as ruínas. Além do mais, sua pele é delicada e você está acostumada a roupas agasalhadas e a comidas saborosas. Eu posso dormir nu sobre a neve sem sentir muito incômodo, mas se você passar a noite na intempérie, estou certo de que até o orvalho lhe causaria câimbras.
Olívia assentiu silenciosamente, e ambos empreenderam a descida. Depois de cruzarem a chapada, aproximaram-se mais uma vez das ruínas sombrias, às quais o tempo tinha dado um ar de mistério. O sol se punha sob a chapada. Nas árvores próximas ao declive, encontraram frutos que lhes serviram de jantar.
A noite caía rapidamente naquelas latitudes do sul, pontilhando o céu escuro com grandes estrelas brancas. Conan entrou nas ruínas sombrias, trazendo Olívia, que o seguia de má vontade. A moça estremeceu, ao ver aquelas altivas figuras negras entre as colunas. Na escuridão, mal atenuada pelo suave fulgor das estrelas, a jovem quase não podia ver os contornos das estátuas. Percebia tão-somente sua atitude de espera, uma espera que parecia ter se prolongado ao longo de muitíssimos séculos.
Conan trouxe uma grande quantidade de galhos macios, cheios de folhas, e improvisou uma espécie de leito para Olívia, que estendeu-se sobre ele com a estranha sensação de estar dormindo no esconderijo de uma serpente.
O cimério não compartilhava os temores da garota. Sentou-se ao seu lado, com as costas apoiadas numa coluna e o sabre em cima dos joelhos. Seus olhos brilhavam como os de uma pantera no escuro.
- Durma tranqüila. – disse ele – Meu sono é leve como o de um lobo. Ninguém pode entrar neste recinto sem que eu acorde.
Olívia não respondeu. Do seu leito de folhas, observou as figuras imóveis, que se via com menos nitidez na escuridão. Que estranho lhe parecia estar acompanhada de um bárbaro, e ser cuidada e protegida por um homem de uma raça com a qual, desde pequena, lhe havia assustado tantas vezes! Seu acompanhante vinha de uma raça tosca, sangrenta e feroz. Sua qualidade de selvagem evidenciava-se em todos os seus atos e ardia em seus olhos fogosos. E, no entanto, ele não lhe havia causado o menor dano, enquanto seu pior opressor havia sido um homem que pertencia ao mundo chamado civilizado. Enquanto uma deliciosa languidez invadia seus membros, Olívia submergiu num sono suave e seu último pensamento foi a lembrança do firme contato dos dedos de Conan em sua carne.
Olívia sonhou, e em seus sonhos aparecia constante e obsessivamente um ser maligno, semelhante a uma serpente negra, que deslizava por uns jardins floridos. Seus sonhos eram fragmentados e cheios de cores, como exóticas peças de um desenho desconexo e desconhecido, até se cristalizarem numa cena de horror e loucura, contra um fundo de pedras e colunas ciclópicas. A moça viu, em sonhos, um grande salão, cujo teto, muito alto, era sustentado por colunas de pedra, encostadas em filas regulares às paredes resistentes. Entre os ditos pilares revoavam papagaios de plumagem verde e escarlate. A sala estava abarrotada de guerreiros de pele negra e rosto aquilino. Mas não eram homens da raça negra. Tanto eles quanto suas roupas e armas eram-lhe absolutamente desconhecidos.
Agrupavam-se em torno de alguém que estava amarrado a uma das colunas. Tratava-se de um rapaz esbelto, de pele branca e cachos dourados. A beleza do jovem não era em absoluto humana... era como o sonho de um deus, esculpido em mármore vivo.
Os guerreiros negros riam e zombavam dele numa língua estranha. A figura delgada e nua se retorcia sob aquelas mãos cruéis, enquanto o sangue deslizava por suas pernas de marfim e salpicava o chão polido. Os ecos dos gritos da vítima ouviam-se por toda a sala. Então, o jovem levantou a cabeça em direção ao forro do teto e pronunciou um nome com uma voz estremecedora. Uma adaga, empunhada por uma mão de ébano, interrompeu-lhe o grito, e sua cabeça dourada caiu sobre o peito de marfim.
Como resposta ao lamento desesperado, ouviu-se o retumbar de uma espécie de carruagem celeste e, diante dos assassinos, apareceu uma figura que dava a impressão de ter se materializado no ar. A forma era humana, mas nenhum mortal havia jamais desfrutado de beleza tão sobre-humana. Existia uma inconfundível semelhança entre ele e o jovem morto, mas os traços de humanidade, que suavizavam as feições do jovem, não existiam nas do desconhecido, que resultavam surpreendentes em sua beleza.
Os negros recuaram diante da aparição, com olhos que eram como riscos de fogo. O desconhecido levantou a mão e falou, e as ondas de sua voz ressoaram através das silenciosas salas com tons profundos e cadenciosos. Como se estivessem em transe, os guerreiros negros continuaram recuando até ficarem alinhados ao longo das paredes, em filas regulares. Então, dos lábios cinzelados do desconhecido, surgiu uma terrível invocação, que era uma ordem:
- Yagkoolan yok tha, xuthalla!
Ao escutarem aquele grito terrível, as negras figuras ficaram rígidas, como que paralisadas. Seus membros adquiriram uma estranha aparência pétrea. O desconhecido tocou o corpo inerte do jovem, e as correntes que atavam-no caíram a seus pés. Levantou o corpo em seus braços e começou a afastar-se, enquanto seu olhar sereno percorria as silenciosas filas de figuras de ébano. Apontou com a cabeça para a lua, que brilhava através de algumas brechas no teto. Aquelas estátuas rígidas e expectantes, que haviam sido homens, compreenderam...
Olívia despertou sobre seu colchão de folhas com um estremecimento; um suor frio cobria-lhe a pele. Seu coração batia tão aceleradamente que quase se podia ouvi-lo no silêncio reinante. Olhou em redor e viu que Conan continuava dormindo, com as costas apoiadas na coluna e a cabeça inclinada sobre o volumoso peito. O brilho prateado da lua atravessava os buracos do teto e desenhava enormes faixas brancas no chão empoeirado. Podia ver vagamente as sombras negras, que pareciam continuar esperando. Ao mesmo tempo em que lutava contra seu crescente nervosismo, raiando no espanto, Olívia viu que os raios da lua iluminavam tenuemente as colunas e as figuras que haviam entre elas.
O que era aquilo? A jovem observou um estremecimento nas estátuas, sobre as quais refletia-se a lua. Um horror paralisante tomara conta dela, pois, onde devia reinar a quietude da morte, havia movimento: lentas flexões e torções de membros de ébano. Então, ao quebrar-se o encantamento que a mantinha muda e imóvel, Olívia lançou um grito dilacerador. Conan saltou quase instantaneamente e ficou de pé, com a espada preparada e os dentes brilhando na penumbra.
- As estátuas! As estátuas! – exclamou a jovem – Oh, meu Deus, as estátuas estão ganhando vida!
Em seguida, a moça saltou através de uma larga fenda que havia na parede e pôs-se a correr freneticamente, sem parar de gritar. Finalmente, uns braços rodearam-na e ela lutou desesperadamente contra aquilo que a segurava, até que uma voz familiar atravessou a cortina de horror e ela viu Conan, cujo rosto era uma máscara perplexa sob o luar.
- Em nome de Crom, garota, o que está acontecendo? Você teve um pesadelo? – ele perguntou, e sua voz ressoou estranha e distante.
Sem deixar de soluçar, Olívia envolveu o pescoço do cimério com os braços e agarrou-se a ele, tremendo convulsivamente.
- Onde estão? Nos seguiram?
- Ninguém está nos seguindo. – respondeu Conan.
A jovem levantou-se, ainda agarrada a ele, e olhou temerosa ao seu redor. Sua fuga desesperada havia levado-a até a borda sul da chapada. Logo abaixo dela, encontrava-se a pendente, cuja parte inferior ficava oculta pelas espessas sombras dos bosques. Atrás deles, erguiam-se as ruínas iluminadas pela lua.
- Não viu as estátuas? – ela perguntou a Conan – Não viu como se moviam, como levantavam as mãos, como olhavam das sombras com seus olhos?
- Não, não vi nada. – respondeu o bárbaro, com certa inquietação – Dormi mais profundamente que o normal, pois fazia tempo que eu não dormia. No entanto, não creio que alguém pudesse entrar nesta sala, sem que eu ouvisse e despertasse.
- Ninguém entrou. – disse Olívia, tendo um acesso de risada histérica – Era algo que já estava ali dentro. Oh, Mitra, e pensar que deitamos pra dormir entre eles, como cordeiros próximos a um bando de lobos!
- Do que está falando? – perguntou ele – Me levantei quando lhe ouvi gritar, mas antes que tivesse tempo de olhar a meu redor, vi você desaparecer pelo buraco da parede. Lhe segui por medo de que lhe acontecesse alguma coisa, certo de que você teve um pesadelo.
- Sim! – exclamou Olívia, sem conseguir reprimir um calafrio – Escute...
Logo após, a jovem contou-lhe tudo o que havia sonhado e que acreditara ver. Conan escutou com atenção. O bárbaro não compartilhava o ceticismo dos homens civilizados. A mitologia de seu povo estava cheia de espíritos, fantasmas e necromantes. Quando ela concluiu, Conan se sentou silenciosamente a seu lado e acariciou sua espada, com ar distraído.
- Me diga, o jovem torturado era semelhante ao homem que apareceu no final? – perguntou Conan, rapidamente.
- Como um pai e um filho. – respondeu ela – Se a mente fosse capaz de conceber o filho da união de um ser divino com um humano, seu aspecto seria como o daquele jovem. Os deuses da antiguidade copulavam, às vezes, com mulheres mortais, segundo contam as lendas.
- Que deuses? – perguntou o cimério.
- Deuses esquecidos. Quem sabe? Desapareceram nas águas quietas dos lagos, no centro das montanhas, nos abismos siderais que existem além das estrelas. Os deuses não são mais eternos que os homens.
- Mas se essas estátuas eram homens, transformados em imagens de ferro por algum deus ou demônio, como podem estar vivas?
- Há magia na lua. – disse ela, estremecendo-se – No sonho, vi que o homem apontava para a lua. Nisso eu acredito.
- Mas você já vê que eles não nos perseguem. – murmurou Conan, lançando um olhar para as ruínas sombrias – Talvez você tenha sonhado que haviam se movido. Acho que vou voltar para confirmá-lo.
- Não, não! – exclamou Olívia, agarrando-se desesperadamente a ele – Talvez algum feitiço os detenha naquela sala. Não volte! Vão lhe torturar sem piedade! Oh, Conan, vamos para o bote, fugir desta ilha maldita! Certamente, o barco hirkaniano já terá partido! Vamos!
Sua súplica era tão desesperada, que Conan estava impressionado. Sua curiosidade com relação às estátuas se via refreada por seu espírito supersticioso. Não temia inimigos de carne e osso, por mais poderosos que fossem, mas qualquer alusão ao sobrenatural despertava nele o monstruoso terror atávico dos bárbaros.
Finalmente, Conan pegou a moça pela mão e ambos desceram colina abaixo, entrando nos bosques frondosos, onde as folhas sussurravam e desconhecidas aves noturnas murmuravam sonolentas. Debaixo das árvores fazia sombra, e Conan avançou, procurando contornar as manchas mais escuras. Seus olhos examinavam todos os cantos, inclusive os galhos que estavam acima de suas cabeças. Avançava rápida, mas cautelosamente, e seu braço apertava com tal força a cintura da garota, que esta se sentia mais transportada que guiada. Nenhum dos dois falou. O único som que se ouvia era o rápido e nervoso ofego de Olívia, assim como o atrito de seus pequenos pés sobre a grama. Assim chegaram até a beira do mar, que brilhava como prata derretida à luz da lua.
- Deveríamos ter trazido alguns frutos conosco. – murmurou Conan – Mas certamente acharemos outras ilhas. Ainda faltam algumas horas para amanhecer e...
A voz morreu em seus lábios. A corda do bote ainda estava amarrada ao galho, mas na outra ponta só havia restos de madeira, despedaçada e meio submersa na água.
Olívia soltou um grito abafado. O cimério virou-se rapidamente e ficou em frente às densas sombras, agachado como uma ameaça. Na floresta reinava um total silêncio. As aves noturnas haviam deixado de cantar, e nem sequer a brisa agitava os galhos. No entanto, de algum lugar, ouviu-se um atrito de folhas.
Rápido como um felino, Conan tomou Olívia nos braços e começou a correr. Avançou como um fantasma entre as sombras, enquanto continuava ouvindo, atrás de si, o estranho ruído de folhas, que ia aproximando-se implacavelmente. De repente, a lua iluminou seus rostos, enquanto Conan subia a ladeira com grande rapidez.
Uma vez na parte superior do promontório, o cimério depositou Olívia no solo e voltou a olhar o abismo de sombras que haviam deixado para trás. Os galhos continuavam movendo-se, graças à brisa que erguera-se subitamente. Isso era tudo. Conan sacudiu a cabeça e lançou um grunhido furioso. Olívia aproximou-se dele como uma menina assustada e fitou-o com olhos que pareciam um escuro poço de horror.
- O que faremos, Conan? – sussurrou.
O bárbaro observou as ruínas e lançou outro olhar aos bosques que haviam mais abaixo.
- Vamos aos escarpados. – afirmou, enquanto voltava a tomá-la nos braços – Amanhã, construirei uma jangada e voltaremos a confiar nossa sorte ao mar.
- Não terão sido... eles que destruíram nosso bote? – perguntou Olívia, com um tom que era quase uma afirmação.
Conan moveu negativamente a cabeça, com ar taciturno.
Cada passo que davam pela chapada enluarada em direção às ruínas era motivo de terror para Olívia. Mas não saiu nenhuma sombra das ruínas, e finalmente chegaram ao pé dos penhascos que erguiam-se majestosamente por cima deles. Ali, Conan parou como se hesitasse, e logo escolheu um lugar resguardado, debaixo de um penhasco e longe das árvores.
- Deite-se e durma se puder, Olívia. – disse ele – Vou ficar de vigia.
Mas Olívia não conseguiu conciliar o sono, e ficou olhando em direção à floresta e às ruínas distantes, até que as estrelas ficaram pálidas, o oriente clareou e a aurora, de cores rosa e ouro, derramou seu fogo sobre as gramas do bosque.
A moça levantou-se rapidamente e lembrou todos os acontecimentos da véspera. À luz do dia, seus terrores noturnos lhe pareceram invenções de uma imaginação superexcitada. Conan aproximou-se dela e disse-lhe algo que eletrizou-a.
- Pouco antes do amanhecer, ouvi um ruído de aparelhos e um estalar de remos. Um barco ancorou perto daqui. Deve ser o que vimos ontem. Iremos aos escarpados para ver o que está ocorrendo.
Subiram os rochedos e, estendidos de bruços entre as rochas, viram um mastro que destacava-se por cima das árvores.
- É uma nave hirkaniana, pelo aspecto. – murmurou o cimério – Me pergunto se a tripulação...
Chegou até eles um rumor de vozes distantes e, pelo extremo sul do escarpado, viram aparecer uma horda multicolorida que, após avançar alguns passos, parou na margem da colina para entrar em conciliábulo. Agitavam os braços, manejavam suas espadas e discutiam em voz alta. Finalmente, todo o grupo dirigiu-se às ruínas, cruzando a chapada obliquamente, de modo que deviam passar pelo pé do escarpado.
- Piratas! – sussurrou Conan, e um sorriso malicioso aflorou em seus lábios – Parece que capturaram uma galera hirkaniana. Venha, esconda-se entre essas rochas e não saia daqui até que eu lhe diga.
Uma vez que a garota ficou bem oculta entre os penhascos que existiam em cima do escarpado, o cimério acrescentou:
- Vou me defrontar com esses cães. Se meu plano der certo, tudo se ajeitará e partiremos com eles. Do contrário... será melhor que continue escondida entre as rochas até que tenham ido, pois não há demônios mais cruéis em toda a ilha do que esses lobos do mar.
E, soltando-se dos braços da garota, que procurava segurá-lo, o cimério desceu rapidamente pelo escarpado.
Olívia olhou, espantada, do seu esconderijo e viu que o grupo aproximava-se do pé do promontório. Conan saltou entre as rochas e defrontou-se com os piratas, com a espada na mão. Estes recuaram, proferindo gritos de ameaça e surpresa. Logo se mantiveram a uma distância segura e observaram aquele personagem que aparecera tão de repente entre as rochas. Eram uns setenta homens, uma horda selvagem composta por homens de todas as nacionalidades: kothianos, zamorianos, britunianos, coríntios e shemitas. Seus rostos refletiam sua condição de selvagens. Muitos deles tinham cicatrizes de espadas, de chicotes ou de ferros incandescentes. Haviam também orelhas cortadas, narizes decepados, órbitas sem olhos e amputações em braços e pernas; eram as marcas de múltiplas batalhas. A maioria deles andava seminua, mas o pouco que vestiam era de excelente qualidade: casacos com bordados de ouro, cintos de cetim e calças de seda. Tudo estava rasgado, sujo de sangue e de lodo, e, em alguns casos, as peças de roupa cobriam uma couraça prateada, finamente trabalhada. As gemas reluziam em suas orelhas e narizes, assim como nos cabos de suas adagas.
A figura robusta e bronzeada do cimério contrastava com essa estranha multidão.
- Quem é você? – rugiram alguns integrantes da horda.
- Sou Conan, o cimério. – disse o bárbaro, com uma voz profunda e desafiadora como a de um leão – Sou um dos Companheiros Livres e quero unir-me à Irmandade Escarlate. Quem é o líder de vocês?
- Eu, por Ishtar! – rugiu uma voz de touro.
A voz era tão imponente quanto a figura que se adiantou, oscilante. Tratava-se de um gigante seminu, cujo enorme ventre usava um largo cinto que segurava largas calças de seda. Tinha a cabeça raspada, com exceção de uma mecha, e os bigodes caíam-lhe a ambos os lados da boca. Calçava sapatos shemitas de cor verde com a ponta retorcida para cima, e empunhava uma longa espada de lâmina reta.
Conan olhou pra ele e seus olhos cintilaram.
- Sergius de Khrosha! – exclamou.
- Sim, por Ishtar! – respondeu o gigante, com uma intensa expressão de ódio em seus olhos negros – Achou que eu havia me esquecido? Não! Sergius jamais esquece um inimigo! Vou pendurá-lo pelos pés e lhe esfolar vivo! A ele, rapazes!
- Sim, pode enviar seus cães contra mim, gorducho. – disse Conan, com desprezo – Você sempre foi um covarde, porco kothiano.
- Covarde, eu? – rugiu o referido, e seu largo rosto se avermelhou de ira – Em guarda, cão do norte! Vou atravessar seu coração!
Um segundo depois, os piratas formavam um círculo em torno de ambos os adversários. Seus olhos brilhavam e o ar ressoava entre seus dentes, diante da excitação que lhes causava a possibilidade de ver um espetáculo sangrento. Olívia observava do alto dos rochedos, e cravou fortemente as unhas nas palmas das mãos, devido à dolorosa emoção.
Os dois inimigos iniciaram a luta sem mais formalidades. Sergius avançou com a rapidez de um gigantesco felino, apesar de seu corpo volumoso. Sem deixar de gritar maldições, detinha golpes e atacava. Conan lutava em silêncio, e seus olhos eram duras frestas de fogo azul.
O kothiano deixou de praguejar para poupar o fôlego. Os únicos sons que se ouviam eram o rápido atrito dos pés sobre a grama, a respiração ofegante do pirata e os ecos do aço. As espadas cintilavam fortemente sob o sol da manhã, traçando círculos e linhas quebradas no ar. Pareciam repelir-se mutuamente, para voltarem a se encontrar com violência redobrada. Sergius recuava. Apenas sua enorme habilidade havia salvado-o de cair nos primeiros instantes, diante da rapidez cegante do cimério. De repente, ouviu-se um choque metálico mais forte, e logo uma praga abafada. Da horda de piratas surgiu um grito feroz que cortou o ar, quando Conan afundou sua espada no corpo volumoso do capitão. Entreviu-se a ponta metálica como uma chama branca entre os ombros de Sergius. O cimério retirou o aço, no momento em que o pesado corpo caía de bruços ao chão, enquanto suas mãos largas retorciam-se por alguns instantes.
Conan virou-se rapidamente para os atônitos piratas e rugiu:
- Bem, cães! Já enviei seu chefe ao inferno! O que diz a lei da Irmandade Escarlate?
Antes que alguém pudesse responder-lhe, um brituniano com cara de rato, que estava atrás de seus companheiros, girou rapidamente uma funda e atirou uma pedra, que avançou como um dardo até seu alvo. Conan cambaleou e caiu abatido, como uma enorme árvore sob o machado do lenhador. Acima, no alto do escarpado, Olívia teve que segurar-se a uma pedra para não cair. A cena girou vertiginosamente diante de seus olhos. A única coisa que viu foi o cimério jazer, estendido sobre a grama, enquanto o sangue brotava de sua cabeça.
O indivíduo com cara de rato soltou um grito triunfal e correu para apunhalar o abatido, mas um esguio coríntio o deteve e empurrou-o para trás.
- Quê! Vai romper a lei da Irmandade, Aratus?
- Não estou quebrando nenhuma lei. – grunhiu o brituniano.
- Como não, cachorro? Este homem que você acaba de abater é, por justo direito, nosso capitão!
- Não, de modo algum! – exclamou Aratus – Não pertencia ao nosso grupo, era um intruso. Não havia sido admitido na Irmandade. O fato de ter matado Sergius não faz dele o nosso capitão, como ocorreria se qualquer um de nós tivesse matado-o.
- Mas ele queria unir-se ao nosso grupo. – respondeu o coríntio – Todos o ouvimos.
Então, ouviu-se o clamor de uma forte discussão; alguns se mostraram partidários de Aratus e outros do coríntio, a quem chamavam Ivanos. Proferiram-se maldições e ameaças, e as mãos agarraram os cabos das espadas. Finalmente, um shemita disse em voz alta:
- Pra que discutir, se esse homem está morto?
- Não, não está morto. – respondeu o coríntio, após examinar rapidamente Conan – Só está atordoado pelo golpe.
Com isso, reataram-se as discussões e Aratus tentou acabar com o ferido, o que Ivanos impediu com atitude ameaçadora e a espada desembainhada. Olívia teve a sensação de que o coríntio apoiava Conan, nem tanto por defendê-lo, mas por se opor a Aratus. Certamente, ambos os homens haviam sido lugar-tenentes de Sergius e não se devotavam nenhuma simpatia. Após muitas discussões, decidiram amarrar Conan e levá-lo com eles, para decidirem mais tarde sua sorte.
O cimério, que começava a recuperar os sentidos, foi atado com grossas cordas de couro e, entre queixas e maldições, quatro piratas robustos levantaram-no e levaram-no consigo através da chapada. O corpo de Sergius continuou estendido ao solo, no mesmo lugar onde havia caído.
No alto da escarpa, Olívia estava atordoada e desolada por sua desastrosa situação. Sem saber o que fazer, optou por permanecer oculta, enquanto observava, com olhos assustados, como a horda brutal levava seu protetor.
A moça não soube quanto tempo esteve ali, até que viu, ao outro lado da chapada, que os piratas chegavam até as ruínas e entravam no edifício, arrastando seu prisioneiro. Logo percebeu que os integrantes do grupo entravam e saíam por portas e orifícios, subiam pelas paredes meio caídas e apoiavam-se nos escombros. Em pouco tempo, vinte deles voltaram pela chapada, recolheram o cadáver de Sergius e levaram-no, possivelmente para lançá-lo ao mar. Perto das ruínas, os demais piratas dedicavam-se a cortar árvores e partiam lenha, provavelmente para fazer fogo. Olívia ouviu suas vozes e seus gritos, ininteligíveis devido à distância. Finalmente voltaram os que haviam recolhido o cadáver de Sergius, trazendo barris de bebida e sacos de comida. Avançaram para as ruínas, praguejando devido ao peso que carregavam.
Olívia observava tudo isto de forma quase mecânica, pois seu cérebro cansado estava a ponto de explodir, devido à intensidade das emoções sofridas. Agora que estava sozinha diante de tantos perigos, se dava conta do quanto significara para ela a proteção do cimério. Assim eram as brincadeiras do destino, capazes de fazer com que a filha de um rei dependesse totalmente de um bárbaro com as mãos cobertas de sangue. A jovem sentiu repugnância para com os de sua classe. Tanto seu pai quanto Shah Amurath eram homens considerados civilizados, mas com eles só experimentara sofrimentos. Jamais havia conhecido um homem civilizado que tratasse-a com delicadeza, a menos que tivesse uma razão oculta e egoísta para fazê-lo. Conan, por sua vez, lhe havia ajudado e protegido, sem pedir nada em troca por enquanto. A garota apoiou a cabeça nos braços e pôs-se a chorar amargamente, até que uns gritos distantes lembraram-lhe da perigosa situação em que se encontrava.
Lançou um olhar para as ruínas escuras, onde os piratas moviam-se como figuras diminutas, devido à distância. Alguns deles dirigiam-se para a densa vegetação. Embora o terror que sentira nas ruínas na noite anterior pudesse ser fruto de sua imaginação, a ameaça que pairava sobre ela da espessura da floresta era algo bem real. Se matassem Conan ou se os piratas o levassem consigo, a única saída que lhe restava era entregar-se àqueles lobos do mar ou ficar só naquela ilha enfeitiçada.
O horror de sua triste sina dominou-a a ponto de fazê-la desmaiar.
O sol já estava se pondo, quando Olívia recobrou os sentidos. Uma suave brisa levava até seus ouvidos gritos distantes e o som de canções obscenas. A moça levantou a cabeça curiosamente e olhou através da chapada. Viu os piratas reunidos em torno da fogueira, no exterior das ruínas, e seu coração acelerou-se, quando percebeu que um grupo de corsários saía do interior do edifício em ruínas, arrastando alguém que ocorria ser Conan. Colocaram-no contra uma parede, ainda firmemente amarrado, e logo aconteceu uma longa discussão, durante a qual brandiram armas. Depois voltaram a levá-lo para dentro do templo e continuaram bebendo muito. Olívia suspirou; ao menos, Conan continuava vivo. Então, tomou uma decisão. Ao cair da tarde, se arrastaria até aquelas lúgubres ruínas e tentaria libertar o cimério. Se fracassasse, cairia nas mãos daquela turba de desalmados. A moça era consciente de que, ao libertar Conan, não o faria apenas por motivos egoístas.
Tranqüilizada por esta idéia, arrastou-se pelos arredores do lugar onde se encontrava, em busca de alguns frutos que cresciam ali perto. Não comera nada desde o dia anterior. Enquanto estava ocupada naquela tarefa, teve a estranha sensação de que alguém a observava. Cheia de medo, subiu pela parte norte do escarpado e olhou nervosamente para baixo, em direção aos matagais, que encheram-se de sombras depois do pôr-do-sol. Olívia não viu nada suspeito. Do lugar onde estava, era impossível que alguém pudesse vê-la. No entanto, sentiu um olhar oculto e teve a certeza de que um ser animado e sensível era consciente de sua presença.
A moça regressou ao seu esconderijo e ficou debruçada entre as rochas, observando as ruínas distantes até cair a noite. Logo, a luz das chamas vacilantes indicou-lhe o local onde estavam as negras figuras dos piratas, que corriam cambaleantes por causa do vinho.
Então, Olívia ficou em pé. Era hora de levar a cabo um plano. Primeiro, voltou ao extremo norte dos rochedos e olhou para baixo, em direção aos bosques à beira da praia. Aguçou a vista ao máximo e, sob a tênue luz das estrelas, viu algo que deixou-a paralisada; sentiu como se uma mão gelada lhe tocasse o coração.
Lá embaixo, algo se movia. Tratava-se de uma sombra negra que destacava-se das demais e se deslocava lentamente, subindo pela abrupta ladeira do escarpado. Era uma vaga massa disforme, que se movia na penumbra. O pânico atormentava-lhe a garganta; Olívia dominou um grito instintivo, levando a mão à boca. Logo deu a volta e desceu rapidamente pela ladeira sul.
Aquela fuga pela ladeira sombria foi como um pesadelo. Tropeçava e escorregava em sua tentativa de agarrar-se às lisas rochas com suas mãos geladas. As pedras rasgaram a fina pele de seus braços e pernas. Olívia sentiu falta do bárbaro de músculos de aço, que no dia anterior havia levado-a nos braços. Mas este era apenas um dos muitos pensamentos, que assaltaram, feito um turbilhão, a mente da jovem desamparada.
Olívia teve a sensação de que a descida era interminável, mas seus pés finalmente pisaram a grama da colina. Então, pôs-se a correr, com louco frenesi, para as fogueiras que ardiam como o rubro coração da noite. Atrás de si, ouviu-se o ruído de uma cascata de pedras que caíam pela ladeira da colina, e esse som deu asas a seus pés. Procurou não pensar em quem podia ter provocado a queda daquelas pedras.
O esforço físico que teve de realizar dissipou, em parte, o terror cego que a dominava e, antes de chegar às ruínas, sua mente estava clara e suas faculdades, alertas, apesar de suas pernas tremerem devido à correria.
Depois, ficou de bruços e se arrastou sobre a grama, até que pôde observar seus inimigos, escondida atrás de umas árvores que haviam se salvado do machado dos piratas. Estes já tinham jantado, mas continuavam enchendo suas jarras e taças douradas nos barris de vinho. Alguns já roncavam alto sobre a grama, enquanto outros cambaleavam em direção às ruínas. A jovem não viu sinal algum do cimério. Permaneceu ali, deitada, enquanto o orvalho começava a impregnar as folhas que haviam a seu redor. Os poucos homens que estava próximos à fogueira jogavam, praguejavam e discutiam. Os demais estava dormindo no interior das ruínas.
Sem saber o que fazer, Olívia continuou onde estava, enquanto sua angústia era aumentada pela incerteza da espera. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, ao pensar no que vira subir pela ladeira norte, e em quem podia estar observando-a e aproximando-se por trás dela. O tempo passou com uma lentidão extraordinária. Um a um, os piratas que ainda estavam despertos foram caindo no sono da embriaguez, até ficarem todos dormindo próximos ao fogo moribundo.
Olívia hesitou. Logo decidiu agir, ao ver um brilho tênue que se erguia entre as árvores. A lua estava saindo!
Ergueu-se de um pulo e correu para as ruínas. Amedrontada, avançou nas pontas dos pés entre os piratas bêbados que dormiam diante do portal do edifício semi-arruinado. Dentro dele, havia muito mais piratas, que se mexiam e falavam em meio a seus agitados sonhos etílicos, mas nenhum acordou quando a moça deslizou entre eles. Um soluço mudo de alegria surgiu de seus lábios, quando viu Conan. O cimério estava acordado e amarrado a uma coluna; seus olhos azuis brilhavam, refletindo o brilho tênue da fogueira que havia lá fora.
Avançou entre os que dormiam e se aproximou de Conan, que a havia visto no momento em que apareceu no portal. Um leve sorriso se desenhou em seus lábios.
Olívia aproximou-se e abraçou-se a ele. O cimério notou a batida acelerada do coração da jovem contra seu peito. Através de uma enorme rachadura que havia na parede, entrou um raio de luar; o ar estava carregado de uma tensão sutil. O cimério percebeu isso e seu corpo ficou rígido. O mesmo ocorreu à jovem, que lançou um suspiro. Os piratas continuavam roncando alto. Olívia se inclinou e tirou uma adaga do cinto de um deles, e começou a cortar as fortes ataduras que seguravam o cimério. Eram cabos de aparelhos, grossos e resistentes, e estavam amarrados com a destreza dos marinheiros. A moça se empenhou desesperadamente, enquanto a luz da lua aproximava-se devagar, pelo chão da sala em direção às negras figuras entre as colunas.
Olívia ofegava. Os pulsos de Conan ficaram livres, mas seus cotovelos e pernas continuavam firmemente atados. A jovem olhou fugazmente as estátuas, que pareciam esperar e esperar. Teve a impressão de que estavam olhando-na com a impaciência atroz de um ser vivo. Os bêbados que jaziam a seus pés começaram a mover-se e a resmungar em sonhos. A luz da lua aproximava-se dos negros pés das estátuas. Nesse momento, romperam-se as cordas que seguravam os braços de Conan, que tirou a adaga da mão de Olívia e, de um só talho, cortou a corda que lhe imobilizava as pernas. Afastou-se da coluna, flexionando os braços, intumescidos depois de tantas horas amarrados. A jovem se encolheu contra ele, tremendo como uma folha. Seria uma ilusão, criada pelo luar, que enchia de fogo os olhos das negras estátuas e fazia-os brilhar com um resplendor avermelhado na penumbra?
Conan se moveu com a rapidez de um felino. Ergueu sua espada do chão e, pegando Olívia nos braços, deslizou através de uma abertura do muro coberto de hera.
Não disseram uma só palavra. Com a jovem nos braços, Conan avançou rapidamente sobre a grama banhada pelo luar. Olívia envolveu com seus braços o enorme pescoço do cimério, cerrou os olhos e apoiou sua cabeça no ombro de seu acompanhante. Invadia-a uma deliciosa sensação de segurança.
Apesar do peso que levava, o cimério cruzou a chapada em poucos segundos e, ao abrir os olhos, Olívia pôde confirmar que estavam passando sob a sombra do escarpado.
- Havia alguém subindo os rochedos. – sussurrou ela – Ouvi-o atrás, quando eu estava descendo.
- Teremos que arriscar. – disse ele.
- Não tenho medo... agora. – respondeu Olívia, suspirando.
- Tampouco teve medo quando foi me libertar. Por Crom, que dia! Não sei como escapei vivo. Aratus queria me matar, e Ivanos se negou, talvez para contrariar Aratus, a quem odeia. Estiveram discutindo, brigando e cuspindo um no outro, mas seus amigos estavam bêbados demais para tomar partido.
Conan parou subitamente, como uma estátua de bronze sob a luz da lua. Num gesto rápido, lançou para um lado a moça, que se pôs atrás dele. Olívia não pôde evitar um grito de espanto diante do que viu.
Das sombras dos rochedos, surgiu uma massa monstruosa, um horror com forma vagamente humana, uma grotesca paródia de homem.
Seu aspecto lembrava o de um ser humano, mas seu rosto era bestial, com orelhas pregadas, nariz largo e brilhante, e enormes lábios flácidos que deixavam ver uns dentes afiados. Estava coberto por um emaranhado de cabelo prateado, que brilhava ao luar. Suas mãos grandes, como garras disformes, quase tocavam o chão. O volume de seu corpo era enorme; mesmo quando estava encurvado e suas pernas curtas se arqueavam, sua cabeça cônica erguia-se bem acima da do cimério. A amplitude de seu tronco peludo e de suas enormes costas tiravam o fôlego. Os braços eram como grandes árvores nodosas.
A cena, iluminada pela lua, dava voltas diante dos olhos de Olívia. Desse modo, sua viagem acabava ali. Qual ser humano seria capaz de resistir ao ataque daquela peluda montanha de músculos e de violência? Entretanto, enquanto observava, com olhos arregalados pelo horror, o corpo de bronze que enfrentava o monstro, percebeu uma pavorosa semelhança entre ambos os antagonistas. Teve a sensação de que aquele enfrentamento era menos a luta entre um homem e uma besta do que o confronto entre dois seres selvagens, igualmente implacáveis e ferozes.
O monstro atacou, mostrando seus dentes brancos. Seus braços poderosos se abriram no momento em que investia com uma assombrosa rapidez, apesar de seu tamanho e de suas pernas tortas. A resposta de Conan foi um brilho de velocidade, que Olívia mal pôde seguir com o olhar. A jovem só viu que o cimério evitava aquele abraço mortal e que sua espada, fulgurando como um relâmpago, caía sobre um dos enormes braços do ser antropomórfico e cortava-o com precisão, um pouco acima do cotovelo. Uma cascata de sangue molhou a grama, ao cair o membro decepado, que ainda retorceu-se horrivelmente, por alguns momentos, no solo. Mas, nesse mesmo momento, a outra mão disforme do monstro agarrou Conan pela escura cabeleira.
Os músculos férreos do pescoço do cimério salvaram-no de uma morte imediata. Estendeu sua mão esquerda em direção à garganta da fera, enquanto seu joelho se apoiava firmemente no ventre peludo do monstro. Então, começou uma resistência que durou apenas alguns segundos, mas que à jovem paralisada pareceram eternos.
O monstruoso símio continuava agarrando Conan pela cabeleira e, pouco a pouco, o arrastava em direção a seus dentes, que brilhavam ao luar. O cimério resistiu ao ataque, mantendo rígido o braço esquerdo, enquanto, com o direito, afundava sua espada várias vezes nas virilhas, no peito e no ventre de seu inimigo. A fera recebeu o tormento com um silêncio aterrador. A perda de sangue, o qual fluía aos borbotões de seus terríveis ferimentos, não parecia debilitá-la. A terrível força do antropóide não demorou em superar a oposição exercida pelo braço esquerdo e joelho de Conan. Inexoravelmente, o braço do cimério ia dobrando-se e Conan ficava cada vez mais perto das horrendas mandíbulas do monstro, que se escancaravam para tomar a vida do inimigo. Agora, os olhos cintilantes do bárbaro miravam fixamente os olhos injetados de sangue do enorme símio, e Conan continuava afundando sua espada no corpo peludo. De repente, as mandíbulas espumantes do monstro estalaram espasmodicamente e fecharam-se a muito pouca distância do rosto do cimério. Este viu-se arremessado com força sobre a grama, devido às convulsões do monstro agonizante.
Olívia, meio desmaiada, viu que o macaco retorcia-se no chão, em meio a estertores, enquanto apertava com gesto humano o cabo da espada que sobressaía de seu corpo. Em pouco tempo, ele estremeceu-se e ficou imóvel.
Conan se ergueu cambaleante. O cimério respirava entrecortadamente e avançou com dificuldade, como um homem cujas articulações e músculos foram submetidos a um esforço que está quase no limite da resistência humana. Tocou o sangrento couro cabeludo e praguejou, ao ver, na peluda mão do monstro, grandes mechas de sua negra cabeleira.
- Por Crom! – ofegou – Me sinto como se tivessem me moído a pauladas! Preferiria lutar contra uma dúzia de homens. Mais um segundo, e minha cabeça acabaria entre seus dentes. Maldito seja, me arrancou um punhado de cabelos pela raiz!
Empunhando a espada com ambas as mãos, Conan foi cortando os dedos do monstro, até conseguir soltar aquelas mechas de seus cabelos. A seu lado, Olívia observava, com olhos arregalados, o corpo da besta.
- O que..., o que é...? – perguntou a moça, num sussurro.
- É um homem-macaco cinza. – respondeu o cimério – Um animal que come seres humanos e habita as costas orientais deste mar. Talvez tenha chegado até aqui, agarrado a algum tronco arrastado pela correnteza.
- Será que foi ele quem atirou a pedra? – indagou Olívia.
- Sim. Eu já havia suspeitado, quando estávamos na floresta e vi que os galhos se moviam sobre nossas cabeças. Estes seres sempre se escondem nos bosques mais impenetráveis, e raramente saem deles. Não entendo o que pôde fazê-lo sair de seu refúgio, mas em todo caso foi uma sorte para nós, pois entre as árvores, eu não teria tido a menor possibilidade de vencê-lo.
- Me seguiu até aqui. – disse a garota, tremendo – Eu o vi subir os rochedos.
- E, seguindo seus instintos, escondeu-se nas sombras, ao invés de lhe seguir através da chapada. Estas criaturas das trevas vivem em lugares silenciosos e odeiam a luz do sol e da lua.
- Crê que haja outros por aqui?
- Não acredito. Do contrário, os piratas teriam sido atacados quando atravessaram o bosque. O macaco cinza é muito cauteloso, apesar de sua força colossal, como demonstra o fato de que não tenha decidido nos atacar na floresta. Deve ter se sentido terrivelmente atraído por você, para seguir-lhe até um lugar aberto. Mas...
Conan sobressaltou-se e girou em círculo, para olhar para o local de onde vieram. Um grito pavoroso cortou o ar da noite. Vinha das ruínas.
Logo, seguiu-se uma série de berros, gritos e lamentos de agonia. Embora se ouvisse o choque do aço, os sons pareciam derivar mais de um massacre que de uma batalha.
Conan ficou atônito, com a moça em pânico abraçada a ele. O clamor ascendeu numa loucura crescente, e então o cimério deu meia-volta e aproximou-se rapidamente da beirada da chapada, delineada pelas árvores iluminadas pelo luar. As pernas de Olívia tremiam tanto, que ela era incapaz de caminhar, obrigando Conan a levá-la nos braços. A batida agitada de seu coração se acalmou, quando encolheu-se em seus braços acolhedores.
Logo cruzaram a tenebrosa floresta, mas as sombras escuras pareciam agora menos temíveis. Os raios prateados da lua, que se filtravam entre os galhos, não escondiam ameaça alguma. As árvores noturnas murmuravam sonolentas. Os gritos da matança se atenuaram, até transformarem-se numa confusa mistura de sons. Em algum lugar, um papagaio gritou, como um eco misterioso:
- Yagkoolan yok tha, xuthalla!
Pouco depois, chegaram à praia e viram a galera ancorada e com a vela desdobrada. As estrelas começaram a empalidecer diante da chegada do dia.
Sob a pálida luz da aurora, um punhado de figuras esfarrapadas e ensangüentadas avançou cambaleante entre as árvores, até chegar à estreita praia. Eram apenas quarenta e quatro homens, que formavam um grupo amedrontado e desmoralizado. Lançaram-se, ofegantes, à água e começaram a nadar até alcançarem a galera. Então, os desanimados piratas defrontaram-se com um novo contratempo. Destacando-se contra o céu luminoso, viram Conan, o cimério, de pé sobre a proa, com a espada na mão e a negra cabeleira agitando-se ao vento.
- Alto! – ordenou Conan – Não cheguem mais perto, cães!
- Deixe-nos subir a bordo! – suplicou um pirata peludo, apertando o coto sangrento de uma orelha decepada – Queremos ir embora desta ilha endemoniada.
- O primeiro homem que tentar subir pela beirada, eu corto a cabeça. – avisou o cimério.
Eram quarenta e quatro homens contra um, mas Conan tinha tudo a seu favor. A terrível experiência que passaram havia lhes destruído todo impulso combativo.
- Deixe-nos subir ao barco. – choramingou um zamoriano de cinturão vermelho, ao mesmo tempo em que olhava, temeroso, por cima de seu ombro, em direção aos silenciosos bosques – Estamos tão destroçados, feridos e cansados de lutar, que não temos condições de erguer uma espada.
- Onde está o cão do Aratus? – perguntou Conan.
- Morto, como tantos outros! Caíram sobre nós como demônios! Teriam despedaçado a todos nós, se não tivéssemos despertado. Uma dúzia de nossos homens morreu enquanto dormia. As ruínas estavam cheias de sombras, com olhos ardentes, garras e dentes afiados.
- Sim! – interveio outro corsário – Eram os demônios da ilha, que adotaram forma de estátuas para nos enganar. Por Ishtar, que fomos incautos ao dormimos entre eles! Mas não somos covardes e lhes demos luta, com as desvantagens de um mortal que luta contra os poderes das trevas. Logo fugimos e eles ficaram lá, destroçando cadáveres, como se fossem chacais. Mas temos certeza de que nos perseguirão.
- Sim, deixe-nos subir a bordo! – suplicou um shemita magro – Deixe-nos subir por bem, ou empunharemos as espadas, apesar de nosso cansaço, e, mesmo que mate vários de nós, você não poderá com todos.
- Então, farei um buraco no casco e afundarei o barco. – respondeu Conan, com tom lúgubre e ameaçador.
- Não, não! – protestaram em coro – Seremos amigos, Conan. Somos seus camaradas, rapaz, pois somos todos proscritos. Odiamos o rei de Turan, que nem você.
O abatido grupo olhou o cimério, que por sua vez observava-os com a testa franzida.
- Então, se sou um da Irmandade... – disse, com um grunhido – as leis desta se aplicam a mim também. E, posto que matei seu chefe numa luta corpo-a-corpo, sou o capitão de vocês!
Não houve vozes dissidentes. Os piratas estavam esgotados e acovardados demais para pensarem em outra coisa, que não fosse ir embora, o quanto antes, daquela ilha temível. Conan viu, entre os homens, o coríntio, que tinha alguns ferimentos e estava manchado de sangue.
- Você, Ivanos! – disse o cimério – Há pouco, colocou-se a meu lado. Voltaria a fazê-lo?
- Sim, por Mitra! – respondeu o pirata, que desejava consagrar-se com o cimério – Ele tem razão, rapazes! Ele é o nosso capitão, de acordo com a lei da Irmandade!
Ouviu-se um rumor de vozes aprovadoras, talvez não muito entusiastas, mas com uma convicção acentuada pela suspeita de que, atrás deles, poderiam estar seguindo-os os negros seres demoníacos de olhos avermelhados e garras sangrentas.
- Jurem-no de espada na mão. – disse o cimério.
Em direção a ele, ergueram-se quarenta e quatro espadas, e outras tantas vozes pronunciaram o juramento de lealdade dos piratas.
Conan sorriu e, logo após, embainhou a espada, ao mesmo tempo em que lhes dizia:
- Subam a bordo, meus bravos, e peguem os remos.
A seguir, virou-se e levantou Olívia, que havia permanecido oculta atrás da bordo.
- O que será de mim, senhor? – indagou a moça.
- O que deseja fazer? – perguntou Conan, por sua vez, olhando-a fixamente.
- Quero ir contigo, aonde quer que vá! – respondeu Olívia, envolvendo, com seus braços brancos, o pescoço bronzeado do cimério.
- Está disposta a seguir um caminho de sangue e morte? – perguntou ele – Esta galera deixará um rastro vermelho por onde passar.
- Não me importa navegar sobre águas azuis ou vermelhas, se o faço a seu lado. – respondeu ela, em tom apaixonado – Você é um bárbaro e eu, uma pária rechaçada por minha própria gente. Ambos vagamos por um mundo sem rumo fixo. Por favor, leve-me com você!
Lançando uma súbita gargalhada, Conan pegou-a pela cintura e levantou-a até seus lábios ferozes e ardentes, exclamando:
- Lhe transformarei em rainha do mar azul! A seus postos, tigres do mar! Por Crom, que não tardaremos em queimar as largas calças do rei Yildiz!
Tradução: Fernando Neeser de Aragão
Compartilhar