A Hora do Dragão

(por Robert E. Howard)


Originalmente publicado em Weird Tales, dezembro de 1935 a abril de 1936.



A bandeira do Leão oscila e cai na escuridão cheia de horror;
Um Dragão escarlate sussurra por perto, levado sobre ventos de perdição.
Os cavaleiros brilhantes jazem aos montes, onde se quebram as lanças enfiadas,
E, no fundo das montanhas assombradas, os perdidos deuses negros acordam.
Mãos mortas tateiam nas sombras, e estrelas ficam pálidas de medo,
Pois esta é a Hora do Dragão, o triunfo do Medo e da Noite.



1) Ó Adormecido, Acorde!

AS LONGAS VELAS palpitavam, fazendo as sombras negras ondularem ao longo das paredes, e as tapeçarias de veludo se agitavam. Mas não havia vento no compartimento. Quatro homens se erguiam ao redor da mesa de ébano, sobre a qual havia um sarcófago verde, o qual brilhava como jade entalhado. Na erguida mão direita de cada homem, uma estranha vela negra queimava com uma bizarra luz esverdeada. Era noite lá fora, e um vento perdido gemia entre as árvores negras.

Dentro da câmara, havia tenso silêncio e o ondular das sombras, enquanto quatro pares de olhos, brilhando intensamente, estavam fixos na longa caixa verde, ao longo da qual hieróglifos misteriosos se retorciam, como se a luz instável lhes emprestasse vida e movimento. O homem aos pés do sarcófago se curvou sobre o mesmo e moveu sua vela, como se estivesse escrevendo com uma pena, inscrevendo um símbolo místico no ar. Então, ele desceu a vela em seu bastão de ouro negro, ao pé do caixão, e, murmurando alguma fórmula, ininteligível para seus companheiros, ele enfiou uma larga mão branca no robe de pele arrumada. Quando a pôs para fora, era como se ele segurasse, na palma da mão, uma bola de fogo vivo.

Os outros três prenderam rapidamente o fôlego, e o homem moreno e forte, que estava na cabeceira do sarcófago, sussurrou:

- O Coração de Ahriman!

O outro ergueu rapidamente a mão, pedindo silêncio. Em algum lugar, um cão começou a uivar lugubremente, e houve um passo furtivo do lado de fora da porta gradeada e trancada. Mas ninguém desviou o olhar do caixão de múmia, sobre o qual o homem em robe de pele de arminho agora movia a grande jóia flamejante, enquanto murmurava um encanto que já era velho quando a Atlântida afundou. O clarão da jóia lhes ofuscou os olhos, de modo que não puderam ter certeza do que viram; mas, com um estrondo ensurdecedor, a tampa esculpida do sarcófago se abriu violentamente, como se alguma pressão irresistível tivesse sido aplicada do lado de dentro, e os quatro homens, se inclinando ansiosamente para diante, viram o ocupante – uma forma amontoada, definhada e seca, com ressecados membros marrons, semelhantes a madeira podre, aparecendo através de bandagens esfareladas.

- Trazer aquela coisa de volta? – murmurou o pequeno homem moreno que se encontrava à direita, com uma risada curta e sardônica – É capaz de se desintegrar com um toque. Somos tolos...

- Shhh! – Foi um urgente assobio de comando do homem grande que segurava a jóia. Havia suor sobre sua larga testa branca, e seus olhos estavam dilatados. Inclinou-se para a frente e, sem tocar a coisa com a mão, depositou a jóia resplandecente sobre o peito da múmia. Então, ele recuou e observou com intensidade feroz, os lábios se movendo numa inovação silenciosa.

Foi como se um globo de fogo vivo se agarrasse e queimasse no peito morto e definhado. E o ar foi aspirado, num assobio, através dos dentes cerrados dos espectadores. Pois, enquanto assistiam, uma transformação horrível ficou evidente. A forma murcha no sarcófago estava se expandindo, crescendo, se alongando. As bandagens se romperam e tornaram pó marrom. Os membros enrugados se avolumaram e desentortaram. Sua cor parda começou a desbotar.

- Por Mitra! – sussurrou o homem alto e de cabelos amarelos à esquerda – Ele não era um stígio. Essa parte, pelo menos, era verdadeira.

Mais uma vez, um dedo trêmulo advertiu por silêncio. O sabujo, do lado de fora, já não estava mais uivando. Ele choramingava, como se por causa de um sonho mau, e logo aquele som também se apagava em silêncio, no qual o homem loiro ouviu claramente o esticar da porta pesada, como se alguma coisa lá fora a empurrasse fortemente. Ele meio se virou, com a mão na espada, mas o homem em túnica de arminho sibilou um aviso urgente:

- Espere! Não quebre a corrente. E, pela sua vida, não vá até a porta!

O homem de cabelos amarelos se estremeceu e voltou, e logo parou bruscamente, arregalando os olhos. No sarcófago de jade, jazia um homem vivo: um homem alto, robusto, de pele clara, com cabelos e barba escuros. Estava imóvel, seus olhos bem abertos – tão vazios e ignorantes quanto os de um bebê recém-nascido. Em seu peito, a grande jóia ardia e faiscava.

O homem em arminho cambaleou, como se caído devido à extrema tensão.

- Ishtar! – ele arfou – É Xaltotun! E ele está vivo! Valerius! Tarascus! Amalric! Estão vendo? Estão vendo? Vocês duvidaram de mim... mas eu não falhei! Estivemos próximos dos portões abertos do inferno esta noite, e as figuras da escuridão se aglomeraram bem próximas ao nosso redor... sim, elas o seguiram até a própria porta... mas nós trouxemos o grande feiticeiro de volta à vida.

- E, sem dúvida, nos condenou eternamente aos purgatórios. – murmurou o pequeno homem moreno, chamado Tarascus.

O homem loiro, Valerius, riu asperamente:

- Qual purgatório pode ser pior do que a própria vida? Assim, estamos todos condenados juntos desde o nascimento. Além disso, quem não venderia sua alma miserável por um trono?

- Não há inteligência no olhar dele, Orastes. – disse o homem grande.

- Ele esteve morto durante muito tempo. – respondeu Orastes – Ele está como alguém recém-desperto. Sua mente está vazia, após o longo sono... não, ele estava morto, e não dormindo. Nós trouxemos seu espírito de volta, sobre os vácuos e golfos da noite e do esquecimento. Falarei com ele.

Ele se inclinou ao pé do sarcófago e, fixando o olhar nos grandes olhos negros do homem ali dentro, falou lentamente:

- Acorde, Xaltotun!

Os lábios do homem se moveram mecanicamente.

- Xaltotun! – ele repetiu, num sussurro à cegas.

- Você é Xaltotun! – exclamou Orastes, como um hipnotizador fazendo valer suas sugestões – Você é Xaltotun de Python, em Acheron.

Uma chama indistinta palpitou nos olhos escuros.

- Eu era Xaltotun. – ele sussurrou – Estou morto.

- Você é Xaltotun! – gritou Orastes – Você não está morto! Está vivo!

- Eu sou Xaltotun. – veio o sussurro estranho – Mas estou morto. Na minha casa, em Khemi, na Stygia; eu morri lá.

- E os sacerdotes que lhe envenenaram mumificaram seu corpo com suas artes negras, mantendo todos os seus órgãos intactos! – exclamou Orastes – Mas agora, você vive novamente! O Coração de Ahriman restaurou sua vida, e puxou seu espírito de volta do espaço e da eternidade.

- O Coração de Ahriman! – A chama da memória ficou mais forte – Os bárbaros o roubaram de mim!

- Ele se lembra. – murmurou Orastes – Levantem-no do caixão.

Os outros obedeceram, hesitantes, como se relutantes em tocarem no homem que haviam recriado, e suas mentes não pareciam muito sossegadas quando eles lhe sentiram a firme carne musculosa, vibrante de sangue e vida, sob seus dedos. Mas eles o ergueram sobre a mesa, e Orastes o vestiu com uma curiosa toga de veludo escuro, salpicada de estrelas douradas e luas crescentes, e lhe firmou uma faixa de tecido dourado ao redor de suas têmporas, prendendo as negras madeixas onduladas que lhe caíam até os ombros. Ele os deixou fazer como quisessem, sem dizer nada, nem mesmo quando o sentaram numa cadeira entalhada, em forma de trono, com um alto encosto de ébano, largos braços de prata e pés que pareciam garras douradas. Ele ficou lá, imóvel, e lentamente a inteligência cresceu em seus olhos escuros e os tornou estranhos e luminosos. Era como se luzes de magia negra, há muito submersas, flutuassem lentamente, vindas de poços de escuridão à meia-noite.

Orastes olhou furtivamente para seus companheiros, que olhavam fixamente, em fascinação mórbida, para seu estranho convidado. Seus nervos de ferro haviam suportado uma provação capaz de enlouquecer homens mais fracos. Ele sabia que não havia conspirado ao lado de pessoas fracas, mas de homens cuja coragem era tão profunda quanto suas ambições ilegais e capacidade para o mal. Ele voltou sua atenção para a figura na cadeira preta de ébano.

- Eu me lembro. – ele disse numa voz forte e ressonante, falando o Nemédio com um sotaque estranho e arcaico – Eu sou Xaltotun, que era um alto sacerdote de Set em Python, a qual ficava em Acheron. O Coração de Ahriman... Eu sonhei que o havia reencontrado... onde ele está?

Orastes o colocou em sua mão, e ele inspirou profundamente, enquanto olhava para as profundezas da terrível jóia que ardia em seu domínio.

- Eles o roubaram de mim, há muito tempo. – ele disse – Ele é o coração vermelho da noite, forte para salvar ou condenar. Ele veio de longe, e de muito tempo atrás. Enquanto eu o possuí, ninguém era capaz de se opor a mim. Mas ele me foi roubado, Acheron caiu e eu fugi para me exilar na sombria Stygia. Lembro-me de muita coisa, mas de muita coisa eu havia esquecido. Estive numa terra distante, através de vácuos nebulosos, golfos e oceanos sem luz. Que ano é este?

Orastes o respondeu:

- Este é o final do Ano do Leão, 3000 anos após a queda de Acheron.

- Três mil anos! – murmurou o outro – Tanto tempo? Quem são vocês?

- Sou Orastes, outrora um sacerdote de Mitra. Este homem é Amalric, barão de Tor, na Nemédia; este outro é Tarascus, irmão mais velho do rei da Nemédia; e este homem alto é Valerius, herdeiro legítimo do trono da Aquilônia.

- Por que me deram a vida? – indagou Xaltotun – O que exigem de mim?

O homem agora estava completamente vivo e acordado, seus olhos agudos refletindo o trabalho de um cérebro límpido. Não havia hesitação ou incerteza em seus modos. Ele foi direto ao ponto, como alguém que sabe que nenhum homem dá alguma coisa em troca de nada. Orastes lhe respondeu com a mesma franqueza:

- Nós abrimos as portas do inferno esta noite, para libertarmos sua alma e trazê-la de volta ao seu corpo, porque precisamos de sua ajuda. Desejamos pôr Tarascus no trono da Nemédia, e obtermos a coroa da Aquilônia para Valerius. Com sua necromancia, você pode nos ajudar.

O pensamento de Xaltotun estava errante e cheio de pontos de vista inesperados.

- Você deve ser perspicaz em suas artes, Orastes, para ter tido a capacidade de restaurar minha vida. Como pode um sacerdote de Mitra saber do Coração de Ahriman e dos encantamentos de Skelos?

- Não sou mais um sacerdote de Mitra. – respondeu Orastes – Fui expulso de minha ordem, por causa de minhas pesquisas sobre magia negra. Se não fosse por Amalric ali, eu teria sido queimado como bruxo.

“Mas aquilo me deixou livre para me dedicar aos meus estudos. Viajei por Zamora, Stygia e por entre as selvas assombradas de Khitai. Li os livros, encadernados a ferro, de Skelos, e conversei com criaturas invisíveis em poços profundos e com vultos sem rosto em negras selvas malcheirosas. Obtive um vislumbre de seu sarcófago, nas criptas assombradas por demônios, sob o negro templo, de muros gigantescos, de Set, no interior da Stygia, e aprendi as artes que trariam a vida de volta ao seu cadáver enrugado. Através de manuscritos amassados, eu soube do Coração de Ahriman. Então, durante um ano, procurei seu esconderijo e finalmente o achei”.

- Então, por que se preocupou em me trazer de volta à vida? – indagou Xaltotun, com o olhar penetrante fixo no sacerdote – Por que você não empregou o Coração de Ahriman para favorecer seu próprio poder?

- Porque nenhum homem hoje conhece os segredos do Coração. – respondeu Orastes – As artes para libertar completamente seus poderes não existem sequer em lendas. Eu sabia que ele poderia restaurar a vida; mas, de seus segredos mais profundos, eu sou ignorante. Eu o usei meramente para lhe trazer de volta à vida. É o uso do seu conhecimento que procuramos. Quanto ao Coração, só você conhece seus segredos terríveis.

Xaltotun sacudiu a cabeça, mirando pensativo as profundezas flamejantes.

- Meu conhecimento de feitiçaria é maior que a soma de todo o conhecimento de outros homens – ele disse –; mas não conheço todo o poder da jóia. Eu não invoquei nos velhos dias; eu a guardei, para que não fosse usada contra mim. Por fim, foi roubada e, nas mãos de um xamã emplumado dos bárbaros, ela derrotou toda a minha poderosa feitiçaria. Então, ela desapareceu, e eu fui envenenado pelos sacerdotes invejosos da Stygia, antes que pudesse saber onde estava escondida.

- Estava escondida numa caverna sob o templo de Mitra, em Tarantia. – disse Orastes – Descobri isto por meios indiretos, após ter localizado seus restos no templo subterrâneo de Set, na Stygia.

“Ladrões zamorianos, parcialmente protegidos por encantamentos que aprendi de fontes que é melhor nem mencionar, roubaram seu caixão de sob as próprias garras daqueles que o guardavam na escuridão e, através de caravana de camelos, galé e carro de boi, ele finalmente chegou a esta cidade.

“Aqueles mesmos ladrões... ou melhor, aqueles que ainda viviam após sua terrível busca... roubaram o Coração de Ahriman de sua caverna assombrada sob o templo de Mitra, e toda a habilidade dos homens e os encantamentos dos feiticeiros quase falharam. Um daqueles homens viveu o suficiente para me alcançar e entregar a jóia em minhas mãos, antes que morresse, falando penosa e confusamente sobre o que tinha visto naquela cripta amaldiçoada. Os ladrões de Zamora são os homens mais confiáveis em seus trabalhos. Mesmo com minhas invocações, ninguém além deles conseguiria roubar o Coração de onde ele jazia, numa escuridão guardada por demônios desde a queda de Acheron, há 3000 anos”.

Xaltotun ergueu sua cabeça leonina e fixou o olhar para longe, no espaço, como que sondando os séculos perdidos.

- Três mil anos! – ele murmurou – Por Set! Diga-me o que mudou no mundo.

- Os bárbaros que destruíram Acheron construíram novos reinos. – disse Orastes – Onde outrora se estendia o império, agora se ergueram reinos, chamados Aquilônia, Nemédia e Argos, das tribos que os fundaram. Os reinos mais antigos, de Ophir, Corinthia e Koth ocidental, que estiveram sujeitos aos reis de Acheron, recuperaram sua independência com a queda do império.

- E quanto ao povo de Acheron? – interrogou Xaltotun – Quando fugi para a Stygia, Python estava em ruínas, e todas as grandes cidades, de torres púrpuras, de Acheron estavam sujas de sangue e pisadas pelas sandálias dos bárbaros.

- Nas colinas, pequenos grupos de pessoas ainda se orgulham de descenderem de Acheron. – respondeu Orastes – Quanto ao restante, a maré dos meus ancestrais bárbaros rolou sobre eles e os apagou. Eles... meus ancestrais... haviam sofrido muito sob os reis de Acheron.

Um sorriso sombrio e terrível curvou os lábios do pythoniano.

- Sim! Muitos bárbaros, tanto homens quanto mulheres, morreram gritando no altar, sob esta mão. Já vi suas cabeças empilhadas para formarem uma pirâmide, na grande praça de Python, quando os reis voltavam do oeste com seu espólio e escravos nus.

- Sim. E, quando chegou o dia do acerto de contas, a espada não foi poupada. Assim, Acheron deixou de existir, e Python das torres púrpuras se tornou uma lembrança de dias esquecidos. Mas os reinos mais jovens se ergueram sobre as ruínas imperiais, e cresceram grandemente. E agora, lhe trouxemos de volta para nos ajudar a governar esses reinos, os quais, embora menos estranhos e maravilhosos que a velha Acheron, ainda são ricos e poderosos, e dignos de se lutar por eles. Veja!

Orastes desenrolou, diante do estranho, um mapa habilmente desenhado em pergaminho.

Xaltotun o olhou, e então sacudiu a cabeça, perplexo.

- Os próprios contornos da terra estão mudados. É como algo familiar visto num sonho, fantasticamente distorcido.

- Seja como for – respondeu Orastes, apontando com o dedo indicador –, esta é Belverus, a capital da Nemédia, na qual estamos agora. Aqui correm as fronteiras da terra da Nemédia. Ao sul e sudeste, estão Ophir e Corinthia; a leste, a Britúnia, e a oeste, a Aquilônia.

- É o mapa de um mundo que não conheço. – disse Xaltotun suavemente, mas Orastes não deixou de perceber o fogo sinistro de ódio que palpitou naqueles olhos escuros.

- É um mapa que você nos ajudará a mudar. – respondeu Orastes – Nosso desejo é colocar Tarascus no trono da Nemédia. Gostaríamos de realizar isto sem luta, e de uma forma que não deixe cair suspeita sobre Tarascus. Não desejamos que a terra seja dividida por guerras civis, e sim reservar todo nosso poder para a conquista da Aquilônia.

“Se o Rei Nimed e seus filhos morrerem naturalmente, de uma epidemia por exemplo, Tarascus assumirá o trono como o próximo herdeiro, pacificamente e sem oposição”.

Xaltotun acenou com a cabeça, sem responder, e Orastes continuou:

- A outra tarefa será mais difícil. Não podemos pôr Valerius no trono aquiloniano sem uma guerra, e aquele reino é um inimigo formidável. Seu povo é uma raça vigorosa e guerreira, enrijecida por guerras contínuas com os pictos, zíngaros e cimérios. Por 500 anos, Aquilônia e Nemédia têm guerreado intermitentemente, e a vantagem final sempre ficou com os aquilonianos.

“Seu rei atual é o guerreiro mais ilustre entre as nações ocidentais. Ele é um estrangeiro, um aventureiro que se apoderou da coroa à força, durante uma época de guerra civil, estrangulando o Rei Namedides com suas próprias mãos, sobre o próprio trono. Seu nome é Conan, e nenhum homem é capaz de resistir a ele em batalha.

“Valerius é hoje o herdeiro legítimo do trono. Ele fora mandado para o exílio por seu parente da realeza, Namedides, e ficou longe de seu reino nativo durante anos, mas ele é do sangue da velha dinastia, e muitos barões dariam boas-vindas à derrota de Conan, que é um ninguém, sem sangue real e nem sequer sangue nobre. Mas as pessoas comuns são leais a ele, assim como a nobreza das províncias distantes. Mas, se as forças dele forem derrotadas na batalha que deve acontecer primeiro, e o próprio Conan for morto, acho que não seria difícil pôr Valerius no trono. De fato, com Conan morto, o único centro de governo desapareceria. Ele não é parte de uma dinastia, mas apenas um aventureiro solitário”.

- Eu gostaria de poder ver este rei. – refletiu Xaltotun, olhando em direção a um espelho de prata, o qual formava um dos enfeites da parede. Este espelho não tinha reflexo, mas a expressão de Xaltotun mostrava que ele entendia o propósito do mesmo; e Orastes acenou com a cabeça, com o orgulho que um artífice sente diante do reconhecimento de seu talento por parte de um mestre de seu ofício.

- Tentarei mostrá-lo para você. – ele disse. E, se sentando diante do espelho, olhou hipnoticamente para suas profundezas, onde logo depois uma vaga sombra começou a tomar forma.

Era estranho, mas aqueles que assistiam sabiam que não era mais que o reflexo da imagem do pensamento de Orastes, corporificado naquele espelho, como os de um mago num cristal mágico. Flutuou vagamente, e logo adquiriu, de forma brusca, uma surpreendente clareza: um homem alto, de ombros poderosos e peito profundo, com um sólido pescoço musculoso e ombros densamente musculosos. Estava vestido em seda e veludo, com os leões reais da Aquilônia bordados a ouro sobre a rica jaqueta, e a coroa da Aquilônia brilhava em sua negra cabeleira de corte reto; mas a grande espada ao seu lado lhe parecia mais natural que suas vestimentas reais. Sua testa era baixa e larga, e seus olhos de um azul vulcânico que ardia como se com algum fogo interno. Seu rosto moreno, cicatrizado e quase sinistro era o de um guerreiro, e sua roupa de veludo não conseguia esconder as linhas firmes e perigosas de seus membros.

- Esse homem não é hiboriano! – exclamou Xaltotun.

- Não; ele é um cimério, um daqueles selvagens homens tribais, que vivem nas colinas cinzentas do norte.

- Lutei contra seus ancestrais há muito tempo. – murmurou Xaltotun – Nem mesmo os reis de Acheron conseguiram conquistá-los.

- Eles ainda são um terror para as nações do sul. – respondeu Orastes – É um verdadeiro filho daquela raça selvagem, e ele próprio provou ser, deste modo, inconquistável.

Xaltotun não respondeu; ele ficou olhando para dentro do poço de fogo vivo que tremeluzia em sua mão. Do lado de fora, o cão de caça uivou novamente, de forma longa e estremecedora.


2) Sopra um Vento Negro

O ANO DO DRAGÃO nasceu em guerra, pestilência e agitação. A praga negra caminhou pelas ruas de Belverus, derrubando o mercador em seu estábulo, o escravo em seu canil e o cavaleiro em sua mesa de banquete. Diante dela, as habilidades dos sanguessugas foram ineficazes. Os homens disseram que ela havia sido mandada do inferno, como punição para os pecados do orgulho e da luxúria. Era tão rápida e mortífera quanto o ataque de uma víbora. O corpo da vítima ficava púrpura e, logo depois, negro e, em poucos minutos, ela caía moribunda, e o cheiro de putrefação já lhe estava nas próprias narinas, antes mesmo que a morte lhe arrancasse a alma de seu corpo apodrecido. Um vento quente e urrante soprava incessantemente do sul, a colheita murchava nos campos, e o gado caía e morria em suas estradas.

Homens clamavam por Mitra e murmuravam contra o rei; pois, de alguma forma, era sussurrada, por todo o reino, a notícia de que o rei se dedicava secretamente a práticas repugnantes e orgias sórdidas na solidão de seu palácio à noite. E logo, naquele palácio, a morte caminhou, com um sorriso largo e a pé, sobre aquilo que fazia remoinhar os vapores monstruosos da praga. Numa noite, o rei morreu com seus três filhos, e os tambores, que lhes ribombavam o canto fúnebre, abafaram os sinos sombrios e agourentos que tocavam das carroças, as quais se moviam pesadamente pelas ruas, recolhendo os mortos podres.

Naquela noite, logo antes do amanhecer, o vento quente, que havia soprado durante semanas, parou de sussurrar perversamente pelas janelas de cortinas de seda. Do norte, se ergueu um grande vento, que rugiu por entre as torres, e houve trovão cataclísmico, relâmpagos cegantes e chuva torrencial. Mas a aurora brilhou limpa, verde e clara; o solo chamuscado se cobriu de capim, as frutas e cereais sedentos se ergueram novamente, e a praga se foi – seu miasma foi varrido da terra pelo forte vento.

Disseram que os deuses estavam satisfeitos, porque o rei maligno e seus filhos foram mortos, e, quando seu irmão mais jovem, Tarascus, foi coroado no grande salão de coroação, a população deu vivas até as torres estremecerem, aclamando o monarca para quem os deuses sorriram.

Tal onda de entusiasmo e júbilo, a varrer a terra, é freqüentemente o sinal para uma guerra de conquista. Assim, ninguém ficou surpreso quando foi anunciado que o Rei Tarascus havia declarado vazia a trégua, feita pelo último rei com seus vizinhos ocidentais, e estava reunindo suas hostes para invadir a Aquilônia. Sua razão era imparcial; seus motivos, proclamados em voz alta, dourando suas ações com algo do deslumbramento de uma cruzada. Ele expôs a causa de Valerius, “herdeiro legítimo do trono”; ele veio – proclamou –, não como um inimigo da Aquilônia, mas como um amigo, para libertar o povo da tirania de um usurpador e um estrangeiro.

Se houve sorrisos cínicos em certos locais, e sussurros a respeito do bom amigo do rei, Amalric, cuja vasta riqueza pessoal parecia estar fluindo para o esvaziado tesouro real, isso passou despercebido dentro da onda geral de fervor e entusiasmo da popularidade de Tarascus. Se alguns indivíduos perspicazes suspeitaram que Amalric era o verdadeiro governante da Nemédia, por trás de Tarascus, eles foram cuidadosos o suficiente para não enunciarem tal heresia. E a guerra foi adiante, com entusiasmo.

O rei e seus aliados se moveram para oeste, à frente de 50 mil homens: cavaleiros em armaduras brilhantes, com suas flâmulas ondulando acima de seus elmos; piqueiros em capas de aço e brigantinas, e atiradores de balestras, usando gibões de couro. Eles cruzaram a fronteira, tomaram um castelo ali, queimaram três aldeias das montanhas e então, no vale do Valkia, 16 km a oeste da linha fronteiriça, eles encontraram as hostes de Conan, rei da Aquilônia: 44 mil cavaleiros, arqueiros e soldados de cavalaria fortemente armados – a nata da força e cavalaria aquiloniana. Apenas os cavaleiros de Poitain, sob o comando de Prospero, ainda não haviam chegado, pois ainda tinham muito que cavalgarem desde o canto sudoeste do reino. Tarascus havia atacado sem aviso. Sua invasão havia chegado nos calcanhares de sua proclamação, sem declaração formal de guerra.

As duas hostes confrontaram uma à outra através de um vale largo e raso, com penhascos ásperos e um rio raso, serpenteando por grandes quantidades de juncos e salgueiros, pelo meio do vale. Os acompanhantes civis de ambos os exércitos desceram até o riacho, em busca de água, gritando insultos e lançando pedras uns aos outros. Os últimos lampejos do sol brilhavam na bandeira dourada da Nemédia, com seu dragão escarlate, desdobrada ao sabor da brisa, sobre a barraca do Rei Tarascus, numa elevação próxima aos penhascos orientais. Mas a sombra dos penhascos ocidentais caía como uma vasta mortalha vermelha sobre as tendas e exército da Aquilônia, e sobre a bandeira negra com seu leão dourado, que pairava sobre a tenda do Rei Conan.

Por toda a noite, as fogueiras brilharam pela extensão do vale, e o vento trazia o chamado das trombetas, o clangor das armas e os agudos pedidos de senhas às sentinelas, que percorriam a cavalo ambas as margens do riacho cheio de salgueiros.

Foi na escuridão antes do amanhecer, que o Rei Conan se moveu agitadamente em seu leito, que não era mais do que uma pilha de sedas e peles, lançadas sobre um estrado, e acordou. Ele se ergueu, com um grito agudo e agarrando a espada. Seu comandante, Pallantides, correndo em direção ao grito, viu o rei sentado e ereto, com a mão no cabo da espada e o suor lhe pingando do rosto estranhamente pálido.

- Majestade! – exclamou Pallantides – Há algo errado?

- Como está o acampamento? – indagou Conan – Os guardas estão lá fora?

- Quinhentos homens vigiam o riacho, Majestade. – respondeu o general – Os nemédios não tentaram se mover contra nós na noite. Eles esperam o amanhecer, assim como nós.

- Por Crom. – murmurou Conan – Acordei com a sensação de que a ruína estava rastejando sobre mim na noite.

Ele ergueu o olhar para o grande lampião dourado, que derramava um brilho suave sobre as cortinas e tapetes de veludo da grande tenda. Estavam sós; nem mesmo um escravo ou pajem dormia no chão atapetado; mas os olhos de Conan resplandeciam, como estavam acostumados a resplandecer nas presas de um grande perigo, e a espada lhe vibrava na mão. Pallantides o observava, inquieto. Conan parecia estar escutando algo.

- Ouça! – sibilou o rei – Você ouviu? Um passo furtivo!

- Sete cavaleiros guardam sua tenda, Majestade. – disse Pallantides – Ninguém conseguiria se aproximar dela, sem chamar a atenção.

- Não vindo de fora. – rosnou Conan – Parecia soar dentro da tenda.

Pallantides deu uma olhada rápida e sobressaltada ao redor. As cortinas de veludo se misturavam às sombras nos cantos, mas, se houvesse mais alguém na barraca além deles, o general teria visto. Mais uma vez, ele sacudiu a cabeça:

- Não há ninguém aqui, com certeza. Você está dormindo em meio ao seu exército.

- Já vi a morte atacar um rei no meio de milhares. – murmurou Conan – Algo que caminha sobre pés invisíveis e não é visto...

- Talvez você estivesse sonhando, Majestade. – disse Pallantides, um tanto perturbado.

- Eu estava. – grunhiu Conan – E era um sonho demoníaco. Caminhei novamente pelas longas e cansativas estradas, nas quais viajei em meu caminho para a realeza.

Ele ficou em silêncio, e Pallantides olhou calado para ele. O rei era um enigma para o general, assim como para muitos de seus súditos civilizados. Pallantides sabia que Conan havia andado por muitas estradas estranhas, em sua vida selvagem e agitada, e que ele havia sido muitas coisas, antes que um capricho do Destino o colocasse no trono da Aquilônia.

- Eu vi novamente o campo de batalha onde nasci. – disse Conan, descansando, de forma taciturna, o queixo sobre o punho sólido – Eu me vi novamente usando uma tanga de pele, e atirando minha lança nas feras das montanhas. Fui um espadachim mercenário novamente; um hetman dos kozakis, que moram ao longo do Rio Zaporoska; um corsário, saqueando a costa de Kush, um pirata das Ilhas Barachas e um chefe dos himelianos das colinas.

“Mas, através de meus sonhos, se moviam figuras estranhas e veladas, e sombras fantasmagóricas; e uma voz distante zombava de mim. E, perto desta última, eu parecia ver a mim mesmo, deitado neste estrado em minha tenda, e uma figura se curvava sobre mim, usando um manto e um capuz. Eu estava deitado, incapaz de me mover, e então o capuz caiu, e uma caveira esfarelada sorriu para mim. Logo acordei”.

- Isto é um pesadelo, Majestade. – disse Pallantides, reprimindo um tremor – E nada mais.

Conan sacudiu a cabeça, mais em dúvida que em negação. Ele vinha de uma raça bárbara, e as superstições e instintos de sua herança se escondiam logo abaixo da superfície de sua consciência.

- Já tive muitos pesadelos – ele disse –, e muitos deles não tinha significado. Mas, por Crom, este não era como a maioria dos sonhos! Desejo que esta batalha seja lutada e vencida, pois tenho tido uma premonição medonha desde que o Rei Nimed morreu da praga negra. Por que ela cessou quando ele morreu?

- Os homens dizem que ele pecava...

- Os homens são sempre idiotas. – grunhiu Conan – Se a praga atacasse todos os que pecaram, então, por Crom, não sobraria o suficiente para contar os vivos! Por que iriam os deuses... os quais os sacerdotes me dizem serem justos... matar 500 camponeses, mercadores e nobres, antes de matarem o rei, se toda a peste era dirigida para ele? Estariam os deuses golpeando cegamente, como espadachins num nevoeiro? Por Mitra, se eu não dirigisse meus golpes corretamente, a Aquilônia teria tido um novo rei há muito tempo.

“Não! A praga negra não é uma peste comum. Ela se oculta em tumbas stígias, e só é trazida à vida por feiticeiros. Eu era um espadachim no exército do Príncipe Almuric, que invadiu a Stygia; e, de seus 30 mil, 15 mil foram mortos por flechas stígias, e o restante, pela praga negra que rolou sobre nós como um vento vindo do sul. Fui o único homem que escapou vivo”.

- Mas só 500 morreram na Nemédia. – argumentou Pallantides.

- Quem quer que a tenha chamado, sabia como interrompê-la à vontade. – respondeu Conan – Desse modo, sei que havia algo planejado e diabólico ao redor dela. Alguém a conjurou, alguém a baniu quando o trabalho estava completo... quando Tarascus estava seguro no trono, e sendo saudado como aquele que libertou o povo da ira dos deuses. Por Crom, eu sinto um cérebro negro e astuto por trás de tudo isto. E quando a este estranho, o qual dizem dar conselhos a Tarascus?

- Ele usa um véu – respondeu Pallantides –; dizem que é um estrangeiro, um forasteiro vindo da Stygia.

- Um forasteiro vindo da Stygia! – repetiu Conan, franzindo a testa – Um forasteiro vindo do inferno, é mais provável... Hã! O que é isso?

- As trombetas dos nemédios! – exclamou Pallantides – E ouça como as nossas trombetas tocam sobre os calcanhares deles! A aurora está irrompendo, e os capitães estão enfileirando os exércitos para o ataque! Mitra esteja com eles, pois muitos não verão o sol se pôr atrás dos penhascos.

- Mande meus escudeiros para mim! – exclamou Conan, se levantando alegremente e tirando suas roupas de dormir; ele parecia ter esquecido seus pressentimentos diante da perspectiva de ação – Dirija-se aos capitães e veja se todos estão prontos. Estarei com você, assim que eu vestir minha armadura.

Muitas das maneiras de Conan eram inexplicáveis para o povo civilizado ao qual ele governava, e uma delas era sua insistência em dormir sozinho no seu quarto ou tenda. Pallantides saiu apressadamente da tenda, fazendo retinir a armadura que vestira à meia-noite, após poucas horas de sono. Ele olhou rapidamente para o acampamento, o qual começava a fervilhar em atividade, com malhas metálicas tinindo e homens se movendo quase vagamente na luz precária, por entre as longas fileiras de tendas. As estrelas ainda brilhavam fracamente na parte ocidental do céu, mas longas flâmulas rosas se estendiam ao longo do horizonte leste e, destacada contra elas, a bandeira do dragão da Nemédia desdobrava suas encapeladas pregas de seda.

Pallantides se dirigiu a uma tenda menor, perto dali, onde dormiam os escudeiros reais. Estes já estavam tombando para fora, acordados pelas trombetas. E, quando Pallantides lhes gritava para se apressarem, ele ficou mudo e congelado por um intenso grito feroz e pelo impacto de um golpe pesado, dentro da tenda do rei, seguido pelo estrondo, de parar o coração, da queda de um corpo. Lá, soou uma risada baixa que transformou o sangue do general em gelo.

Ecoando o grito, Pallantides girou e correu de volta à tenda. Ele gritou novamente, ao ver a figura poderosa de Conan estirada no tapete. A grande espada, de cabo longo, do rei jazia próxima à sua mão, e uma estaca despedaçada da tenda parecia mostrar onde sua espada havia caído. Pallantides desembainhou a própria espada, e olhou ferozmente ao redor da tenda, mas nada viu. Exceto pelo rei e ele mesmo, ela estava vazia, como havia estado quando ele a deixou.

- Majestade! – Pallantides lançou-se sobre o próprio joelho, ao lado do gigante caído.

Os olhos de Conan estavam abertos; resplandeciam para ele em total inteligência e conhecimento. Seus lábios se torciam, mas não saía nenhum som. Ele parecia incapaz de se mexer.

Vozes soavam lá fora. Pallantides se ergueu rapidamente e caminhou até a porta. Os escudeiros reais, e um dos cavaleiros que guardavam a tenda, estavam ali.

- Ouvimos um barulho aí dentro. – disse o cavaleiro, com ar de quem pede desculpas – Está tudo bem com o rei?

Pallantides o olhou de forma indagadora:

- Ninguém entrou ou saiu da tenda real esta noite?

- Ninguém, exceto você mesmo, milorde. – respondeu o cavaleiro, e Pallantides não pôde duvidar de sua honestidade.

- O rei tropeçou e deixou a espada cair. – disse brevemente Pallantides – Retorne ao seu posto.

Enquanto o cavaleiro se afastava, o general disfarçadamente gesticulou para os cinco escudeiros reais e, quando estes o seguiram, ele puxou firmemente a cortina que fechava a entrada. Eles ficaram pálidos ao verem o rei estendido sobre o tapete, mas um rápido gesto de Pallantides lhes interrompeu as exclamações.

O general se curvou sobre ele novamente e, mais uma vez, Conan se esforçou para falar. As veias em suas têmporas e os tendões em seu pescoço inchavam com seus esforços, e ele levantou completamente a cabeça do chão. Finalmente, a voz chegou, murmurante e meio inteligível:

- A coisa... a coisa no canto!

Pallantides ergueu a cabeça e olhou temeroso ao redor. Ele viu os rostos pálidos dos escudeiros à luz do lampião e as sombras de veludo que se ocultavam ao longo das paredes da tenda. Era tudo.

- Não há nada aqui, Majestade. – disse ele.

- Estava ali, no canto. – murmurou o rei, lançando sua cabeça com juba leonina de um lado a outro, em seus esforços para se levantar – Um homem... pelo menos, parecia um homem... envolto em farrapos semelhantes a bandagens de múmia, com um manto esfarelado ao redor dele, e um capuz. Tudo que pude ver foram seus olhos, enquanto ele se agachava ali, nas sombras. Pensei que ele próprio fosse uma sombra, até ver seus olhos. Eram como jóias negras.

“Fui até ele e brandi minha espada, mas errei completamente o alvo... só Crom sabe como... e só cortei aquela estaca. Ele agarrou meu punho quando perdi o equilíbrio, e meus dedos queimaram como ferro quente. Toda a força me escapou, e o chão se ergueu e me golpeou como um porrete. Então, ele foi embora, fiquei caído e... maldito seja ele!... não consigo me mover! Estou paralisado!”.

Pallantides levantou a mão do gigante, e sua pele se arrepiou. No punho do rei, apareciam as marcas azuis de longos dedos finos. Qual mão poderia agarrar tão forte, a ponto de deixar sua marca naquele punho grosso? Pallantides se lembrou daquela risada baixa, que ouvira enquanto corria para dentro da tenda, e o suor frio lhe brotou da pele. Não havia sido Conan quem rira.

- Isto é uma coisa diabólica! – sussurrou um escudeiro trêmulo – Dizem que os filhos das trevas lutam por Tarascus!

- Silêncio! – ordenou severamente Pallantides.

Lá fora, o amanhecer obscurecia as estrelas. Um vento leve se erguia dos picos, e trazia uma fanfarra de mil trombetas. Diante daquele som, um tremor convulsivo percorreu a estrutura poderosa do rei. Mais uma vez, as veias em suas têmporas se emaranharam, quando ele se esforçou para quebrar os grilhões invisíveis que o esmagavam.

- Ponham minha armadura e me amarrem à sela. – ele sussurrou – Ainda vou liderar o ataque!

Pallantides sacudiu a cabeça, e um escudeiro lhe puxou uma aba da roupa.

- Milorde, estaremos perdidos se os exércitos souberem que o rei foi derrubado! Somente ele pode nos liderar à vitória hoje.

- Ajudem-me a erguê-lo sobre o estrado. – respondeu o general.

Eles obedeceram, colocaram o gigante indefeso sobre as peles, e puseram um manto de seda sobre ele. Pallantides se voltou para os cinco escudeiros e lhes examinou os rostos pálidos, bem antes de falar.

- Nossos lábios devem estar selados para sempre, sobre o que está acontecendo nesta tenda. – ele finalmente disse – O reino da Aquilônia depende disto. Um de vocês, vá e me traga o oficial Valannus, que é um capitão dos lanceiros pellianos.

O escudeiro indicado se curvou numa reverência e apressou-se para fora da tenda, e Pallantides ficou olhando para o rei caído, enquanto, do lado de fora, trombetas estrondeavam, tambores ribombavam, e o rugido das multidões se erguia na aurora crescente. Logo, o escudeiro retornou com o oficial a quem Pallantides havia mencionado – um homem alto, largo e poderoso, com constituição muito semelhante à do rei. Assim como este, ele também tinha abundantes cabelos negros. Mas seus olhos eram cinzas, e ele não tinha as feições semelhantes às de Conan.

- O rei foi atacado por uma estranha doença. – disse brevemente Pallantides – Você terá uma grande honra; vestirá a armadura dele e cavalgará à frente do exército hoje. Ninguém deve saber que não é o rei quem cavalga.

- É uma honra pela qual um homem daria alegremente a vida. – gaguejou o capitão, dominado pela sugestão – Mitra permita que eu não falhe nesta grande responsabilidade!

E, enquanto o rei caído mirava fixamente, com olhos ardentes que refletiam a amarga humilhação e fúria que lhe comiam o coração, os escudeiros despiram a cota-de-malha de Valannus, assim como o capacete e proteções para as pernas, e o vestiram com a armadura de Conan, de malha com placas pretas, com o capacete com visor e as plumas escuras se inclinando sobre a crista em forma de dragão. Sobre tudo isso, colocaram o manto de seda com o leão real trabalhado a ouro sobre o peito; e puseram nele um largo cinto com fivela dourada, capaz de suportar uma espada larga com o cabo enfeitado de jóias e numa bainha folheada a ouro. Enquanto eles trabalhavam, as trombetas clamavam lá fora, armas retiniam e, de um lado a outro do rio, se erguia um rugido gutural, enquanto esquadrão após esquadrão se dirigia ao seu lugar.

Totalmente blindado, Valannus se curvou sobre um dos joelhos e inclinou suas plumas diante da figura que jazia sobre o estrado.

- Senhor rei, Mitra permita que eu não desonre a armadura que visto hoje!

- Traga-me a cabeça de Tarascus, e eu farei de você um barão! – Na tensão de seu tormento, o verniz de civilização de Conan havia caído dele. Seus olhos queimavam, e ele rangia os dentes em fúria e sede de sangue, tão bárbaro quanto quaisquer homens tribais das colinas cimérias.


3) Os Penhascos Cambaleiam

O EXÉRCITO AQUILONIANO estava parado, com longas fileiras cerradas de piqueiros e cavaleiros em aço brilhante, quando uma figura gigante em armadura negra saiu da tenda real; e, quando ele montou na sela do garanhão negro, seguro por quatro escudeiros, um rugido de sacudir as montanhas se ergueu do exército. Eles sacudiram suas lâminas e trovejaram sua aclamação ao seu rei-guerreiro – cavaleiros em armadura lavrada a ouro, piqueiros em cotas-de-malha e capacetes com viseiras, e arqueiros vestidos em seus gibões de couro, com seus longos arcos em suas mãos esquerdas.

O exército no lado oposto do rio estava em movimento, descendo a trote pela suave inclinação em direção ao rio; o aço deles brilhava através das névoas matinais, que rodopiavam ao redor das patas de seus cavalos.

A hoste aquiloniana se movia sem pressa, para encontrá-los. Os passos regulares dos cavalos blindados faziam o chão tremer. Bandeiras desdobravam longas pregas de seda ao vento da manhã; lanças oscilavam como uma floresta eriçada, inclinadas e com suas flâmulas lhes esvoaçando ao redor.

Dez soldados fortemente armados – veteranos sombrios e taciturnos, capazes de controlar suas línguas – guardavam a tenda real. Havia um escudeiro dentro da tenda, espiando o lado de fora através de uma fenda na entrada. Exceto pelos poucos que guardavam segredo, ninguém mais, na vasta hoste, sabia que não era Conan quem cavalgava, no grande garanhão à frente do exército.

A hoste aquiloniana havia assumido a formação costumeira: a parte mais forte era o centro, inteiramente composto por cavaleiros pesadamente armados; as alas eram compostas por grupos menores de cavaleiros e por soldados fortemente armados, quase todos, sustentados por piqueiros e arqueiros. Estes últimos eram bossonianos das fronteiras ocidentais, homens fortemente constituídos, de estatura mediana e usando jaquetas de couro e proteções de ferro para as cabeças.

O exército nemédio avançava em formação similar, e as duas hostes se moviam em direção ao rio, as alas à frente dos centros. No centro do exército aquiloniano, a grande bandeira do leão desdobrava suas ondulantes pregas negras sobre a figura vestida de aço que montava no garanhão negro.

Mas, em seu estrado na tenda real, Conan gemia em grande aflição de espírito, e praguejava com estranhas blasfêmias pagãs.

- As hostes se movem juntas. – disse o escudeiro, olhando da porta – Ouça o repique das trombetas! Ah! O sol nascente se reflete nas pontas das lanças e nos capacetes, até me ofuscar. Ele deixa o rio escarlate... sim, ele ficará realmente escarlate antes que este dia acabe!

“O inimigo alcançou o rio. Agora as flechas voam entre as hostes, como nuvens de ferrões que escondem o sol. Ah! Bem atirada, arqueiro! Os bossonianos levam a melhor! Ouça o grito deles!”.

Fracamente aos ouvidos do rei, acima do estrondo das trombetas e do tinido do aço, chegou o grito intenso e feroz dos bossonianos, enquanto eles puxavam e atiravam em perfeita harmonia.

- Os arqueiros deles tentam manter os nossos ocupados, enquanto seus cavaleiros avançam para o rio. – disse o escudeiro – As margens não são íngremes; elas se inclinam até a margem da água. Os cavaleiros se aproximam, eles se movem violentamente através dos salgueiros. Por Mitra, as flechas de quase um metro encontram todas as fendas em suas couraças! Cavalos e homens caem, se debatendo na água. Ela não é funda, nem a correnteza é rápida, mas os homens estão se afogando lá, afundados por suas armaduras e atropelados por cavalos desvairados. Agora, os cavaleiros da Aquilônia avançam. Eles cavalgam em direção à água e enfrentam os cavaleiros da Nemédia. A água rodopia ao redor das barrigas de seus cavalos, e o clangor de espada contra espada é ensurdecedor.

- Crom! – a palavra irrompeu em agonia dos lábios de Conan. A vida corria vagarosamente de volta às suas veias, mas, mesmo assim, ele não conseguia erguer sua forma poderosa do estrado.

- As alas estão se juntando. – disse o escudeiro – Piqueiros e lanceiros lutam corpo-a-corpo no riacho; e, atrás deles, os arqueiros lançam constantemente suas setas.

“Por Mitra, os besteiros nemédios estão sendo duramente atacados, e os bossonianos preparam suas flechas para dispararem entre as fileiras da retaguarda. O centro deles não avança sequer meio metro, e suas alas são empurradas de volta, através do rio”.

- Crom, Ymir e Mitra! – esbravejou Conan – Deuses e demônios, se eu pudesse alcançar a luta; se ao menos pudesse morrer no primeiro golpe!

Do lado de fora, ao longo do dia quente, a batalha bramiu e trovejou. O vale estremeceu sob o ataque e contra-ataque, sob o assobio de flechas e o despedaçar de escudos dilacerados e lanças quebradas. Mas os exércitos da Aquilônia se mantinham firmes. Às vezes eram forçados para trás da margem, mas com um contra-ataque com a bandeira negra flutuando sobre o garanhão negro, eles readquiriram o território perdido. E, como uma trincheira de ferro, mantinham a margem direita do riacho; e, finalmente, o escudeiro deu a Conan as notícias de que os nemédios caíam de volta, através do rio.

- As alas deles estão confusas! – ele gritou – Os cavaleiros cambaleiam de volta, fugindo da luta de espadas. Mas o que é isto? Sua bandeira está em movimento... o centro se move riacho adentro! Por Mitra, Valannus está liderando o exército para o outro lado do rio!

- Idiota! – gemeu Conan – Pode ser um truque. Ele deveria manter sua posição; ao amanhecer, Prospero estará aqui, com seus recrutas poitainianos.

- Os cavaleiros avançam para dentro de uma saraivada de flechas! – gritou o escudeiro – Mas eles não hesitam! Eles avançam... eles atravessaram! Estão atacando inclinação acima! Pallantides lançou as alas através do rio, para dar suporte a eles! É tudo o que ele pode fazer. A bandeira do leão mergulha e oscila acima do caos.

“Os cavaleiros da Nemédia param. Estão despedaçados! Eles caem de volta! Sua ala esquerda está em fuga total, e nossos piqueiros os matam enquanto correm! Vejo Valannus, cavalgando e golpeando como um louco. Está empolgado pela sede de batalha. Os homens não olham mais para Pallantides. Eles seguem Valannus, pensando que é Conan, enquanto ele cavalga com a viseira fechada.

“Mas veja! Há método em sua loucura! Ele se afasta bem do fronte nemédio, com 5 mil cavaleiros, os melhores do exército. A principal hoste dos nemédios está confusa... e veja! O flanco deles está protegido pelos penhascos, mas há um desfiladeiro desprotegido! É como uma grande rachadura nas paredes, que se abre novamente atrás das fileiras nemédias. Por Mitra, Valannus vê e aproveita a oportunidade! Ele expulsou a ala deles para diante, e lidera seus cavaleiros através daquela garganta. Eles se afastam bastante da parte principal da batalha; eles atravessam uma fileira de lanceiros, e atacam desfiladeiro adentro!”.

- Uma cilada! – gritou Conan, se esforçando para erguer-se.

- Não! – gritou exultante o escudeiro – Todo o exército nemédio está bem à vista! Eles se esqueceram do desfiladeiro! Eles nunca esperaram ser empurrados tão longe de volta. Oh, idiota do Tarascus em cometer tal erro! Ah, eu vejo lanças e flâmulas saindo da boca mais distante do desfiladeiro, além das linhas nemédias. Elas vão golpear aquelas fileiras pela retaguarda e amassá-las. Por Mitra, o que é isto?

Ele hesitou, enquanto as paredes da tenda balançavam como bêbados. Longe do trovejar da luta, se erguia um rugido intenso e berrante, indescritivelmente ameaçador.

- Os penhascos cambaleiam! – guinchou o escudeiro – Oh, deuses, o que é isto? O rio espuma para fora de seu leito, e os picos estão desmoronando! O chão treme, e os cavalos e cavaleiros encouraçados estão derrotados! Os penhascos! Os penhascos estão caindo!

Com suas palavras, veio um retumbar triturante e um abalo trovejante, e o chão tremeu. Acima do ruído da batalha, soavam gritos de louco terror.

- Os penhascos desabaram! – gritou o empalidecido escudeiro – Eles desabaram para dentro do desfiladeiro e esmagaram todas as criaturas vivas nele! Eu vi a bandeira do leão ondular por um instante, entre a poeira e as pedras que caíam, e depois ela desapareceu! Oh, os nemédios gritam de triunfo! Bom, eles podem gritar, pois a queda dos penhascos exterminou 500 dos nossos mais bravos cavaleiros... escute!

Chegou aos ouvidos de Conan uma vasta torrente de som, se erguendo cada vez mais, de forma desvairada:

- O rei está morto! O rei está morto! Fujam! Fujam! O rei está morto!

- Mentirosos! – ofegou Conan – Cães! Patifes! Covardes! Oh, por Crom, se eu pudesse ao menos me levantar... ao menos rastejar até o rio, com minha espada nos dentes. Então, rapaz, eles fogem?

- Sim! – soluçou o escudeiro – Eles correm até o rio; estão desorganizados, espalhados como espuma diante de uma tempestade. Vejo Pallantides se esforçando para deter a torrente... ele caiu, e os cavalos pisam nele! Estão correndo para dentro do rio... cavaleiros, arqueiros e piqueiros... todos misturados numa louca torrente de destruição. Os nemédios estão em seus calcanhares, ceifando-os como trigo.

- Mas eles irão resistir neste lado do rio! – gritou o rei. Com um esforço que lhe fez o suor pingar das têmporas, ele se ergueu sobre os cotovelos.

- Não! – gritou o escudeiro – Eles não podem! Estão desorganizados! Derrotados! Oh, deuses, eu deveria viver para ver este dia!

Então, ele se lembrou de seu dever, e gritou para os homens fortemente armados, que assistiam impassíveis a fuga de seus companheiros:

- Peguem um cavalo, rápido; e me ajudem a erguer o rei sobre ele. Nós não ousamos esperar aqui.

Mas, antes que eles pudessem cumprir sua ordem, a primeira leva do tumulto estava sobre eles. Cavaleiros, lanceiros e arqueiros fugiam por entre as tendas, tropeçando sobre cordas e bagagens; e, misturados com eles, haviam nemédios a cavalo, que golpeavam a torto e a direito todas as figuras estrangeiras. Cordas de tendas foram cortadas, o fogo se ergueu em uma centena de lugares, e o saque já havia começado. Os guardas carrancudos, ao redor da tenda de Conan, morreram onde estavam, golpeando e estocando; e, sobre seus cadáveres estraçalhados, pisavam os cascos dos conquistadores.

Mas o escudeiro havia deixado a entrada bem fechada; e, na loucura confusa da matança, ninguém percebeu que a tenda continha um ocupante. Assim, a fuga e a perseguição passaram e rugiram vale acima, e logo o escudeiro olhou para fora, para ver um grupo de homens se aproximarem da tenda real, com objetivo evidente.

- Lá vem o rei da Nemédia, com quatro companheiros e seu escudeiro. – ele disse – Ele aceitará sua rendição, meu bom senhor...

- O coração do diabo que se renda! – o rei rangeu os dentes.

Ele havia se forçado para o alto, até ficar sentado. Tirou dolorosamente as pernas do estrado e se ergueu com dificuldade, cambaleando como um bêbado. O escudeiro se apressou para ajudá-lo, mas Conan o empurrou.

- Dê-me aquele arco! – ele disse, rangendo os dentes e apontando para um longo arco e uma aljava, pendurados numa estaca da tenda.

- Mas Majestade! – gritou o escudeiro, em grande perturbação – A batalha está perdida! É obrigação da majestade se render com a dignidade de alguém de sangue real!

- Não tenho sangue real. – Conan rangeu os dentes – Sou um bárbaro e o filho de um ferreiro.

Puxando com força o arco e uma flecha, ele cambaleou em direção à abertura da tenda. Sua aparência era tão temível – vestido apenas com suas calças curtas de couro e camisa sem manga, aberta para revelar seu grande peito peludo, com seus membros enormes e seus olhos azuis ardendo sob a emaranhada cabeleira negra – que o escudeiro recuou, com mais medo de seu rei do que de todo o exército nemédio.

Oscilando sobre as pernas bem abertas, Conan, cambaleante, puxou a aba que cobria a saída e caminhou oscilante para fora, sob o dossel. O rei da Nemédia e seus companheiros haviam desmontado, e pararam bruscamente, encarando assombrados a aparição que os confrontava.

- Aqui estou, seus chacais! – rugiu o cimério – Eu sou o rei! Morte a vocês, irmandade de cães!

Ele puxou a flecha até a cabeça e atirou; e a seta se cravou no peito do cavaleiro que estava ao lado de Tarascus. Conan arremessou o arco em direção ao rei da Nemédia.

- Maldita seja minha mão trêmula! Venha e me levem, se tiverem coragem!

Cambaleando para trás sobre pernas instáveis, ele caiu de costas contra uma estaca de tenda e, ao se levantar, ergueu sua grande espada com ambas as mãos.

- Por Mitra, é o rei! – praguejou Tarascus. Ele olhou rapidamente ao redor de si, e riu – Aquele outro era um chacal com a armadura dele! Vamos cães, peguem a cabeça dele!

Os três soldados – homens fortemente armados, usando o emblema da guarda real – correram até o rei, e um deles abateu o escudeiro com um golpe de maça. Os outros dois tiveram menos sorte. Quando o mais rápido correu em direção ao rei, com a espada erguida, Conan o enfrentou com um golpe decepante, que lhe abriu os elos da cota-de-malha, como se fossem de pano, e arrancou o braço e ombro do nemédio. Seu cadáver, ao cair pesadamente para trás, bateu contra as pernas do companheiro. O homem cambaleou e, antes que pudesse se recuperar, a grande espada estava lhe atravessando.

Conan puxou para fora sua lâmina de aço, com uma arfada dolorosa, e se apoiou, cambaleante, de volta à estaca da tenda. Seus grandes membros tremiam, o peito arfava e o suor lhe escorria pelo rosto e pescoço. Mas seus olhos ardiam em selvageria exultante, e ele ofegou:

- Por que está tão afastado, cão de Belverus? Não posso lhe alcançar; aproxime-se e morra!

Tarascus hesitou, olhando para o soldado armado que restara e para seu escudeiro, um homem magro e sério vestido em malha negra, e deu um passo à frente. Ele era bem inferior, em tamanho e força, ao gigante cimério, mas estava totalmente blindado, e era famoso em todas as nações ocidentais como espadachim. Mas seu escudeiro agarrou-lhe o braço.

- Não, Majestade, não jogue fora sua vida. Chamarei arqueiros para atirarem neste bárbaro, como fazemos com leões.

Nenhum deles percebera que uma carruagem havia se aproximado durante a luta. Mas Conan viu, olhando por cima dos ombros deles, e um estranho arrepio se arrastou ao longo de sua espinha. Havia algo vagamente não-natural na aparência dos cavalos negros que puxavam o veículo, mas foi o ocupante da carruagem que prendeu a atenção do rei.

Era um homem alto e majestosamente constituído, vestido num longo robe de seda sem adornos. Usava um turbante shemita, cujas pregas inferiores lhe ocultavam as feições, exceto pelos olhos escuros e magnéticos. As mãos que agarravam as rédeas, freando os cavalos da retaguarda, eram brancas, porém fortes. Conan olhou ferozmente para o estranho, e todos os seus instintos primitivos ficaram despertos. Ele sentiu uma aura de ameaça e poder, transpirando daquela figura velada tão claramente quanto o ondular sem vento do capim alto, marcando a trilha da serpente.

- Salve, Xaltotun! – exclamou Tarascus – Aqui está o rei da Aquilônia! Ele não morreu no deslizamento de terra, como havíamos pensado.

- Eu sei. – respondeu o outro, sem se preocupar em dizer como o sabia – Qual a sua intenção no momento?

- Vou chamar os arqueiros para matarem-no. – respondeu o nemédio – Enquanto ele viver, será perigoso para nós.

- Até mesmo um cão tem utilidades. – respondeu Xaltotun – Peguem-no vivo.

Conan riu asperamente.

- Venham e tentem! – ele desafiou – Se não fossem minhas pernas traiçoeiras, eu lhe cortaria fora desta carruagem, como um lenhador cortando uma árvore. Mas você nunca vai me capturar vivo, maldito!

- Receio que ele fale a verdade. – disse Tarascus – O homem é um bárbaro, com a ferocidade insensível de um tigre ferido. Deixe-me chamar os arqueiros.

- Observe-me e aprenda sabedoria. – aconselhou Xaltotun.

Sua mão mergulhou no robe, e saiu com algo brilhante – uma esfera cintilante. Ele a lançou subitamente diante de Conan. O cimério desdenhosamente lançou-a para o lado com um golpe de sua espada; no instante do contato, houve uma explosão aguda, um clarão de fogo branco e cegante, e Conan caiu pesadamente e sem sentidos ao chão.

- Ele está morto? – o tom de Tarascus era mais de afirmação que de interrogação.

- Não. Só está inconsciente. Ele recuperará os sentidos em poucas horas. Mande seus homens amarrarem os braços e pernas dele, e erguê-lo até minha carruagem.

Com um gesto, Tarascus o fez e eles ergueram o rei inconsciente para dentro da carruagem, grunhindo com o peso que carregavam. Xaltotun lançou um manto de veludo sobre o corpo dele, escondendo-o completamente de qualquer um que pudesse olhá-lo com atenção. Ele agarrou as rédeas com as mãos.

- Estou indo para Belverus. – ele disse – Diga a Amalric que estarei com ele, se precisar de mim. Mas, com Conan fora do caminho e seu exército despedaçado, lanças e espadas serão suficientes para o restante da conquista. Prospero não pode trazer mais do que 10 mil homens para o campo de batalha, e sem dúvida, se precipitará de volta a Tarantia quando ouvir as notícias da batalha. Não diga nada a Amalric, a Valerius, nem a ninguém, sobre nossa captura. Deixe-os pensarem que Conan morreu na queda dos penhascos.

Ele olhou para o soldado armado por um longo tempo, até o guarda se mover inquieto, nervoso diante do exame atento.

- O que é isso ao redor de sua cintura? – indagou Xaltotun.

- Ora, é meu cinto, milorde! – gaguejou o espantado soldado da guarda.

- Está mentindo! – a risada de Xaltotun foi impiedosa, como a lâmina de uma espada – É uma serpente venenosa! Que tolo você é, em vestir um réptil ao redor de sua cintura!

O homem arregalou os olhos para baixo; e, para seu mais absoluto horror, viu a fivela de seu cinto se erguer em sua direção. Era a cabeça de uma serpente! Ele viu os olhos malignos e as presas gotejantes, ouviu o sibilo e sentiu o contato repugnante da coisa ao redor de seu corpo. Ele deu um grito horrendo e a golpeou com a mão nua, sentiu as presas afundarem naquela mão – e então, ele se enrijeceu e caiu pesadamente. Tarascus baixou o olhar para ele, sem expressão. Só tinha visto o cinto de couro e a fivela, cuja ponta havia golpeado a palma da mão do guarda. Xaltotun virou o olhar hipnótico para o escudeiro de Tarascus, e o homem ficou pálido e começou a tremer, mas o rei se interpôs:

- Não, nós podemos confiar nele.

O feiticeiro esticou as rédeas e fez os cavalos darem a volta:

- Faça com que esta parte do trabalho continue secreta. Se eu for necessário, deixe Altaro, criado de Orastes, me convocar como eu o ensinei. Estarei no seu palácio, em Belverus.

Tarascus ergueu a mão em saudação, mas sua expressão não era agradável de se ver, quando ele olhou para trás do hipnotizador que se afastava.

- Por que deveríamos poupar o cimério? – sussurrou o assustado escudeiro.

- É sobre isso que estou me perguntando. – grunhiu Tarascus. Atrás da ribombante carruagem, o rugido surdo da batalha e da perseguição desaparecia à distância; o sol poente rodeava a zoada com chama escarlate, e a carruagem se movia para dentro das vastas sombras azuis, que flutuavam vindas do leste.


4) “De Qual Inferno Você Rastejou?”

DAQUELA LONGA cavalgada na carruagem de Xaltotun, Conan nada sabia. Jazia como um morto, enquanto as rodas de bronze se estrondeavam sobre as pedras de estradas nas montanhas e zuniam através da grama espessa dos vales férteis; e, finalmente descendo das alturas acidentadas, ribombaram ritmicamente ao longo da larga estrada branca, a qual serpenteia através dos prados até os muros de Belverus.

Logo antes do amanhecer, um fraco renovar de vida o tocou. Ele ouviu um ribombar de vozes e o ranger de dobradiças pesadas. Através de uma fenda no manto que o cobria, ele viu, fracamente na luz avermelhada das tochas, o grande arco negro de um portão, e os rostos barbudos de homens fortemente armados, a luz das tochas se refletindo nas pontas de suas lanças e em seus elmos.

- Como foi a batalha, meu bom senhor? – falou uma voz ansiosa, na língua nemédia.

- Realmente bem. – foi a curta resposta – O rei da Aquilônia jaz morto, e seu exército está esmagado.

Um balbucio de vozes se ergueu, afogado no instante seguinte pelo giro das rodas da carruagem sobre a laje do calçamento. Faíscas cintilaram sob os aros em movimento, quando Xaltotun chicoteou seus corcéis através do arco. Mas Conan ouviu um dos guardas murmurar:

- De além da fronteira até Belverus, entre o pôr-do-sol e a aurora! E os cavalos mal suaram! Por Mitra, eles...

O silêncio lhes tragou as vozes, e só houve o barulho de cascos e rodas ao longo da rua ensombrecida.

Os sons que ficaram registrados no cérebro de Conan nada significavam para ele. Ele era como um autômato que ouve e vê, mas não entende. Visões e sons fluíam sem significado ao seu redor. Ele caiu novamente numa profunda letargia, e só estava vagamente consciente, quando a carruagem parou num pátio escuro, de muros altos, e foi erguido por várias mãos, carregado numa ascendente e serpenteante escada de pedra, e por um longo corredor escuro. Sussurros, passos furtivos e sons desconexos se erguiam ou farfalhavam ao seu redor, irrelevantes e distantes.

Mas o seu último despertar foi abrupto e claro como cristal. Ele possuía total conhecimento da batalha nas montanhas e suas seqüências, e tinha uma boa idéia de onde estava.

Ele jazia num leito de veludo, vestido como no dia anterior, mas com os membros presos por pesadas correntes, às quais nem mesmo ele seria capaz de quebrar. A sala onde se encontrava era decorada com sombria magnificência, as paredes cobertas com negras tapeçarias de veludo, e o chão com pesados carpetes púrpuras. Não havia sinal de porta ou janela, e um lampião de ouro curiosamente entalhado, balançando no teto desgastado, espalhava uma luz sinistra sobre tudo.

Naquela luz, a figura sentada diante dele, numa cadeira de prata semelhante a um trono, lhe parecia irreal e fantástica, com uma ilusão de contorno que era aumentada por um delgado robe de seda. Mas as feições eram nítidas – e não-naturais, naquela luz incerta. Era quase como se um estranho anel de luz bailasse ao redor da cabeça do homem, realçando totalmente o rosto barbudo, de modo que este era a única realidade definitiva e distinta, naquele quarto místico e fantasmagórico.

Era um rosto magnífico, com feições fortemente esculpidas, de beleza clássica. Havia, de fato, algo inquietante ao redor da tranqüilidade de seu aspecto; uma sugestão de conhecimento mais que humano, de uma profunda convicção, além da certeza humana. Além disso, uma desconfortável sensação de familiaridade se contraiu no fundo da consciência de Conan. Ele nunca tinha visto antes o rosto deste homem, ele bem sabia; mas suas feições o faziam se lembrar de algo ou alguém. Era como encontrar, em carne e osso, alguma imagem de sonho que lhe assombrara em pesadelos.

- Quem é você? – indagou beligerantemente o rei, se esforçando para sentar-se, apesar de suas correntes.

- Os homens me chamam de Xaltotun. – foi a resposta, numa voz forte e dourada.

- Que lugar é este? – o cimério indagou em seguida.

- Um aposento no palácio do Rei Tarascus, em Belverus.

Conan não estava surpreso. Belverus, a capital, era, ao mesmo tempo, a maior cidade nemédia e a mais próxima da fronteira.

- E onde está Tarascus?

- Com o exército.

- Bem – rosnou Conan –, se pretende me matar, por que não o faz e acaba logo com isto?

- Eu não lhe salvei dos arqueiros do rei, para lhe assassinar em Belverus. – respondeu Xaltotun.

- O que diabos você fez comigo? – exigiu Conan.

- Eu tirei sua consciência. – respondeu Xaltotun – Como, você não entenderia. Chame de magia negra, se quiser.

Conan já havia chegado àquela conclusão, e estava ponderando sobre algo mais.

- Acho que entendo por que você poupou minha vida. – ele retumbou – Amalric quer me manter como um freio para Valerius, caso o impossível aconteça e ele se torne rei da Aquilônia. Sabe-se muito bem que o barão de Tor está por trás deste golpe para pôr Valerius em meu trono. E, se eu conheço Amalric, ele não pretende deixar que Valerius seja qualquer coisa mais que um chefe nominal, como Tarascus é agora.

- Amalric nada sabe de sua captura. – respondeu Xaltotun – E nem Valerius. Ambos pensam que você morreu em Valkia.

Os olhos de Conan se estreitaram, ao fitarem o homem em silêncio.

- Senti uma inteligência por trás de tudo isso – ele murmurou –, mas pensei que fosse a de Amalric. Amalric, Tarascus e Valerius são todos meras marionetes dançando em seu barbante? Quem é você?

- O que importa? Se eu lhe dissesse, você não acreditaria em mim. O que aconteceria se eu lhe dissesse que posso colocá-lo de volta ao trono da Aquilônia?

Os olhos de Conan arderam sobre ele como os de um lobo.

- Qual o seu preço?

- Obediência a mim.

- Vá pro inferno com sua oferta! – rosnou Conan – Eu não sou chefe nominal. Ganhei minha coroa com minha espada. Além disso, estou fora do alcance do seu poder, de comprar e vender o trono da Aquilônia à sua vontade. O reino não está conquistado; uma só batalha não decide a guerra.

- Você luta contra mais do que espadas. – respondeu Xaltotun – Foi a espada de um mortal que lhe derrubou em sua tenda, antes da luta? Não; foi um filho das trevas, um pária do espaço exterior, cujos dedos estavam incendiados com a frieza congelada dos golfos negros, que congelou o sangue em suas veias e a força de seus músculos. Frieza tão fria, que lhe queimou a pele como ferro em brasa!

“Foi o acaso que levou o homem que vestia sua armadura a liderar seus cavaleiros para dentro do desfiladeiro? Foi o acaso que fez os penhascos caírem e se espatifarem sobre eles?”.

Conan o olhou feroz e silenciosamente, sentindo um arrepio ao longo da espinha. Magos e feiticeiros eram abundantes em sua mitologia, e qualquer tolo poderia dizer que aquele não era um homem comum. Conan sentiu algo inexplicável ao redor dele, que o punha à parte – uma aura estranha de Tempo e Espaço, uma sensação de tremenda e sinistra antiguidade. Mas seu espírito teimoso se recusava a recuar.

- A queda dos penhascos foi por acaso. – ele murmurou selvagemente – O ataque desfiladeiro adentro foi o que qualquer homem teria feito.

- Nem tanto. Você não teria liderado um ataque para dentro dele. Você teria suspeitado de uma cilada. Jamais teria cruzado logo o rio, até estar certo de que a debandada dos nemédios era verdadeira. Sugestões hipnóticas não teriam invadido sua mente, mesmo na loucura da batalha, para lhe enlouquecer e fazer correr cegamente para dentro da armadilha que fiz para você, como fiz com o homem inferior, o qual se disfarçou de você.

- Então, se foi tudo planejado – Conan grunhiu, cético –, tudo um plano para pôr meu exército numa armadilha, por que o “filho das trevas” não me matou em minha tenda?

- Porque eu pretendia lhe capturar vivo. Não precisei de magia para prever que Pallantides mandaria outro homem, em sua armadura. Há uma força vital em você, maior que a velhacaria e astúcia de meus aliados. Você é um inimigo sério, mas poderia ser um ótimo vassalo.

Conan cuspiu selvagemente diante da palavra, e Xaltotun, ignorando-lhe a fúria, pegou um globo de cristal que estava numa mesa próxima, e o colocou diante dele. Ele não o sustentava de modo algum, nem o colocou sobre nada, mas ficou suspenso e imóvel no ar, tão firmemente quanto se descansasse num pedestal de ferro. Conan riu com desdém diante daquele pedaço de necromancia, mas estava impressionado, apesar de tudo.

- Gostaria de saber o que está acontecendo na Aquilônia? – ele perguntou.

Conan não respondeu, mas a súbita rigidez de seu corpo lhe traiu o interesse.

Xaltotun olhou fixamente para dentro das profundezas nebulosas, e falou:

- Agora é a noite do dia posterior à batalha de Valkia. Na noite passada, o corpo principal do exército acampou pelo Valkia, enquanto esquadrões de cavaleiros perseguiram os aquilonianos fugitivos. De manhã, o exército abandonou o acampamento e fugiu para oeste, através das montanhas. Prospero, com 10 mil poitainianos, estava a milhas do campo de batalha, quando se deparou com os fugitivos sobreviventes no início da manhã. Ele havia avançado por toda a noite, esperando alcançar o campo antes de se juntar à batalha. Incapaz de reorganizar os remanescentes do exército derrotado, ele se precipitou de volta a Tarantia. Cavalgando duramente, substituindo seus cavalos cansados por corcéis pegos nos campos, ele se aproxima de Tarantia.

“Vejo seus cavaleiros cansados, suas armaduras cinzentas de poeira, suas bandeiras caídas enquanto eles dirigem seus cavalos cansados através da planície. Também vejo as ruas de Tarantia. A cidade está em tumulto. De alguma forma, a notícia da derrota e morte do Rei Conan alcançou o povo. A plebe está louca de medo, gritando que o rei está morto, e que não há ninguém para liderá-los contra os nemédios. Sombras gigantescas se lançam sobre a Aquilônia, vindas do leste, e o céu está negro de abutres”.

Conan praguejou intensamente:

- O que são estas coisas, além de palavras? O mendigo mais esfarrapado na rua poderia profetizar o mesmo. Se você diz que viu tudo nessa bola de vidro, então você é tão mentiroso quanto patife, e deste último não resta dúvida! Prospero defenderá Tarantia, e os barões irão se reunir a ele. O Conde Trocero de Poitain comanda o reino em minha ausência, e ele mandará esses cães nemédios uivando de volta para seus canis. O que são 5 mil nemédios? A Aquilônia irá tragá-los. Eles jamais verão Belverus novamente. Não foi a Aquilônia que eles derrotaram no Valkia; foi apenas Conan.

- A Aquilônia está condenada. – respondeu Xaltotun, imóvel – A lança, o machado e a tocha irão conquistá-la; e, se eles falharem, os poderes da escuridão das eras marcharão contra ela. Assim como os penhascos caíram em Valkia, assim cairão as cidades muradas e montanhas, se for necessário, e rios rugirão para fora de seus leitos, para afogarem províncias inteiras.

“Melhor se o aço e a corda do arco triunfarem sem a ajuda posterior das artes, pois o uso constante de feitiços poderosos às vezes põem em movimento forças que podem sacudir o universo”.

- De qual inferno você rastejou, seu cão das trevas? – murmurou Conan, encarando o homem. O cimério estremeceu involuntariamente; ele sentiu algo incrivelmente antigo, incrivelmente maligno.

Xaltotun ergueu a cabeça, como se ouvindo sussurros através do vácuo. Ele parecia ter esquecido seu prisioneiro. Então, ele sacudiu impacientemente a cabeça, e olhou de forma impessoal para Conan:

- O quê? Ora, se eu lhe contasse, você não acreditaria em mim. Mas estou cansado de conversar com você; é menos cansativo destruir uma cidade murada, do que organizar meus pensamentos em palavras para um bárbaro sem cérebro poder entender.

- Se minhas mãos estivessem livres – opinou Conan –, eu logo faria de você um cadáver sem cérebro.

- Não tenho dúvidas disso, se eu fosse tolo o bastante para lhe dar a oportunidade. – respondeu Xaltotun, batendo palmas. Seus modos haviam mudado; havia impaciência em seu tom de voz, e um certo nervosismo em suas maneiras, embora Conan não achasse que esta atitude estivesse, de forma alguma, conectada com ele próprio.

- Pense no que lhe falei, bárbaro. – disse Xaltotun – Você tem tempo à vontade. Não decidi o que farei com você. Isto depende de circunstâncias ainda vindouras. Mas deixe isto impresso em você: que, se eu decidir lhe usar em meu jogo, será melhor se submeter sem resistência do que sofrer minha ira.

Conan cuspiu uma praga nele, no exato momento em que cortinas, que cobriam a porta, foram abertas e quatro gigantes negros entraram. Cada um vestia apenas uma tanga de seda, segura por um cinto, do qual pendia uma grande chave.

Xaltotun gesticulou com impaciência em direção ao rei e se afastou, como se tirando todo o assunto da mente. Seus dedos se crisparam estranhamente. De uma caixa entalhada de jade verde, ele pegou um punhado de brilhante poeira negra, e a colocou num braseiro, que se encontrava num tripé dourado próximo ao seu cotovelo. O globo de cristal, o qual ele parecia ter esquecido, caiu subitamente ao chão, como se seu suporte invisível houvesse sido tirado.

Então, os negros ergueram Conan – pois ele estava tão acorrentado que não conseguia andar – e o carregaram para fora do quarto. Um rápido olhar para trás, antes que a pesada porta de teca encadeada a ouro fosse fechada, lhe mostrou Xaltotun se inclinando de volta na sua cadeira em forma de trono, os braços cruzados, enquanto um fino punhado de fumaça se encaracolava para fora do braseiro. O couro cabeludo de Conan se arrepiou. Na Stygia, aquele reino antigo e maligno que fica no sul distante, ele tinha visto aquele pó negro. Era o pólen do lótus negro, o qual produz um sono semelhante à morte e sonhos monstruosos; e ele sabia que apenas os medonhos feiticeiros do Anel Negro, o qual é o ponto mais baixo do mal, buscam voluntariamente os pesadelos escarlates do lótus negro, para reviverem seus poderes necromantes.

O Anel Negro era uma fábula e uma mentira para a maioria das pessoas do mundo ocidental, mas Conan sabia de sua medonha realidade e de seus devotos sombrios, os quais praticavam suas feitiçarias abomináveis no meio das abóbadas negras da Stygia e cúpulas noturnas da amaldiçoada Sabatea. Ele olhou novamente para a enigmática porta encadeada a ouro, estremecendo diante do que ela escondia.

Se era dia ou noite, o rei não conseguia dizer. O palácio do Rei Tarascus parecia um lugar de sombras e trevas, que evitava o sol. O espírito da escuridão e da sombra pairava sobre ele; e aquele espírito, Conan sentia, estava corporificado no forasteiro Xaltotun. Os negros carregavam o rei ao longo de um corredor sinuoso, tão fracamente iluminado que eles se moviam através dele como fantasmas negros carregando um homem morto, e logo desceram uma escada que serpenteava sem parar. Uma tocha, na mão de cada um, lançava grandes sombras deformadas que se moviam ao longo da parede; era como um cadáver descendo ao inferno, carregado por demônios pardos.

Por fim, eles chegaram à base da escadaria, e então atravessaram um longo corredor reto, com uma parede clara – de um lado, perfurada por uma ocasional porta arcada, com uma escadaria ascendente atrás dela; e, do outro lado, outra parede mostrava pesadas portas gradeadas, a intervalos regulares de pouco mais de um metro.

Parando diante de uma dessas portas, um dos negros puxou a chave que lhe pendia do cinto e girou-a dentro da fechadura. Então, empurrando a grade aberta, eles entraram com seu cativo. Estavam num pequeno calabouço, com pesadas paredes, chão e teto de pedra, e, no lado oposto, havia outra porta gradeada. O que havia além daquela porta, Conan não era capaz de dizer, mas ele não acreditava que fosse outro corredor. A luz bruxuleante da tocha, palpitando através das grades, sugeria vastidões sombrias e profundezas ressonantes.

Em um canto do calabouço, próximo à porta pela qual haviam entrado, um cacho de correntes enferrujadas pendia de um grande aro de ferro encaixado na pedra. Nestas correntes, pendia um esqueleto. Conan o olhou ferozmente com certa curiosidade, percebendo o estado de alguns ossos nus, muitos dos quais estavam estilhados e quebrados; o crânio, que havia caído da vértebra, estava esmagado como se por algum golpe selvagem de tremenda força.

Imperturbavelmente, um dos negros, que não era o mesmo que abrira a porta, removeu as correntes do aro, usando sua chave na tranca maciça, e arrastou para um lado a massa de metal enferrujado e ossos despedaçados. Então, eles prenderam as correntes de Conan àquele aro, e o terceiro negro girou sua chave na tranca da porta mais afastada, grunhindo ao se certificar de que estava devidamente presa.

Então, eles olharam misteriosamente para Conan – gigantes de ébano com olhos rasgados, a tocha lhes iluminando as peles lustrosas.

O que prendeu a chave à porta mais próxima, comentou guturalmente:

- Este é o seu palácio agora, cão-rei branco! Ninguém sabe, exceto nós e o amo! Todo o palácio dorme. Nós guardamos segredo. Você vive e morre aqui, talvez. Como ele! – Ele chutou desdenhosamente a caveira despedaçada e a fez rolar ruidosamente pelo chão de pedra.

Conan não se dignou a responder ao escárnio, e o negro, talvez irritado, murmurou uma praga, se abaixou e cuspiu bem no rosto do rei. Foi um ato infeliz para o negro. Conan estava sentado no chão, com as correntes ao redor da cintura, e os tornozelos e pulsos presos ao aro na parede. Ele não podia se erguer, nem se afastar, mais do que 90 centímetros da parede. Mas havia uma considerável parte solta nas correntes que lhe algemavam os pulsos e, antes que a cabeça pontiaguda pudesse ficar fora de alcance, o rei agarrou esta parte solta em sua mão poderosa e golpeou o negro na cabeça. O homem caiu como um boi abatido, e seus companheiros arregalaram os olhos ao verem-no caído, com o couro cabeludo aberto e o sangue lhe escorrendo do nariz e ouvidos.

Mas eles não tentaram se vingar, nem aceitaram o convite urgente de Conan para se aproximarem do alcance da corrente sangrenta em sua mão. Em seguida, grunhindo em sua fala simiesca, eles ergueram o negro inconsciente e o carregaram para fora, como um saco de trigo, os braços e pernas pendentes. Usaram a chave dele para trancar a porta atrás deles, mas não a tiraram da corrente de ouro que a deixava presa ao cinto dele. Levaram a tocha consigo e, enquanto se moviam pelo corredor, a escuridão se movia furtivamente atrás deles, como uma coisa viva. Seus suaves passos compassados desapareceram à distância, junto com o brilho de sua tocha, e a escuridão e o silêncio continuaram intactos.


5) A Assombração dos Fossos

CONAN JAZIA IMÓVEL, suportando o peso de suas correntes e o desespero de sua posição, com o estoicismo dos selvagens que o criaram. Ele não se movia, porque o ruído de suas correntes, quando ele mudava de posição, soava assustadoramente alto na escuridão e no silêncio; e era seu instinto, nascido de mil ancestrais nascidos na selva, o de não trair sua posição na sua situação indefesa. Isto não era o resultado de um processo de raciocínio lógico; ele não estava quieto porque havia raciocinado que a escuridão escondia perigos furtivos que poderiam descobri-lo na situação impotente em que se encontrava. Xaltotun havia lhe assegurado que não seria ferido, e Conan acreditava que o homem tinha interesse em preservá-lo, ao menos por enquanto. Mas os instintos do selvagem estavam lá, aqueles que o faziam, na infância, ficar escondido e em silêncio, enquanto feras selvagens rondavam ao redor de seu esconderijo.

Nem mesmo seus olhos agudos conseguiam penetrar a sólida escuridão. Mas, após um tempo, após um período de tempo do qual ele não tinha meio de calcular, um brilho fraco ficou aparente; uma espécie de raio de luz, oblíquo e cinza, através do qual Conan conseguia ver vagamente as barras da porta próxima ao seu cotovelo, e até distinguir a estrutura da outra grade. Isto o intrigou, até que ele finalmente percebeu a explicação. Ele estava bem abaixo do chão, nos fossos sob o palácio; mas, por algum motivo, um poço de ventilação havia sido construído em algum lugar no alto. Lá fora, a lua se erguera até um ponto onde sua luz se inclinava fracamente em direção ao orifício. Ele refletiu que, desta maneira, poderia acompanhar a passagem dos dias e noites. Talvez o sol também pudesse lançar seu brilho através desse orifício, embora, por outro lado, ele pudesse ser fechado de dia. Talvez isso fosse um sutil método de tortura, permitindo ao prisioneiro apenas um vislumbre da luz do dia ou do luar.

Seu olhar caiu sobre os ossos quebrados no canto mais afastado, brilhando fracamente. Ele não forçou o cérebro com fúteis especulações sobre quem havia sido o infeliz, ou por qual razão havia sido condenado, mas se perguntou a respeito do estado despedaçado dos ossos. Eles não haviam sido quebrados numa mesa de tortura. Então, enquanto ele olhava, outro detalhe repugnante se fez evidente. Os ossos das canelas estavam partidos ao comprido, e só havia uma explicação: haviam sido quebrados desta maneira, a fim de se obter o tutano. Mas qual criatura, além do homem, quebra ossos em busca de tutano? Talvez aqueles restos fossem evidências mudas de um horrível banquete canibal, feito por algum coitado enlouquecido pela fome. Conan se perguntou se seus próprios ossos seriam encontrados em alguma época do futuro, pendurados em suas correntes enferrujadas. Ele lutou contra o pânico insensato de um lobo capturado numa armadilha.

O cimério não praguejou, gritou, chorou nem delirou, como um homem civilizado faria. Mas a dor e agitação em seu peito não eram menos ferozes. Seus grandes membros tremiam com a intensidade de suas emoções. Em algum lugar, bem longe a oeste, o exército nemédio estava despedaçando e queimando, em seu caminho para o coração do reino. A pequena hoste de poitainianos não era párea para eles. Prospero poderia ser capaz de defender Tarantia durante semanas, ou meses; mas, por fim, se não fosse auxiliado, render-se-ia à superioridade numérica dos inimigos. Certamente os barões iriam se reunir a ele contra os invasores. Mas, no momento, ele, Conan, ficaria indefeso numa cela escura, enquanto outros conduziam as lanças dele e lutavam pelo reino dele. O rei rangeu os dentes poderosos em fúria vermelha.

Logo, ele se enrijeceu ao ouvir um passo furtivo, do lado de fora da porta mais afastada. Forçando os olhos, percebeu uma figura curvada e indistinta do outro lado da grade. Havia um ruído de metal contra metal, e ele ouviu um tinido de trancas, como se uma chave tivesse sido girada na fechadura. Então, a figura se afastou silenciosamente de seu alcance visual. Algum guarda, pensou ele, testando a fechadura. Após algum tempo, ouviu o som ser repetido fracamente em algum lugar mais distante, e este era seguido pelo suave abrir de uma porta, e então, um rápido correr de pés suavemente calçados se retirando à distância. Logo, o silêncio caiu novamente.

Conan aguçou os ouvidos durante o que pareceu ser um longo tempo, mas não poderia ser, pois a lua ainda brilhava através do orifício escondido; mas ele não ouviu outro som. Ele finalmente mudou de posição, e suas correntes retiniram. Logo, ele ouviu outro passo, mais leve – um passo suave do lado de fora da porta mais próxima, a porta através da qual ele havia adentrado a cela. Um instante depois, uma figura delgada se destacou na luz cinza.

- Rei Conan! – uma voz suave entoou urgentemente – Ó, milorde, você está aí?

- Onde mais? – ele respondeu cautelosamente, torcendo a cabeça para o lado, a fim de fitar a aparição.

Era uma garota, que estava agarrando as grades com seus dedos delgados. O brilho fraco atrás dela lhe delineava o contorno flexível, através do punhado de seda enrolado ao redor de seus quadris, e brilhou vagamente em suas placas peitorais enfeitadas de jóias. Seus olhos escuros brilhavam nas sombras e seus membros brancos cintilavam suavemente, como alabastro. O cabelo dela era uma massa de espuma escura, diante do lustre polido, do qual a luz fraca era apenas uma insinuação.

- As chaves para seus grilhões e para a porta mais distante! – ela sussurrou, e uma delgada mão branca atravessou as grades e deixou cair três objetos, com um tinido, sobre as lajes ao lado dele.

- Que brincadeira é esta? – ele indagou – Você fala na língua nemédia, e eu não tenho amigos na Nemédia. Qual a diabrura que seu amo está fazendo agora? Ele lhe enviou aqui para zombar de mim?

- Não é zombaria. – A garota tremia violentamente. Com seus braceletes e placas peitorais colados contra as barras, ela ofegou: – Juro por Mitra! Roubei as chaves dos carcereiros negros. Eles são os guardiões dos fossos, e cada um carrega uma chave que abrirá apenas um conjunto de fechaduras. Eu os embriaguei. Aquele cuja cabeça você quebrou foi levado para um médico, e não pude obter a chave dele. Mas roubei as outras. Oh, por favor, não demore! Além destes calabouços ficam os fossos, que são as portas para o inferno!

Um tanto impressionado, Conan testou as chaves duvidoso, esperando encontrar apenas fracasso e um estouro de risada zombeteira. Mas ele ficou galvanizado ao descobrir que, de fato, uma lhe soltou de seus grilhões, derrubando não apenas a tranca que as prendia ao aro, mas as que lhe prendiam os membros. Poucos segundos depois, ele se erguia ereto, exultando ferozmente em sua relativa liberdade. Um rápido passo o levou até a grade, e seus dedos se fecharam ao redor de uma barra e do delgado pulso que se pressionava contra ela, segurando a dona, que ergueu bravamente o rosto em direção ao seu olhar feroz.

- Quem é você, garota? – ele indagou – Por que faz isto?

- Sou apenas Zenóbia – ela murmurou, num acesso de respiração ofegante, como se assustada –; apenas uma garota do harém do rei.

- A menos que isto seja uma maldita trapaça – murmurou Conan –, não vejo razão para você me trazer estas chaves.

Ela abaixou a cabeça escura, e logo a ergueu e olhou bem para dentro dos olhos desconfiados dele. Lágrimas cintilavam como jóias nos longos cílios dela.

- Sou apenas uma garota do serralho do rei. – ela disse, com certa humildade – Ele nunca olhou para mim, e provavelmente nunca o fará. Sou menos que um dos cães que roem os ossos em seu salão de banquetes.

“Mas eu não sou um brinquedo pintado; sou de carne e sangue. Eu respiro, odeio, sinto medo, me alegro e amo. E amo você, Rei Conan, desde quando lhe vi cavalgando à frente de seus cavaleiros pelas ruas de Belverus, quando você visitou o Rei Nimed, anos atrás. Meu coração saiu violentamente das costelas, para pular de meu peito e cair no pó da rua, sob os cascos de seu cavalo”.

O rosto dela corou enquanto falava, mas seus olhos escuros não vacilaram. Conan não respondeu logo; ele era selvagem, irascível e indomável, mas somente o mais bruto dos homens não seria tocado por certo pasmo ou admiração diante do desnudar da alma de uma mulher.

Então, ela inclinou a cabeça e pressionou os lábios vermelhos contra os dedos que lhe seguravam o pulso delgado. Logo, ela ergueu a cabeça, como se em súbita lembrança de sua posição, e o terror luziu em seus olhos escuros.

- Depressa! – ela sussurrou urgentemente – Já passa da meia-noite. Você deve ir embora.

- Mas, não irão lhe esfolar viva por ter roubado estas chaves?

- Eles nunca saberão. Se os negros se lembrarem, de manhã, de quem deu vinho a eles, não ousarão admitir que as chaves foram roubadas deles enquanto estavam bêbados. A chave que não consegui obter é a que destranca esta porta. Você deve abrir caminho para a liberdade através dos fossos. Quais os perigos medonhos que se ocultam através daquela porta, eu não consigo sequer imaginar. Mas perigos maiores lhe rondam, se você continuar nesta cela. O Rei Tarascus retornou...

- O quê? Tarascus?

- Sim! Ele havia retornado, em grande segredo; e, há não muito tempo, ele desceu para dentro dos fossos, e depois saiu novamente, pálido e trêmulo como um homem que havia ousado fazer algo muito arriscado. Eu o ouvi sussurrar ao escudeiro dele, Arideus, que, apesar da opinião de Xaltotun, você deveria morrer.

- E quanto a Xaltotun? – murmurou Conan. Ele sentiu o estremecimento dela.

- Não fale nele! – ela sussurrou – Demônios são freqüentemente convocados pelo som de seus nomes. Os escravos dizem que ele se encontra em seus aposentos, atrás de uma porta trancada, sonhando os sonhos do lótus negro. Creio que até mesmo Tarascus o teme secretamente, ou ele teria lhe matado abertamente. Mas ele esteve nos fossos esta noite, e o que fez lá, só Mitra sabe.

- Eu me pergunto se poderia ter sido Tarascus quem tateou na minha cela, há pouco tempo atrás. – murmurou Conan.

- Aqui está uma adaga! – ela sussurrou, empurrado algo através das barras. Os dedos ansiosos dele se fecharam sobre um objeto familiar ao seu toque – Vá logo por aquela porta, vire à esquerda e prossiga ao longo das celas, até chegar a uma escadaria de pedra. Por sua vida, não se desvie do caminho das celas! Suba a escada e abra a porta no topo; uma das chaves irá abri-la. Se for a vontade de Mitra, eu lhe esperarei lá. – Em seguida, ela foi embora, com um rufar de pés leves e calçados com chinelos.

Conan encolheu os ombros, e se voltou em direção à grade mais afastada. Isto poderia ser uma armadilha diabólica, planejada por Tarascus, mas mergulhar de ponta-cabeça numa cilada era menos detestável ao temperamento de Conan, do que ficar sentado pacificamente, à espera de seu destino. Ele examinou a arma que a garota havia lhe dado, e sorriu sombriamente. Quem quer que fosse a jovem, ela havia provado, através daquela adaga, ser uma pessoa de inteligência prática. Não era uma faca fina, escolhida porque tivesse um cabo com jóias ou uma guarda de ouro, adequada apenas para um delicado assassinato num quarto de damas; era um punhal, uma arma de guerreiro, com lâmina larga, de 38 centímetros de comprimento, se afilando até uma ponta bem afiada.

Ele grunhiu satisfeito. O contato com o cabo o animou e lhe deu um calor de confiança. Quaisquer redes de conspiração que estivessem ao seu redor, qualquer trapaça e traição que o laçassem, esta adaga era real. Os grandes músculos de seu braço direito incharam em expectativa por golpes assassinos.

Ele testou a porta mais afastada, estrondeando com as chaves enquanto o fazia. Não estava trancada. Mas ele se lembrou do negro trancando-a. Aquela furtiva figura curvada, então, não havia sido nenhum carcereiro vendo se as trancas estavam no lugar. Ao invés disso, ele havia destrancado a porta. Havia uma sugestão sinistra ao redor daquela porta destrancada. Mas Conan não hesitou. Ele abriu a grade com um empurrão, e andou, do calabouço para dentro da escuridão externa.

Como havia pensado, a porta não se abria para outro corredor. A porta caída se estendia sob seus pés, e a fileira de celas seguia à direita e esquerda atrás dele, mas ele não conseguia perceber os outros limites do lugar ao qual havia chegado. Não conseguia ver o teto, nem qualquer outra parede. O luar só se filtrava naquela vastidão através das grades das celas, e quase se perdia no escuro. Olhos menos agudos que os dele mal poderiam discernir as vagas manchas cinzas que pairavam diante da porta de cada cela.

Virando para a esquerda, ele se moveu rápida e silenciosamente ao longo da fileira de masmorras, seu pés descalços sem fazerem som algum nas lajes. Olhava brevemente para cada calabouço, enquanto passava. Estavam todos vazios, porém trancados. Em alguns, ele teve o vislumbre de desnudos ossos brancos. Estes fossos eram uma relíquia de uma era mais sombria, construídos há muito tempo, quando Belverus era mais uma fortaleza do que uma cidade. Mas, evidentemente, o uso mais recente deles havia sido mais amplo do que o mundo pensava.

À sua frente, logo depois, ele viu o vago contorno de uma escadaria, se inclinando abruptamente para cima, e percebeu que deveria ser a escada à qual procurava. Então, ele girou abruptamente, se agachando nas sombras profundas aos seus pés.

Em algum lugar atrás dele, algo se movia – algo volumoso e furtivo, que andava sobre pés que não eram humanos. Ele estava olhando para a longa fileira de celas, diante de cada qual havia um quadrado de vaga luz cinza, que era pouco mais que uma mancha de escuridão menos densa. O que era, ele não conseguiria dizer, mas era pesado e enorme, e mesmo assim se movia com facilidade e rapidez mais que humanas. Ele vislumbrou a coisa enquanto ela se movia através dos quadrados de cinza, e logo a perdeu de vista quando ela se fundiu às vastidões intermediárias de sombra. Era misteriosa, em seu avanço furtivo, aparecendo e sumindo de vista, como um borrão.

Ele ouviu as grades retinirem, enquanto a coisa testava cada uma das portas em seqüência. Agora, havia alcançado a cela que ele havia tão recentemente abandonado, e a porta se abriu quando a coisa a puxou. Ele viu uma grande forma volumosa se delinear fraca e brevemente na portada cinza, e então a coisa desapareceu dentro da masmorra. O suor brotava no rosto e nas mãos de Conan. Agora ele sabia por que Tarascus havia chegado tão sutilmente à sua porta, e depois fugira tão rapidamente. O rei havia lhe destrancado a porta e, em algum lugar nestes fossos infernais, havia aberto uma cela ou jaula que prendia alguma monstruosidade sombria.

Agora a coisa estava saindo da cela, e avançava novamente pelo corredor, com a cabeça disforme próxima ao chão. Ela não prestava mais atenção às portas trancadas. Estava farejando sua presa. Ele a via mais claramente agora; a luz cinza delineava um gigantesco corpo antropomórfico, mas com um volume e cintura muito mais amplos que os de qualquer homem. Andava sobre duas pernas, embora se curvasse para a frente, e era cinzento e peludo, e sua pelagem curta era raiada de prata. Sua cabeça era uma paródia medonha da humana, e seus braços longos pendiam próximos ao chão.

Conan finalmente soube e entendeu o significado daqueles ossos esmagados e quebrados no calabouço, e reconheceu a assombração dos fossos. Era um macaco cinza, um dos pavorosos devoradores de homens, das florestas que ondulam nas montanhosas praias orientais do Mar de Vilayet. Meio míticos e completamente horríveis, estes macacos eram os duendes das lendas hiborianas, e eram na realidade os ogros do mundo natural, canibais e assassinos das florestas escuras.

Ele sabia que a coisa havia farejado sua presença, pois ela agora se aproximava rapidamente, rolando velozmente seu corpo em forma de barril sobre suas pernas curtas, poderosas e arqueadas. Ele ergueu rapidamente o olhar para a longa escadaria, mas percebeu que a coisa estaria em suas costas antes que ele pudesse subir até a porta distante. Ele escolheu enfrentá-lo face a face.

Conan adentrou o quadrado mais próximo de luar, para ter toda a vantagem de iluminação que pudesse; pois a fera, ele sabia, conseguia enxergar melhor que ele próprio no escuro. Instantaneamente, a fera o viu; suas presas amarelas brilhavam no escuro, mas ela não fez som. Criaturas da noite e do silêncio, os macacos cinzentos do Vilayet não tinham voz. Mas, em suas feições distintas e hediondas, as quais eram uma caricatura bestial de um rosto humano, aparecia uma medonha alegria.

Conan se manteve em equilíbrio, observando, sem um tremor, o monstro que se aproximava. Ele sabia que arriscaria sua vida com uma estocada; não haveria chance para outra, nem haveria tempo para atacar e pular fora. O primeiro golpe deveria matar, e matar instantaneamente, se ele esperava sobreviver àquela terrível luta corpo-a-corpo. Ele percorreu o olhar sobre o curto pescoço quadrado, a peluda e enorme barriga, e o peito poderoso, inchado em arcos gigantes como escudos gêmeos. Tinha que ser o coração; melhor correr o risco da lâmina ser desviada pelas costelas espessas, do que atacar onde um golpe não seria instantaneamente fatal. Com total conhecimento das possibilidades, Conan pôs sua rapidez de olhos e mão, e sua força muscular, contra a força bruta e ferocidade do antropófago. Ele deveria enfrentar a fera peito a peito, dar um golpe mortal e então confiar no vigor de sua estrutura para sobreviver ao instante de uso de força muscular, que ele certamente passaria.

Quando o macaco se aproximou em sua direção, balançando largamente os braços terríveis, o cimério pulou para dentro deles e golpeou com toda a sua força desesperada. Ele sentiu a lâmina afundar até o cabo no peito peludo, e instantaneamente largou o cabo, abaixou a cabeça e contraiu o corpo inteiro numa massa compacta de músculos unidos, e, enquanto fazia isso, ele agarrou os braços que se fechavam e bateu ferozmente o joelho na barriga do monstro, firmando-se contra aquele aperto esmagador.

Por um vertiginoso instante, ele se sentiu como se estivesse sendo desmembrado no aperto de um terremoto; logo, ele estava subitamente livre, esparramado no chão, e o monstro arfava moribundo sob ele, seus olhos vermelhos virados para o alto, o cabo do punhal estremecendo em seu peito. Sua desesperada facada havia encontrado seu alvo.

Conan ofegava como se após um longo conflito, com todos os membros tremendo. Algumas de suas articulações doíam como se houvessem sido deslocadas, e o sangue pingava de arranhões no seu lado, onde as garras do monstro haviam rasgado; seus músculos e tendões haviam sido selvagemente puxados e torcidos. Se a fera tivesse vivido mais um segundo, ela certamente o teria desmembrado. Mas a enorme força do cimério havia resistido, pelo instante fugaz que havia durado, à convulsão moribunda do macaco, a qual teria rasgado, membro a membro, um homem mais fraco.


6) A Estocada de Uma Faca

CONAN SE CURVOU E arrancou a faca do peito do monstro. Então, subiu rapidamente a escadaria. Que outras formas de medo a escuridão abrigava, ele não conseguia imaginar, mas não tinha desejo de encontrar qualquer outra. Aquela maneira arriscada de luta havia sido esforçada demais, até mesmo para o gigante cimério. O luar estava se afastando do chão, as trevas se fechando, e algo semelhante ao pânico o perseguia escada acima. Ele deu suspiro borrascoso de alívio, quando alcançou o topo e sentiu a terceira chave girar dentro da fechadura. Ele abriu levemente a porta, e esticou o pescoço para espiar através dela, meio esperando um ataque de algum inimigo humano ou bestial.

Olhou para dentro de um corredor de pedra nua, fracamente iluminado, e uma figura esguia e flexível se erguia diante da porta.

- Majestade! – Era uma exclamação baixa e vibrante, meio aliviada e meio temerosa. A garota lançou-se para o lado dele, e então hesitou, como se desconcertada.

- Você está sangrando. – ela disse – Você foi ferido!

Ele pôs a implicação de lado com uma mão impaciente.

- Arranhões que não feririam um bebê. Seu espeto, no entanto, me foi útil. Se não fosse por ele, o macaquinho de Tarascus estaria agora quebrando os ossos de minhas canelas, em busca de tutano. Mas e agora?

- Siga-me! – ela sussurrou – Vou lhe guiar para fora dos muros da cidade. Tenho um cavalo escondido lá.

Ela deu a volta para ir à frente pelo corredor, mas ele pôs uma mão pesada no ombro nu dela.

- Caminhe ao meu lado. – ele a recomendou suavemente, passando o braço volumoso ao redor da cintura esguia dela – Você agiu corretamente comigo, e estou disposto a acreditar em você; mas eu vivi até hoje, porque nunca confiei demais em alguém, fosse homem ou mulher. Portanto, se a partir de agora, você me trair, não viverá para apreciar a brincadeira.

Ela não vacilou ao ver o punhal avermelhado, nem ao sentir o contato dos músculos sólidos ao redor do corpo flexível.

- Mate-me sem piedade, se eu lhe trair. – ela respondeu – A simples sensação de seu braço ao meu redor, mesmo em ameaça, é como a realização de um sonho.

O corredor abobadado terminou numa porta, a qual ela abriu. Do lado de fora, jazia outro negro, um gigante usando tanga de seda e turbante, com uma espada curva sobre as lajes e próxima ao seu cinto. Ele não se movia.

- Eu droguei o vinho dele. – ela sussurrou, se desviando para evitar a forma deitada – Ele é o último e mais externo guardião dos fossos. Ninguém nunca escapou deles antes; e ninguém nunca desejou buscá-los; assim, apenas estes negros os guardam. Apenas eles, dentre todos os servos, sabiam que era o Rei Conan a quem Xaltotun trouxe prisioneiro em sua carruagem. Eu estava observando, sem sono, de um batente de janela no alto, o qual se abria para o pátio, enquanto as outras garotas dormiam; pois eu sabia que uma batalha estava sendo lutada, ou havia sido lutada, a oeste, e eu temia por você...

“Vi os negros lhe carregarem escada acima, e lhe reconheci sob a luz das tochas. Escapuli para dentro desta ala do palácio esta noite, a tempo de vê-los lhe carregando para os fossos. Eu não ousaria vir para cá antes do cair da noite. Você deve ter jazido em inconsciência drogada o dia todo, nos aposentos de Xaltotun.

“Oh, sejamos cautelosos! Coisas estranhas estão acontecendo no palácio esta noite. Os escravos disseram que Xaltotun dormiu como sempre dorme, drogado pelo lótus da Stygia, mas Tarascus está no palácio. Ele entrou secretamente através do pequeno portão dos fundos, envolto em seu manto, o qual estava poeirento como se de uma longa viagem, e acompanhado apenas por seu escudeiro, o magro e silencioso Arideus. Não consigo entender, mas estou com medo”.

Eles foram até o pé de uma escadaria longa e serpenteante, e, após subirem-na, passaram através de um estreito painel, ao qual ela empurrou para um lado. Quando o atravessaram, ela o empurrou de volta ao lugar, e ele se tornou meramente uma parte da parede ornamentada. Eles estavam num corredor mais espaçoso, com tapetes e tapeçarias, sobre o qual lampiões pendurados lançavam um brilho dourado.

Conan aguçou atentamente a audição, mas não ouviu som algum por todo o palácio. Ele não sabia em que parte do palácio estava, nem em qual direção ficavam os aposentos de Xaltotun. A garota tremia enquanto o guiava ao longo do corredor, para parar dentro em pouco, ao lado de uma alcova disfarçada com tapeçaria de cetim. Empurrando esta, ela gesticulou para ele entrar no nicho, e sussurrou:

- Espere aqui! Além daquela porta no final do corredor, podemos encontrar escravos ou eunucos a qualquer hora do dia ou da noite. Irei para ver se o caminho está livre, antes de o experimentarmos.

Instantaneamente, suas suspeitas foram despertadas:

- Está me levando para uma armadilha?

Lágrimas brotaram dos olhos escuros dela. Ela caiu de joelhos e agarrou-lhe a mão musculosa:

- Ó, meu rei, não desconfie de mim agora! – A voz dela tremia com urgência desesperada – Se você duvidar e hesitar, estaremos perdidos! Por que eu lhe tiraria dos fossos para lhe trair agora?

- Tudo bem. – ele sussurrou – Confiarei em você; mas, por Crom, os hábitos de toda uma vida não são tão facilmente postos de lado. Mas eu não vou lhe fazer mal agora, mesmo que você traga todos os espadachins da Nemédia contra mim. Se não fosse por você, o maldito macaco de Tarascus teria vindo para cima de mim acorrentado e desarmado. Faça como quiser, garota.

Beijando-lhe as mãos, ela pulou graciosamente para cima e correu pelo corredor, até sumir por uma pesada porta dupla.

Ele a olhou, perguntando a si mesmo se era um tolo para confiar nela; logo, ele encolheu os ombros poderosos e juntou as cortinas de cetim, ocultando seu refúgio. Não era estranho que uma apaixonada beleza jovem arriscasse sua vida para ajudá-lo; tais coisas haviam acontecido de forma bastante freqüente em sua vida. Muitas mulheres o haviam estimado, em seus dias de perambulações e no tempo de seu reinado.

Mas ele não ficou imóvel na alcova, esperando pelo retorno dela. Seguindo seus instintos, ele explorou o nicho em busca de outra saída, e logo achou uma: a abertura de uma passagem estreita, oculta por tapeçarias, que seguia para uma porta com entalhes ornamentados, mal visível na luz fosca que se infiltrava desde o corredor externo. E, ao olhar para dentro dela, em algum lugar além daquela porta esculpida, ele ouviu o som de outra porta se abrindo e fechando, e em seguida, um baixo murmúrio de vozes. O som familiar de uma daquelas vozes fez uma expressão sinistra lhe cruzar o rosto moreno. Sem hesitar, ele deslizou pela passagem e se agachou como uma pantera à espreita, ao lado da porta. Ela não estava trancada e, manipulando-a delicadamente, ele a abriu com um estalo, num indiferente descaso por possíveis conseqüências, que só ele poderia explicar ou justificar.

Ela estava oculta por tapeçarias no outro lado, mas, através de um talho no veludo, ele olhou para dentro de uma câmara, iluminada apenas por uma vela numa mesa de ébano. Havia dois homens naquela câmara. Um deles era um bandido cicatrizado, de aparência sinistra, usando calças de couro e manto esfarrapado; o outro era Tarascus, rei da Nemédia.

Tarascus não parecia estar à vontade. Estava ligeiramente pálido, e continuava sobressaltado e olhando ao redor de si, somo se esperando e temendo ouvir algum som ou passo.

- Vá rápido e de uma vez. – ele dizia – Ele está num profundo sono drogado, mas não sei quando pode acordar.

- Estranho ouvir palavras de medo saindo dos lábios de Tarascus. – roncou o outro numa voz áspera e profunda.

O rei franziu a testa:

- Eu não temo homens comuns, como você bem sabe. Mas, quando vi os penhascos caírem em Valkia, percebi que aquele demônio, ao qual havíamos ressuscitado, não era charlatão. Eu temo os poderes dele, pois não conheço sua total extensão. Mas sei que, de alguma forma, estão ligados a esta coisa maldita, a qual roubei para ele. Ela o trouxe à vida; então, ela deve ser a fonte de sua feitiçaria.

“Ele a escondeu bem escondida; mas, seguindo minha ordem secreta, um escravo o espionou, o viu colocá-la num cofre dourado e viu onde ele escondeu o cofre. Mesmo assim, eu não ousaria roubá-la se o próprio Xaltotun não estivesse mergulhado no sono do lótus.

“Acredito que ela é o segredo de seu poder. Com ela, Orastes o trouxe de volta à vida. Com ela, ele escravizará a todos nós, se não tomarmos cuidado. Então, leve-a e jogue-a no mar, como lhe ordenei. E certifique-se de estar tão longe da terra, que nem maré nem tempestade a arrastem para a praia. Você foi pago”.

- Sim, eu fui. – grunhiu o bandido – Eu lhe devo mais do que ouro, majestade; eu lhe tenho um débito de gratidão. Até mesmo ladrões podem ser gratos.

- Qualquer débito que você possa achar que tem comigo – respondeu Tarascus – será pago, quando você houver arremessado esta coisa dentro do mar.

- Cavalgarei para Zingara e pegarei um navio em Kordava. – prometeu o outro – Não ouso mostrar minha cabeça em Argos, por causa de um assunto a respeito de um assassinato...

- Não me importo, desde que você o faça. Aqui está ela; um cavalo lhe aguarda no pátio. Vá, e vá rápido!

Algo passou entre eles; algo que ardia como fogo vivo. Conan teve apenas um breve vislumbre daquilo; e logo, o bandido puxou um chapéu desleixado sobre os olhos, ajustou o manto sobre os ombros e saiu rapidamente da sala. E, quando a porta se fechou atrás dele, Conan se moveu com a fúria devastadora de uma desacorrentada sede de sangue. Ele havia se mantido em autocontrole até onde pôde. A visão de seu inimigo, tão perto dele, colocou-lhe o sangue selvagem fervendo, e varreu para longe toda a cautela e prudência.

Tarascus se dirigia a uma porta interna, quando Conan empurrou as cortinas para o lado e saltou para dentro da sala, como uma pantera louca por sangue. Tarascus deu a volta, mas, antes mesmo que pudesse reconhecer seu atacante, o punhal de Conan o rasgou.

Mas o golpe não foi mortal, como Conan percebeu no momento em que atacou. Seu pé havia se enroscado numa dobra das cortinas, e o fez tropeçar enquanto saltava. A ponta do punhal havia cortado o ombro de Tarascus e lhe arranhado as costelas, e o rei da Nemédia gritou.

O impacto do golpe, e a investida do corpo de Conan, o lançaram de costas contra a mesa; esta caiu e a vela voou longe. Ambos foram levados ao chão pela violência da investida de Conan, e a parte baixa da tapeçaria tolheu os dois em suas dobras. Conan esfaqueava cegamente no escuro e Tarascus gritava num frenesi de terror e pânico. Como o pânico lhe deu energia super-humana, Tarascus se soltou com um puxão e se afastou aos tropeções no escuro, guinchando:

- Socorro! Guardas! Arideus! Orastes! Orastes!

Conan se levantou, livrando-se, aos chutes, das tapeçarias emaranhadas e mesas quebradas, praguejando com a amargura de sua sede frustrada de sangue. Ele estava confuso, e não conhecia a planta do palácio. Os gritos de Tarascus ainda ressoavam à distância, e um alarido selvagem explodia em resposta. O nemédio havia escapado dele na escuridão, e Conan não sabia por qual caminho ele tinha ido. O ataque precipitado do cimério havia falhado, e só restava a tarefa de salvar a própria pele, se ele pudesse.

Praguejando sinistramente, Conan correu de volta pela passagem e para dentro da alcova, olhando para fora, em direção ao corredor iluminado, no exato momento em que Zenóbia veio correndo por ele, com os olhos escuros dilatados de terror.

- Oh, o que aconteceu? – ela gritou – O palácio está em agitação! Eu juro que não lhe traí...

- Não; fui eu que mexi nesse ninho de marimbondos. – ele grunhiu – Tentei saldar uma dívida. Qual o caminho mais curto para fora daqui?

Ela pegou-lhe o pulso e correu velozmente pelo corredor. Mas, antes que eles alcançassem a pesada porta na outra extremidade, gritos abafados se ergueram atrás dela, e as portadas começaram a estremecer sob o ataque do outro lado. Zenóbia torceu as mãos e choramingou.

- Estamos perdidos! Tranquei aquela porta, quando retornei através dela. Mas irão arrombá-la num instante. O caminho para o pequeno portão dos fundos é através dela.

Conan girou. De outro lado do corredor, embora ainda fora de vista, ele ouviu um clamor crescente, o qual lhe dizia que seus inimigos estavam tanto atrás dele quanto à sua frente...

- Rápido! Pra dentro desta porta! – a garota gritou desesperadamente, indo velozmente pelo corredor e abrindo violentamente a porta de uma sala.

Conan a seguiu através dela, e logo puxou a tranca de ouro atrás deles. Eles se encontravam numa câmara com mobílias ornamentadas, vazia exceto por eles, e ela o puxou para uma janela com barras de ouro, através da qual ele viu árvores e arbustos.

- Você é forte. – ela arfou – Se puder arrancar estas grades, você ainda pode escapar. O jardim está cheio de guardas, mas os arbustos são espessos, e você pode evitá-los. A muralha sul é também a muralha externa da cidade. Uma vez sobre ela, você tem uma chance de escapar. Há um cavalo escondido para você, num matagal ao lado da estrada que corre para oeste, poucas centenas de passos ao sul da fonte de Thrallos. Você sabe onde fica?

- Sim! Mas e quanto a você? Eu pretendia lhe levar comigo.

Uma maré de alegria iluminou o belo rosto dela.

- Então, minha taça de alegria está cheia até a borda! Mas não quero impedir sua fuga. Sobrecarregado comigo, você falharia. Não, não tema por mim. Eles nunca suspeitarão que eu lhe ajudei de boa vontade. Vá! O que você acabou de dizer glorificará minha vida através dos longos anos.

Ele a tomou nos braços de ferro, apertou-lhe a forma esguia e vibrante contra ele e a beijou ferozmente nos olhos, bochechas, pescoço e lábios, até ela ofegar em seu abraço; borrascosa e tempestuosa como o vento de um temporal, até sua forma de fazer amor era violenta.

- Eu vou. – ele murmurou – Mas, por Crom, voltarei para você algum dia!

Girando, ele agarrou as barras douradas e as arrancou de seus encaixes com um tremendo puxão; lançou uma perna sobre o parapeito e desceu rapidamente, se agarrando aos enfeites no muro. Alcançou o chão correndo, e desapareceu como uma sombra dentro do labirinto de roseiras altas e árvores expandidas. O único olhar que lançou para trás, por cima do ombro, mostrou-lhe Zenóbia se inclinando sobre o parapeito da janela, seus braços estendidos atrás dele em mudo adeus e renúncia.

Guardas corriam pelo jardim, todos eles convergindo em direção ao palácio, onde o clamor ficou momentaneamente mais alto – homens altos, em couraças polidas e elmos de bronze polido, com cristas. A luz das estrelas reluzia em suas armaduras brilhantes, por entre as árvores, traindo-lhes todo e qualquer movimento; mas o som de suas chegadas era baixo para eles. Para Conan, nascido e criado na selva, o movimento deles através dos arbustos era como o gado em desajeitado estouro de manada. Alguns deles passaram a poucos passos de onde ele se encontrava, estendido dentro de um espesso amontoado de moitas, e jamais imaginaram sua presença. Tendo o palácio como meta, estavam esquecidos de tudo o mais que estivesse ao redor. Quando eles haviam sumido aos gritos, ele se levantou e fugiu pelo jardim, sem fazer mais barulho que uma pantera.

Assim, ele rapidamente chegou à muralha sul, e subiu os degraus que levavam ao parapeito. O muro era feito para manter as pessoas do lado de fora, e não dentro. Não se via sentinela alguma patrulhando as ameias. Agachando-se num espaço entre duas ameias, ele olhou para trás, em direção ao grande palácio que se erguia acima dos ciprestes às suas costas. Luzes ardiam em cada janela, e ele pôde ver figuras correndo para frente e para trás, através delas, como marionetes em cordões invisíveis. Ele deu um sorriso largo e duro, sacudiu o punho num gesto de adeus e ameaça, e se lançou pela beirada externa do parapeito.

Uma árvore baixa, poucos metros abaixo do parapeito, recebeu o peso de Conan, quando ele caiu silenciosamente através dos galhos. Um instante depois, ele estava correndo através das sombras, com as passadas largas e desembaraçadas de um montanhês, as quais cobrem longas milhas.

Jardins e casas de campo cercavam os muros de Belverus. Escravos sonolentos, dormindo em suas lanças de guardas, não viram a figura rápida e furtiva que escalava muros, cruzava becos feitos pelos galhos abobadados das árvores, e traçava um caminho silencioso através de pomares e vinhedos. Cães de guarda acordavam e erguiam seus bramidos profundos diante de uma sombra deslizante, meio farejando e meio sentindo, e depois tudo isso passava.

Numa câmara do palácio, Tarascus se contorcia e praguejava, num leito salpicado de sangue, sob os dedos hábeis e rápidos de Orastes. O palácio estava cheio de criados trêmulos com olhos arregalados, mas os aposentos onde o rei se encontrava deitado estavam vazios, exceto por ele e o sacerdote renegado.

- Tem certeza de que ele ainda dorme? – Tarascus indagou novamente, apertando os dentes devido ao ardor do suco de ervas, com o qual Orastes estava enfaixando o corte longo e irregular em seu ombro e costelas – Por Ishtar, Mitra e Set! Isso queima como o piche derretido do inferno!

- Coisa que você estaria experimentando agora mesmo, se não fosse por sua boa sorte. – comentou Orastes – Quem quer que haja brandido aquela faca, atacou para matar. Sim, eu já lhe disse que Xaltotun ainda dorme. Por que insiste tanto nisso? O que ele tem a ver com isto?

- Você não sabe nada do que aconteceu no palácio esta noite? – Tarascus examinou a fisionomia do sacerdote com intensidade ardente.

- Nada. Como você sabe, eu fui empregado na tradução de manuscritos para Xaltotun, por alguns meses, transcrevendo volumes esotéricos escritos nos idiomas mais jovens para uma escrita que ele possa ler. Ele é bem versado em todas as línguas e escritas de sua época, mas ainda não aprendeu todas as linguagens novas, e para poupar tempo, ele tem a mim para traduzir estes trabalhos, para saber se algum conhecimento novo foi descoberto desde sua época. Eu não sabia que ele havia retornado na noite passada, até ele ter mandado me chamar e contado sobre a batalha. Logo, retornei aos meus estudos, e nem sabia que você havia retornado, até o clamor no palácio me tirar do meu cubículo.

- Então, você não sabe que Xaltotun trouxe o rei da Aquilônia como prisioneiro a este palácio?

Orastes balançou negativamente a cabeça, sem muita surpresa:

- Xaltotun apenas disse que Conan não iria mais se opor a nós. Achei que ele tivesse caído em batalha, mas não perguntei os detalhes.

- Xaltotun salvou a vida dele quando eu pretendia matá-lo. – rosnou Tarascus – Vi instantaneamente o propósito dele. Ele manteria Conan prisioneiro para usá-lo como um peão contra nós... contra Almaric, contra Valerius e contra mim mesmo. Enquanto Conan viver, ele será uma ameaça, um elemento de unificação para a Aquilônia, que pode ser usado para nos obrigar a seguir rumos que, de outro modo, não seguiríamos. Desconfio deste pythoniano morto-vivo. Depois comecei a temê-lo.

“Eu o segui, algumas horas depois que ele partiu para leste. Eu desejava saber o que ele pretendia fazer com Conan. Descobri que ele o havia aprisionado nos fossos. Eu pretendia ver o bárbaro morto, apesar de Xaltotun. E consegui...”.

Uma batida cuidadosa soou na porta.

- É Arideus. – grunhiu Tarascus – Deixe-o entrar.

O escudeiro sombrio entrou, com os olhos ardendo em agitação reprimida.

- Como vai, Arideus? – exclamou Tarascus – Já encontrou o homem que me atacou?

- Você não o viu, milorde? – perguntou Arideus, como alguém convicto de um fato cuja existência já conhece – Você não o reconheceu?

- Não. Aconteceu tão rápido, e a vela estava caída e apagada... tudo o que pude achar é que foi algum demônio, solto contra mim pela magia de Xaltotun...

- O pythoniano dorme em seu quarto gradeado e trancado. Mas eu estive nos fossos. – Arideus contraiu os ombros magros, agitado.

- Bem... fale, homem! – exclamou Tarascus impacientemente – O que você encontrou lá?

- Um calabouço vazio. – sussurrou o escudeiro – O cadáver de um enorme macaco!

- O quê? – Tarascus começou a se levantar, e o sangue jorrou de seu ferimento aberto.

- Sim! O devorador de homens recebeu uma facada mortal no coração... e Conan se foi!

Tarascus estava com o rosto sombrio, quando mecanicamente permitiu que Orastes o forçasse a se deitar novamente, e o sacerdote voltou a cuidar de sua carne cortada.

- Conan! – ele repetiu – Nenhum cadáver esmagado... escapou! Mitra! Ele não é um homem, mas um demônio! Eu pensei que Xaltotun fosse o responsável por este ferimento. Agora eu vejo. Deuses e demônios! Foi Conan quem me esfaqueou! Arideus!

- Sim, majestade!

- Procure em cada canto do palácio. Ele pode estar se escondendo agora pelos corredores, como um tigre faminto. Não deixe nenhum nicho escapar de sua averiguação, e tome cuidado! Não é um homem civilizado que você está caçando, mas um bárbaro louco por sangue, cuja força e ferocidade são as de uma fera selvagem. Esquadrinhe as plantas de cada palácio e a cidade. Lance um cordão de isolamento ao redor das muralhas. Se você achar que ele escapou da cidade, como ele bem pode fazer, pegue uma tropa de cavaleiros e siga-o. Uma vez transpondo as muralhas, será como caçar um lobo através das colinas. Mas se apresse, e você ainda pode pegá-lo.

- Isto é um assunto que requer mais do que inteligência humana. – disse Orastes – Talvez devêssemos pedir conselho a Xaltotun.

- Não! – exclamou Tarascus violentamente – Deixe os soldados de cavalaria perseguirem Conan e o matarem. Xaltotun não poderá guardar nenhum rancor contra nós, se matarmos um prisioneiro para evitar sua fuga.

- Bem – disse Orastes –, eu não sou acheroniano, mas sou versado em algumas artes místicas, e tenho o controle de certos espíritos que se disfarçam de substância material. Talvez eu possa lhe ajudar neste assunto.

A fonte de Thrallos ficava num aro de carvalhos agrupados, ao lado de uma estrada a uma milha das muralhas da cidade. Seu tilintar musical alcançou os ouvidos de Conan, através do silêncio da luz das estrelas. Ele bebeu intensamente de sua água gelada, e logo se apressou para o sul, em direção a um pequeno e espesso matagal que ele viu lá. Contornando-o, viu um grande cavalo branco amarrado entre os arbustos. Com um suspiro profundo e borrascoso, ele o alcançou com uma passada larga... uma risada zombeteira o fez aguçar o olhar feroz ao redor.

Uma figura, de brilho fosco e vestida em cota-de-malha, saiu das sombras em direção à luz das estrelas. Não era nenhum emplumado e polido guarda do palácio. Era um homem alto, usando um morion e uma cota-de-malha cinza – um dos Aventureiros, uma classe de guerreiros peculiar à Nemédia; homens que nunca alcançaram a riqueza e a posição da cavalaria, ou que caíram desse estado; lutadores endurecidos, que dedicavam suas vidas à guerra e à aventura. Constituíam uma classe peculiar, às vezes comandando tropas, mas eles próprios não se responsabilizavam diante de ninguém, exceto do rei. Conan percebeu que havia sido descoberto por alguém não menos perigoso que um inimigo.

Um rápido olhar por entre as sombras o convenceu de que o homem estava só, e ele expandiu ligeiramente o grande peito, cravando os dedos dos pés na terra enquanto os músculos se enroscavam, retesados.

- Eu estava cavalgando para Belverus, a interesse de Amalric. – disse o Aventureiro, avançando cautelosamente. A luz das estrelas era um brilho comprido, na grande espada de cabo longo que ele trazia desembainhada na mão – Um cavalo relinchou para o meu, desde a espessura. Investiguei, e achei estranho um corcel amarrado aqui. Esperei... e eis que peguei um prêmio raro.

Os Aventureiros viviam por suas próprias espadas.

- Eu lhe conheço. – murmurou o nemédio – Você é Conan, rei da Aquilônia. Pensei ter lhe visto morrer no vale do Valkia, mas...

Conan saltou como um tigre moribundo. Apesar do Aventureiro ser um lutador prático, ele não percebeu a desesperada rapidez que se esconde em tendões bárbaros. Ele foi pego de guarda aberta, sua pesada espada meio erguida. Antes que ele pudesse golpear ou desviar, o punhal do rei se cravou em sua garganta, acima da proteção metálica para o pescoço, se inclinando para dentro de seu coração. Com um gorgolejo sufocado, ele cambaleou e caiu, e Conan puxou impiedosamente a lâmina enquanto sua vítima caía. O cavalo branco bufou violentamente e se assustou diante da visão e do odor de sangue na espada.

Descendo o olhar para seu inimigo sem vida, o punhal lhe pingando na mão e o suor lhe brilhando no peito largo, Conan se erguia como uma estátua, escutando atentamente. Nas matas ao redor, não havia som, exceto pelo pio sonolento de pássaros acordados. Mas na cidade, a uma milha de distância, ele ouviu o clangor estridente de uma trombeta.

Apressadamente, ele se curvou sobre o homem caído. Uma busca de poucos segundos o convenceu de que qualquer mensagem, que o homem pudesse trazer, era para ser transmitida oralmente. Mas ele não parou em sua tarefa. Poucos minutos depois, o cavalo branco galopava para oeste, ao lado da estrada branca, e o cavaleiro vestia a cota-de-malha cinza de um Aventureiro nemédio.


7) O Rasgar do Véu

CONAN SABIA QUE SUA única chance de escapar estava na rapidez. Ele nem sequer ponderou sobre se esconder em algum lugar próximo a Belverus, até a perseguição acabar; era certo que o aliado sobrenatural de Tarascus fosse capaz de desentocá-lo. Além disso, ele não era de se esgueirar ou esconder; uma luta aberta ou uma perseguição aberta, ambas se ajustavam melhor ao seu temperamento. Ele teve um bom começo, sabia. Ele os guiaria a uma longa corrida para a fronteira.

Zenóbia havia escolhido bem ao selecionar o cavalo branco. Sua rapidez, tenacidade e resistência eram óbvias. A jovem conhecia armas e cavalos, e, Conan refletiu com certa satisfação, ela conhecia homens. Ele cavalgou para oeste num galope que devorava as milhas.

Ele cavalgava numa terra adormecida, passando por aldeias abrigadas por arvoredos e vilas com muralhas brancas, entre campos espaçosos e pomares que ficavam mais esparsos, à medida que ele viajava para oeste. Quando as aldeias rarearam, a terra ficou mais acidentada, e as fortalezas que carranqueavam no alto de elevações falaram de séculos de guerras na fronteira. Mas ninguém cavalgou para fora daqueles castelos, para lhe desafiar ou parar. Os lordes das fortalezas estavam seguindo a bandeira de Amalric; as flâmulas que estavam habituadas a ondular sobre estas torres, agora pairavam sobre as planícies aquilonianas.

Quando a última aldeia agrupada sumiu atrás dele, Conan deixou a estrada, a qual estava começando a se curvar para noroeste, em direção ao distante desfiladeiro. Continuar na estrada significaria passar por torres da fronteira, ainda guarnecidas por homens armados, que não o permitiriam passar sem lhe fazer indagações. Ele sabia que não haveria patrulhas cavalgando pelas fronteiras em ambos os lados, como em tempos comuns, mas havia essas torres e, pela manhã, provavelmente haveria cavalgadas de soldados retornando com homens feridos para carros de boi.

Esta estrada desde Belverus era a única que cruzava a fronteira por 24 km de norte a sul. Ele seguia uma série de desfiladeiros pelas colinas e, a cada lado, havia uma vasta extensão de montanhas selvagens e escassamente povoadas. Ele manteve sua devida direção para oeste, pretendendo cruzar a fronteira na profundezas das florestas das colinas que ficavam ao sul dos desfiladeiros. Era uma rota mais curta e árdua, porém mais segura para um fugitivo caçado. Um homem a cavalo poderia cruzar uma região à qual um exército pudesse achar intransponível.

Mas ao amanhecer, ele não havia alcançado as colinas; eram uma longa e baixa trincheira azul ao longo do horizonte à sua frente. Aqui não havia fazendas, nem aldeias e nem vilas de muros brancos avultando entre agrupamentos de árvores. O vento da manhã agitava a grama dura, e nada havia além das elevações longas e ondulantes de terra marrom, cobertas por capim seco; e, à distância, os muros desolados de uma fortaleza numa colina baixa. Muitos incursores aquilonianos haviam cruzado as montanhas, em dias não muito distantes, para o campo ser densamente povoado quando se estava bem a leste.

A aurora corria como fogo pelo capim, e lá no alto soou um grito estranho, como se uma cunha solitária de gansos selvagens voasse rapidamente para o sul. Num terreno baixo e cheio de capim, Conan parou e tirou a sela de sua montaria. O lado desta ofegava, seus pêlos emplastados de suor. Ele a havia impelido impiedosamente durante as horas que precederam a aurora.

Enquanto o cavalo mastigava o frágil capim e oscilava, Conan estava no topo de uma baixa inclinação, olhando fixamente para leste. Bem longe ao norte, ele podia ver a estrada que havia abandonado, se estirando como uma fita branca sobre uma subida distante. Nenhum ponto preto se movia ao longo daquela fita brilhante. Não havia sinal, ao redor do castelo à distância, o qual indicasse que os guardas haviam percebido o viajante solitário.

Uma hora depois, a terra ainda se estendia nua. O único sinal de vida era um brilho de aço nas distantes ameias, e um corvo no céu, girando para trás e para a frente, mergulhando e subindo como se procurando alguma coisa. Conan montou e cavalgou para oeste, num passo mais despreocupado.

Quando ele subiu o topo mais afastado da inclinação, um grito rouco estourou sobre sua cabeça e, olhando para cima, ele viu o corvo batendo as asas bem acima dele e crocitando incessantemente. Enquanto Conan continuava cavalgando, o corvo o seguia, mantendo sua posição e tornando a manhã horrenda com seus gritos estridentes, sem dar atenção aos esforços do cimério em expulsá-lo.

Isto continuou durante horas, até os dentes de Conan rangerem, e ele se sentir capaz de dar metade do seu reino para poder torcer aquele pescoço negro.

- Diabos do inferno! – ele rugiu em fúria inútil, sacudindo o punho encouraçado para o pássaro desvairado – Por que me atormenta com seus guinchos? Vá embora, sua cria negra de perdição, e vá bicar trigos nos campos das fazendas!

Ele estava subindo aquele primeiro declive das colinas, e parecia ouvir um eco do clamor do pássaro, bem atrás de si. Girando o cavalo que montava, ele dentro em pouco percebeu outro ponto preto, pendente no azul. Além daquilo, ele captou o brilho do sol da tarde no aço. Aquilo só poderia significar uma coisa: homens armados. E eles não estavam cavalgando ao longo da estrada trilhada, a qual estava longe do alcance visual, além do horizonte. Eles o estavam seguindo. Seu rosto ficou sombrio, e ele estremeceu levemente ao fitar o corvo que girava bem acima dele.

- Então, é mais do que o capricho de um animal sem cérebro? – ele murmurou – Aqueles cavaleiros não podem lhe ver, cria do inferno; mas o outro pássaro pode lhe ver, e eles podem vê-lo. Você me segue, ele segue você e os outros o seguem. Você é apenas uma criatura emplumada, habilidosamente treinada, ou algum demônio em forma de pássaro? Xaltotun colocou você na minha trilha? Você é Xaltotun?

Somente um grito estridente o respondeu; um guincho vibrante em áspera zombaria.

Conan não mais desperdiçou fôlego com seu delator escuro. Implacavelmente, ele se concentrou no caminho das colinas. Não ousava forçar demais o cavalo; o descanso que ele o dera não havia sido longo o bastante para revigorá-lo. Ele ainda estava bem distante de seus perseguidores, mas eles cortariam inabalavelmente essa vantagem. Era quase certo que seus cavalos estavam mais descansados que o dele, pois eles haviam indubitavelmente mudado de montaria a cada castelo pelo qual passaram.

A cavalgada, ele sabia, estava ficando mais rude; o cenário, mais áspero, as inclinações íngremes e cheias da capim se erguendo para ladeiras de montanhas densamente arborizadas. Aqui, ele sabia que poderia evitar seus perseguidores, se não fosse o pássaro infernal que guinchava incessantemente sobre ele. Ele não conseguia mais vê-los nesta região acidentada, mas estava certo de que eles ainda o seguiam, guiados infalivelmente por seus aliados emplumados. Aquela forma negra havia se tornado uma espécie de pesadelo demoníaco, perseguindo-o através de distâncias incalculáveis. As pedras que ele arremessara praguejando erraram o alvo – embora, na sua juventude, ele houvesse derrubado falcões em pleno vôo.

O cavalo estava rapidamente se cansando. Conan reconhecia o sombrio caráter decisivo de sua posição. Ele sentiu um inexorável destino a impulsionar por trás de tudo isto. Ele não tinha escapatória. Ele era tão prisioneiro quanto havia sido nos fossos de Belverus. Mas ele não era filho do Oriente para se entregar passivamente ao que parecia inevitável. Se ele não poderia escapar, iria ao menos levar alguns de seus inimigos com ele para a eternidade. Ele entrou num grande matagal de lariços, que cobria uma inclinação, procurando por um local para enfrentar seus perseguidores.

Então, à sua frente, soou um estranho grito estridente – humano, mas com um timbre estranho. Um instante depois, ele já havia atravessado um anteparo de galhos, e viu a fonte daquele grito medonho. Numa pequena clareira abaixo dele, quatro soldados em cota-de-malha nemédia estavam amarrando um laço no pescoço de uma velha mulher magra, a qual usava roupas de camponesa. Um feixe de lenha, amarrado com corda no chão próximo, mostrava o que ela fazia quando foi surpreendida por aqueles renegados.

Conan sentiu uma fúria lenta lhe inflar o coração, enquanto olhava silenciosamente para baixo e via os desordeiros arrastarem-na em direção a uma árvore, cujos galhos baixos seriam obviamente usados como patíbulo. Ele havia cruzado a fronteira há uma hora atrás. Estava em sua própria terra, assistindo ao assassinato de um de seus próprios súditos. A velha se debatia com força e energia surpreendentes, e enquanto ele observava, ela erguia a cabeça e exprimia novamente o estranho e sobrenatural grito de longo alcance que ele ouvira antes. Era ecoado, como que zombeteiramente, pelo bater de asas do corvo sobre as árvores. Os soldados riam rudemente, e um deles bateu na boca da mulher.

Conan desmontou de seu corcel cansado e desceu pelas rochas, pousando com um clangor de malha na grama. Os quatros homens deram a volta na direção do som e puxaram as espadas, boquiabertos diante do gigante encouraçado que os encarava, de espada na mão.

Conan riu asperamente. Seus olhos estavam frios como sílex.

- Cães! – ele disse, sem fúria nem piedade – Será que chacais nemédios se estabelecem como executores e enforcam meus súditos à vontade? Primeiro, vocês devem levar a cabeça do rei deles. Aqui estou, esperando vossa nobre ordem!

Os soldados o encaravam, incertos, enquanto ele andava a passos largos em sua direção.

- Quem é este louco? – rosnou um bandido barbudo – Ele usa malha nemédia, mas fala com sotaque aquiloniano.

- Não importa. – disse outro – Matem-no, e depois enforcaremos a bruxa velha.

Dizendo isto, ele correu até Conan, erguendo a espada. Mas, antes que pudesse golpear, a grande lâmina de rei desceu, partindo elmo e crânio. O homem caiu diante dele, mas os outros eram patifes mais ousados. Uivaram como lobos e rodopiaram ao redor da figura solitária em malha cinza, e o clamor e estrépito do aço afogou os gritos do corvo que o cercava.

Conan não gritou. Com olhos que pareciam carvões de fogo azul e seus lábios sorrindo friamente, ele cortava a torto e a direito com sua espada de cabo longo. Apesar de todo o seu tamanho, ele era rápido como um gato e estava em movimento constante, oferecendo um alvo móvel, de modo que estocadas e giros freqüentemente cortavam o ar. Mesmo enquanto golpeava, ele estava em perfeito equilíbrio, e seus golpes caíam com poder devastador. Três dos quatros homens estavam caídos, morrendo no próprio sangue, e o quarto estava sangrando de meia dúzia de ferimentos, cambaleando em retirada precipitada enquanto aparava freneticamente os golpes, quando a espora de Conan se enroscou no manto de um dos homens caídos.

O rei cambaleou e, antes que ele pudesse se equilibrar, o nemédio, com o frenesi do desespero, lançou-se tão selvagemente sobre ele, que Conan oscilou e caiu esparramado sobre o corpo. O nemédio grasnou em triunfo e pulou para frente, erguendo a espada com ambas as mãos acima do ombro direito, enquanto abria e firmava bem as pernas para golpear... e então, sobre o rei caído, algo volumoso e peludo disparou como um raio bem no peito do soldado, e seu grito de triunfo se transformou num grito estridente de morte.

Conan, se erguendo com dificuldade, viu o homem jazer morto, com a garganta rasgada, e um grande lobo cinza se erguia sobre ele, com a cabeça baixa, enquanto farejava o sangue que formava uma poça na grama.

O rei se virou quando a velha mulher falou com ele. Ela se erguia reta e alta diante dele, e, apesar das roupas esfarrapadas, suas feições bem delineadas e aquilinas, e seus agudos olhos negros não eram os de uma camponesa comum. Ela chamou o lobo, e ele trotou ao seu lado como um cão grande e roçou seu ombro gigante no joelho dela, enquanto olhava para Conan com grandes e ligeiros olhos verdes. Distraidamente, ela pôs a mão sobre o poderoso pescoço do lobo, e assim, os dois ficaram olhando para o rei da Aquilônia. Ele achou inquietante o olhar firme deles, embora não houvesse hostilidade no mesmo.

- Dizem que o Rei Conan morreu sob as pedras e lama, quando os rochedos desmoronaram pelo Valkia. – ela disse, numa voz profunda, forte e ressonante.

- Assim eles dizem. – ele resmungou. Ele não estava com humor para discussão, e pensava naqueles cavaleiros encouraçados que estavam se aproximando cada vez mais a cada momento. O corvo acima dele grasnava estridentemente, e ele lançou um olhar involuntário para cima, rangendo os dentes num espasmo de irritação nervosa.

No alto da saliência, o cavalo branco se erguia com a cabeça baixa. A velha olhou para ele, e em seguida para o corvo; e então, soltou um estranho grito sobrenatural, como havia feito antes. Como se reconhecendo o grito, o corvo girou, subitamente mudo, e disparou para leste. Mas antes que ele ficasse fora de vista, a sombra de asas enormes caiu sobre ele. Uma águia saiu voando do emaranhado de árvores e, pairando sobre ele, caiu sobre sua presa e derrubou o mensageiro negro ao chão. A voz estridente do traidor estava silenciada para sempre.

- Crom! – murmurou Conan, arregalando os olhos para a mulher idosa – Você é uma feiticeira também?

- Eu sou Zelata. – ela disse – O povo dos vales me chama de bruxa. Aquele filho da noite estava guiando homens armados no seu rastro?

- Sim.

Ela não parecia achar a resposta fantástica.

- Eles não devem estar muito longe de mim.

- Pegue seu cavalo e me siga, Rei Conan. – ele disse brevemente.

Sem fazer comentários, ele galgou as rochas e trouxe seu cavalo para baixo, até a clareira, por um caminho tortuoso. Enquanto descia, ele viu a águia reaparecer, descendo preguiçosamente do céu, e descansar por um instante no ombro de Zelata, abrindo levemente as asas para não esmagá-la com o peso.

Sem uma palavra, ela foi à frente, o grande lobo trotando ao seu lado e a águia pairando sobre ela. Ela o guiou através de matagais profundos e ao longo de saliências tortuosas, equilibradas sobre profundas ravinas, e finalmente ao longo de uma trilha estreita, ladeada por um precipício, até uma curiosa moradia de pedra, meio cabana, meio caverna, sob um rochedo escondido entre os desfiladeiros e penhascos. A águia voou até o pico deste rochedo e pousou ali, como uma sentinela imóvel.

Ainda em silêncio, Zelata alojou o cavalo numa caverna próxima, com folhas e grama para pasto, e uma pequena fonte borbulhando na escura reentrância.

Dentro da cabana, ela sentou o rei num rude banco coberto por pele, e ela própria se sentou num baixo tamborete diante da pequena lareira, enquanto fazia uma fogueira com nacos de tamarix e preparava uma refeição frugal. O grande lobo cochilava ao lado dela, diante da fogueira, sua enorme cabeça afundada nas patas, suas orelhas se contraindo em seus sonhos.

- Você não tem medo de ficar na cabana de uma bruxa? – ela perguntou, finalmente quebrando o silêncio.

Um encolher impaciente de seus ombros, cobertos por malha cinza, foi a única resposta do hóspede. Ela colocou nas mãos dele um prato de madeira com frutas secas, queijo e pão de cevada, e um grande pote da forte cerveja montanhesa, feita com cevada que cresce nos vales altos.

- Acho o silêncio meditativo dos vales estreitos mais agradável que o tagarelar das ruas das cidades. – ela disse – Os filhos da floresta são mais amáveis que os filhos dos homens. – A mão dela bateu de leve no pescoço peludo do lobo que dormia – Meus filhos estavam longe de mim hoje; do contrário, eu não teria precisado de sua espada, meu rei. Eles estavam vindo atender meu chamado.

- Qual o rancor que aqueles cães nemédios tinham contra você? – indagou Conan.

- Desertores do exército invasor se espalham por todo o campo, da fronteira até Tarantia. – ela respondeu – Os aldeões tolos dos vales disseram a eles que eu tinha um estoque de ouro escondido em algum lugar no vale, para lhes desviarem a atenção das aldeias. Eles me exigiram um tesouro, e minhas respostas os enfureceram. Mas nem desertores, nem os homens que lhe perseguem, nem qualquer corvo irá encontrá-lo aqui.

Ele sacudiu a cabeça, comendo sofregamente:

- Estou indo para Tarantia.

Ela sacudiu a cabeça:

- Você está enfiando sua cabeça na boca do dragão. É melhor buscar abrigo fora de casa. O coração abandonou seu reino.

- O que quer dizer? – ele indagou – Batalhas já fora perdidas antes, mas guerras foram vencidas. Um reino não está perdido por uma única derrota.

- E você irá para Tarantia?

- Sim. Prospero estará defendendo-a contra Amalric.

- Tem certeza?

- Demônios do inferno, mulher! – ele exclamou, irado – O que mais?

Ela sacudiu a cabeça:

- Sinto que seja ao contrário. Vamos ver. O véu não está nada rasgado; mas vou rasgá-lo um pouco, e lhe mostrar sua capital.

Conan não viu o que ela pôs sobre o fogo, mas o lobo choramingou enquanto sonhava, e uma fumaça verde se acumulou e subiu dentro da cabana. E, enquanto ele observava, as paredes e teto da cabana pareciam se alargar, distanciar e sumir, sendo absorvidos por imensidades infinitas; a fumaça rolou ao redor dele, apagando tudo. E, dentro dela, formas se moviam e desbotavam, e saíam em surpreendente claridade.

Ele fitava as conhecidas torres e ruas de Tarantia, onde uma multidão fervilhava e gritava, e ao mesmo tempo, ele era capaz, de alguma forma, de ver as bandeiras da Nemédia se movendo inexoravelmente para oeste, através da fumaça e fogo de uma terra saqueada. Na grande praça de Tarantia, a turba desvairada se movia em círculos e se queixava em voz alta, gritando que o rei estava morto, que os ladrões estavam se preparando para dividirem a terra entre eles, e que o governo de um rei – até mesmo o de Valerius – era melhor que a anarquia. Prospero, brilhante em sua armadura, cavalgava entre eles, tentando acalmá-los, ordenando-lhes que confiassem no Conde Trocero, insistindo a eles que protegessem os muros e ajudassem seus cavaleiros a defender a cidade. Viraram-se para ele, com medo e fúria irracional, uivando que ele era o carniceiro de Trocero, um inimigo ainda mais maligno que o próprio Amalric. Lixo e poeira foram arremessados aos seus cavaleiros.

Um leve borrar da figura, o qual deveria indicar uma passagem de tempo, e então Conan viu Prospero e seus cavaleiros marcharem em fila para fora dos portões e cavalgarem apressadamente para o sul. Atrás dele, a cidade estava em tumulto.

- Idiotas! – murmurou fortemente Conan – Idiotas! Por que eles não confiariam em Prospero? Zelata, se você estiver brincando comigo, usando algum embuste...

- Isto já passou. – respondeu Zelata imperturbável, embora sombria – Foi na noite do dia que passou, quando Prospero cavalgou para fora de Tarantia, com o exército de Amalric quase à vista. Das muralhas, os homens viram o fogo de sua pilhagem. Portanto, li isso na fumaça. Ao pôr-do-sol, os nemédios cavalgaram para dentro de Tarantia sem oposição. Veja! Neste exato momento, no salão real de Tarantia...

Abruptamente, Conan olhava para dentro do grande salão de coroação. Valerius se erguia sobre o estrado real, vestido em traje cerimonial de arminho; e Amalric, ainda em sua poeirenta armadura ensangüentada, colocava-lhe um suntuoso e brilhante aro nas mechas amarelas – a coroa da Aquilônia! O povo se alegrou; longas fileiras de guerreiros nemédios, vestidos em aço, assistiram sombriamente, e nobres há muito em desfavor na corte de Conan andavam empertigados e arrogantes com o emblema de Valerius em suas mangas.

- Crom! – Uma imprecação explosiva saía dos lábios de Conan, enquanto ele se levantava, com os grandes punhos cerrados como dois martelos, suas veias se enroscando nas têmporas e suas feições convulsionadas – Um nemédio pondo a coroa da Aquilônia naquele renegado... no salão real de Tarantia!

Como se dispersada por sua violência, a fumaça desapareceu, e ele viu os olhos negros de Zelata brilhando em sua direção, através da névoa.

- Você viu... o povo de sua capital perdeu a liberdade que você ganhou para eles com suor e sangue; eles venderam a si mesmos para os escravistas e carniceiros. Mostraram que não confiam no destino deles. Você consegue confiar neles ao ganhar de volta seu reino?

- Eles pensaram que eu estivesse morto. – ele grunhiu, recuperando um pouco de seu equilíbrio – Não tenho filhos. Os homens não podem ser governados por uma lembrança. E se os nemédios tomaram Tarantia? Ainda restam as províncias, os barões e o povo dos campos. Valerius ganhou uma glória vazia.

- Você é teimoso, como convém a um lutador. Não posso lhe mostrar o futuro, nem posso lhe mostrar todo o passado. Não, não lhe mostro nada. Eu simplesmente faço você ver janelas abertas no véu, por poderes inimaginados. Você investigaria o passado, em busca de uma pista do presente?

- Sim. – ele se sentou abruptamente.

Mais uma vez, a fumaça verde subiu e se aglomerou. Novamente imagens se desdobraram diante dele, desta vez estranhas e aparentemente alheias. Ele viu grandes e elevados muros negros; pedestais meio ocultos nas sombras, sustentando imagens de deuses horrendos e semi-bestiais. Homens se moviam nas sombras: homens escuros, magros e fortes, vestidos em tangas vermelhas de seda. Eles carregavam um sarcófago verde-jade ao longo de um gigantesco corredor negro. Mas, antes de dizer algo do que viu, a cena mudou. Ele viu uma caverna obscura, sombreada e assombrada por um estranho horror intangível. Num altar de pedra negra, se erguia um curioso vaso dourado, em forma de concha de molusco. Dentro desta caverna, apareceram alguns dos mesmos homens escuros, magros e fortes que haviam carregado o caixão de múmia. Eles agarraram o vaso dourado, e então as sombras rodopiaram ao redor deles, e ele não pôde dizer o que aconteceu. Mas ele viu um brilho numa circunvolução de trevas, como uma bola de fogo vivo. Logo, a fumaça era só fumaça, subindo dos nacos de tamarix, diminuindo e sumindo.

- Mas que presságio é este? – ele indagou, perplexo – O que vi em Tarantia, eu posso entender. Mas o que significa este vislumbre de ladrões zamorianos se esgueirando através de um templo subterrâneo de Set, na Stygia? E aquela caverna... nunca vi, nem ouvi falar, em nada igual durante todas as minhas andanças. Se você pode me mostrar isso, estes retalhos de visão que nada significam, desconexos, por que não pode me mostrar tudo o que está para acontecer?

Zelata agitou a fogueira sem responder.

- Estas coisas são governadas por leis imutáveis. – ela finalmente disse – Não posso fazê-lo entender; eu mesma não entendo completamente, embora eu tenha procurado sabedoria no silêncio dos lugares altos, por mais anos do que posso lembrar. Não posso lhe salvar, mas eu o faria se pudesse. Os homens devem, finalmente, achar sua própria salvação. Mas talvez a sabedoria venha a mim em sonhos, e de manhã eu seja capaz de lhe dar uma pista para o enigma.

- Qual enigma? – ele exigiu.

- O mistério que lhe confronta, através do qual você perdeu um reino. – ela respondeu. E então, ela estendeu uma pele de carneiro no chão, diante da lareira.

- Durma. – ela disse brevemente.

Sem uma só palavra, ele se estirou sobre ela, e caiu num sono inquieto, porém profundo, através do qual fantasmas se movimentam silenciosamente, e monstruosas sombras sem forma rastejavam. Uma única vez, delineadas contra um horizonte púrpura e sem sol, ele viu enormes muralhas e torres de uma cidade, que em nada se assemelhava às que conhecera na terra desperta. Suas torres colossais e minaretes púrpuras se erguiam em direção às estrelas; e, sobre ela, pairando como uma miragem gigante, flutuava o semblante barbado do homem chamado Xaltotun.

Conan acordou na fria brancura do início da aurora, para ver Zelata agachada ao lado da pequena fogueira. Ele não havia acordado uma única vez na noite, e o som do grande lobo, saindo ou entrando, devia tê-lo despertado. Mas o lobo estava lá, ao lado da lareira, seu pêlo molhado pelo orvalho e por mais do que orvalho. Sangue com brilho molhado escorria abundantemente, e havia um corte sobre o ombro do animal.

Zelata acenou com a cabeça, sem olhar ao redor, como que lendo os pensamentos de seu convidado real.

- Ele caçou antes do amanhecer, e sua caçada foi rubra. Acho que o homem que caçava um rei não caçará mais, nem homem nem fera.

Conan encarou o grande animal selvagem com estranho fascínio, enquanto se movia para pegar a comida que Zelata lhe oferecia.

- Quando eu retornar ao meu trono, não esquecerei. – ele disse brevemente – Você me protegeu... por Crom, não me lembro de quando deitei e dormi diante da misericórdia de um homem ou mulher, como na noite passada. Mas, e quanto ao enigma que você ia ler para mim nesta manhã?

Seguiu-se um longo silêncio, no qual o crepitar dos tamarixes ficou alto na lareira.

- Encontre o coração de seu reino. – ela disse finalmente – Nele, se encontra sua derrota e seu poder. Você enfrenta mais do que um homem mortal. Você não requisitará o trono novamente, a não ser que encontre o coração de seu reino.

- Você quer dizer... a cidade de Tarantia?

Ela sacudiu a cabeça:

- Sou apenas um oráculo, através de cujos lábios os deuses falam. Meus lábios estão selados por eles, para que eu não fale demais. Você deve encontrar o coração de seu reino. Não posso dizer mais nada. Meus lábios são abertos e fechados pelos deuses.


A aurora ainda estava branca nos picos, quando Conan cavalgou para oeste. Um olhar para trás mostrou a ele Zelata, de pé na porta de sua cabana, inescrutável como sempre, o grande lobo ao lado dela.

Um céu cinza se arqueava no alto, e um vento gemia com uma frieza que era promessa de inverno. Folhas marrons caíam vagarosamente dos galhos nus, se espalhando por seus ombros encouraçados.

Ele avançou o dia todo através das colinas, evitando estradas e aldeias. Pouco antes do cair da noite, ele começou a descer das alturas, patamar por patamar, e viu as largas planícies da Aquilônia se espalharem sob ele.

Aldeias e fazendas ficavam próximas ao pé das colinas, no lado ocidental das montanhas, pois, por meio século, muitas das incursões através da fronteira haviam sido feitas por aquilonianos. Mas agora, apenas rescaldos e cinzas mostravam onde as cabanas de fazendas e as aldeias haviam ficado.

Na escuridão crescente, Conan seguiu cavalgando devagar. Havia pouco medo de ser descoberto, o que ele temia tanto de amigos quanto de inimigos. Os nemédios haviam se lembrado de velhas dívidas em sua viagem para oeste, e Valerius nada fez para conter seus aliados. Ele não confiava em ganhar o amor de pessoas comuns. Um grande corte de devastação havia sido feito através da região, desde os contrafortes a oeste. Conan praguejou, enquanto cavalgava sobre expansões escurecidas que haviam sido campos férteis, e viu fachadas desoladas de casas queimadas se sobressaírem contra o céu. Ele andava por uma terra vazia e abandonada, como um fantasma de um passado esquecido e obsoleto.

A velocidade, com o qual o exército havia atravessado a terra, mostrava quão pouca resistência ele havia encontrado. Mas se Conan estivesse liderando seus aquilonianos, o exército invasor teria sido forçado a comprar, com sangue, cada passo que deu. A percepção amarga lhe impregnava a alma; ele não era o representante de uma dinastia. Era apenas um aventureiro solitário. Até mesmo a gota de sangue dinástico, que Valerius ostentava, tinha mais influência na mente dos homens do que a lembrança de Conan, e da liberdade e poder que ele tinha dado ao reino.

Nenhum perseguidor o seguia das colinas. Ele observou, em busca de tropas nemédias que perambulassem ou retornassem, mas não encontrou nenhuma. Fujões lhe abriam o caminho, pensando que ele fosse um dos conquistadores, a julgar pela armadura. Arvoredos e rios eram bem mais abundantes no lado oeste das montanhas, e esconderijos não faltavam.

Assim, ele atravessou a terra saqueada, parando apenas para descansar seu cavalo, comendo moderadamente da comida que Zelata havia lhe dado, até que, ao amanhecer de um dia, escondido na margem de um rio onde salgueiros e carvalhos cresciam em abundância, ele avistou, à distância, através das planícies onduladas e pontilhadas por ricos arvoredos, as torres azuis e douradas de Tarantia.

Ele não estava mais numa terra abandonada, mas abundante em variedade de vida. A partir daí, seu avanço foi lento e cauteloso, através de bosques densos e caminhos não-freqüentados. Anoitecia quando ele alcançou a lavoura de Servius Galannus.


8) Brasas Moribundas

A REGIÃO RURAL AO REDOR DE Tarantia havia escapado da terrível destruição das províncias mais orientais. Havia evidências da marcha de um exército conquistador em cercas quebradas, campos saqueados e celeiros pilhados, mas a tocha e o aço não haviam sido usados em todos os lugares.

Havia apenas uma mancha na paisagem: uma expansão queimada de cinzas e pedra enegrecida, onde, Conan sabia, outrora se erguia a imponente casa de campo de um de seus partidários mais leais.

O rei não ousou se aproximar abertamente da fazenda de Galannus, a qual ficava a apenas poucas milhas da cidade. No crepúsculo, ele cavalgou através de uma vasta floresta, até avistar um guarda através das árvores. Desmontando e amarrando seu cavalo, ele se aproximou da grossa porta arcada, com a intenção de chamar o guarda depois de Servius. Ele não sabia quais inimigos a casa feudal poderia estar abrigando. Ele não viu tropas, mas elas poderiam estar aquarteladas por toda a região rural. Mas, quando se aproximou, viu a porta aberta e uma figura compacta, em calções de seda e casaco ricamente bordado, caminhar para diante e subir um caminho que serpenteava pela mata.

- Servius!

Diante do baixo chamado, o dono da plantação girou com uma exclamação sobressaltada. Sua mão fluiu até a curta espada de caça em seu quadril, e ele recuou da figura alta, em aço cinza, que se erguia no anoitecer diante dele.

- Quem é você? – ele indagou – Qual o seu... Mitra!

O ar lhe assobiou para dentro, e seu rosto vermelho empalideceu.

- Vá embora! – ele exclamou – Por que voltou das terras cinzas da morte, para me aterrorizar? Sempre fui seu fiel vassalo em sua vida...

- Como eu ainda espero que seja. – respondeu Conan – Pare de tremer, homem; sou de carne e osso.

Suando de incerteza, Servius se aproximou e encarou o rosto do gigante vestido em malha, e então, convencido da realidade do que viu, ele se apoiou num dos joelhos e tirou o chapéu emplumando.

- Majestade! É realmente um milagre inacreditável! O grande sino na cidadela anunciou sua nênia, dias atrás. Disseram que você morreu em Valkia, sob um milhão de toneladas de granito quebrado e terra.

- Foi outro, usando minha armadura. – grunhiu Conan – Mas vamos conversar mais tarde. Será que há algum pedaço de carne de boi em sua mesa, ou algo do tipo...

- Perdoe-me, milorde! – gritou Servius, se erguendo rapidamente – O pó da viagem está cinza em sua malha, e eu continuo lhe deixando aqui, sem descanso ou alimento! Mitra! Agora vejo claramente que está vivo, mas eu juro que, quando girei e lhe vi de pé, todo cinza e indistinto na penumbra, o tutano de meus joelhos virou água. É ruim encontrar um homem a quem você pensou estar morto, na floresta ao cair da noite.

- Mande o guarda cuidar do meu cavalo, que está amarrado atrás daquele carvalho. – pediu Conan, e Servius assentiu, levando o rei pela trilha. O nobre, recuperando-se do susto sobrenatural, havia ficado extremamente nervoso.

- Enviarei um criado da casa feudal. – ele disse – O guarda está em seu alojamento... mas não ouso confiar sequer em meus criados nestes dias. É melhor que somente eu saiba de sua presença.

Aproximando-se da grande casa, que brilhava francamente entre as árvores, ele girou para um lado, para dentro de uma vereda pouco usada, que corria entre carvalhos bem próximos, cujos galhos entrelaçados formavam uma abóbada no alto, impedindo a entrada da pouca luz do crepúsculo. Servius continuou seguindo às pressas pela escuridão, sem uma só palavra, e com algo em seu modo que lembrava pânico; e logo guiou Conan através de uma pequena porta lateral, para um corredor estreito e fracamente iluminado. Eles o atravessaram apressadamente e em silêncio, e Servius levou o rei para uma sala espaçosa, com um teto alto, vigas de carvalho e paredes ricamente enfeitadas. Toras queimavam na lareira larga, e um grande pastel de carne fumegava numa travessa, sobre uma larga mesa de mogno. Servius trancou a pesada porta, e apagou as velas que brilhavam num castiçal de prata sobre a mesa, deixando a grande sala iluminada apenas pelo fogo da lareira.

- Perdão, Majestade. – ele se desculpou – Estes são tempos perigosos; espiões se escondem por todos os lugares. Será melhor se ninguém puder espionar pelas janelas e lhe reconhecer. Este pastel de carne, no entanto, acaba de sair do forno, e eu pretendia jantá-lo ao voltar de minha conversa com o guarda. Se Sua Majestade se digna...

- A luz é suficiente. – grunhiu Conan, sentando-se com pouca cerimônia e puxando o punhal.

Ele se lançou vagarosamente ao delicioso prato, e o engolia com grandes goles de vinho das uvas que cresciam nos vinhedos de Servius. Ele parecia esquecido de qualquer sensação de perigo, mas Servius se movia inquieto em seu banco, junto ao fogo, dedilhando nervosamente a pesada corrente de ouro em seu pescoço. Olhava, sem parar, para as vidraças em forma de losango das janelas, as quais brilhavam fracamente à luz do fogo, e aguçava o ouvido em direção à porta, como que meio na expectativa de ouvir o som de passos furtivos no corredor externo.

Terminando sua refeição, Conan se ergueu e sentou-se em outro banco, diante da fogueira.

- Não vou lhe expor por muito tempo com minha presença, Servius. – ele disse abruptamente – Ao amanhecer, estarei longe de sua fazenda.

- Milorde... – Servius ergueu as mãos em advertência, mas Conan lhe recusou os protestos.

- Conheço sua lealdade e sua coragem. Ambas estão acima de qualquer suspeita. Mas se Valerius usurpou meu trono, me abrigar significaria a morte para você, caso lhe descobrissem.

- Não sou forte o bastante para desafiá-lo abertamente. – admitiu Servius – Os 50 soldados que eu poderia levar para batalha não seriam mais do que um punhado de palha. Você viu as ruínas da fazenda de Emilius Scavonus?

Conan assentiu, franzindo sombriamente a testa.

- Era o nobre mais poderoso desta província, como você sabe. Ele se recusou a dar sua lealdade a Valerius. Os nemédios o queimaram nas ruínas de sua própria vila. Após aquilo, o restante de nós viu a futilidade da resistência, especialmente quando o povo de Tarantia se negou a lutar. Rendemos-nos, e Valerius poupou nossas vidas, embora ele tenha nos cobrado um imposto que arruinará muitos. Mas o que podíamos fazer? Pensamos que você estivesse morto. Muitos dos barões foram assassinados, e outros aprisionados. O exército estava destruído e disperso. Você não tem herdeiro para usar a coroa. Não havia ninguém para nos liderar...

- O Conde Trocero de Poitain não estava lá? – indagou Conan rudemente.

Servius abriu as mãos, sem saber o que fazer.

- De fato, seu general Prospero estava no campo com um pequeno exército. Ao recuar diante de Amalric, ele insistiu para que se unissem à sua bandeira. Mas, com a morte de Sua Majestade, eles se lembraram de velhas guerras e rixas civis, e de como Trocero e seus poitainianos outrora cavalgaram através daquelas províncias, exatamente como Amalric fez agora, com tocha e espada. Os barões tinham inveja de Trocero. Alguns homens... espiões de Valerius, talvez... gritaram que o Conde de Poitain pretendia pegar a coroa para si mesmo. Velhos ódios regionais se inflamaram novamente. Se tivéssemos um homem com sangue dinástico nas veias, o teríamos coroado e seguido contra a Nemédia. Mas não temos nenhum.

“Os barões que lhe seguiram lealmente não seguiriam um deles próprios; cada um se defendendo tão bem quanto os vizinhos, cada um temendo as ambições dos outros. Você era a corda que unia o feixe. Quando a corda foi cortada, os pedaços de pau caíram e se espalharam. Se você tivesse um filho, os barões teriam se reunido em lealdade a ele. Mas não havia um ponto para o patriotismo deles se concentrar.

“Os mercadores e plebeus, temendo a anarquia e um retorno aos tempos feudais, quando cada barão fazia sua própria lei, bradaram que qualquer rei era melhor do que nenhum... até mesmo Valerius, que era pelo menos do sangue da velha dinastia. Não havia ninguém para se opor a ele, quando cavalgou à frente de seus exércitos vestidos de aço, com o dragão escarlate da Nemédia flutuando acima deles, e vibrou sua lança contra os portões de Tarantia.

“E mais: o povo abriu os portões e se ajoelhou na poeira diante dele. Recusaram-se a ajudar Prospero a defender a cidade. Disseram que preferiam ser governados por Valerius que por Trocero. Disseram... sinceramente... que os barões não iriam se unir a Trocero, mas que muitos aceitariam Valerius. Disseram que, ao se renderem a Valerius, escapariam da devastação da guerra civil e da fúria dos nemédios. Prospero cavalgou para o sul, com seus 10 mil cavaleiros, e os cavaleiros dos nemédios entraram na cidade poucas horas depois. Eles não o seguiram. Ficaram para ver Valerius ser coroado em Tarantia”.

- Então, a fumaça da velha feiticeira mostrou a verdade. – murmurou Conan, sentindo um estranho frio ao longo da espinha – Amalric coroou Valerius?

- Sim, no salão de coroação, com o sangue da matança ainda úmido nas mãos.

- E o povo prospera sob seu governo benevolente? – perguntou Conan, com ironia furiosa.

- Ele vive como um príncipe estrangeiro em meio a uma terra conquistada. – Servius respondeu amargamente – Sua corte está preenchida por nemédios, as tropas do palácio são da mesma raça e uma vasta guarnição deles ocupa a cidade. Sim, a hora do Dragão finalmente chegou.

“Nemédios andam arrogantemente, como lordes, pelas ruas. Mulheres são violadas, e mercadores saqueados, diariamente, e Valerius não pode, ou não quer, reprimi-los. Não, ele é apenas o fantoche, o chefe nominal deles. Homens sensatos já sabiam que ele seria, e o povo está começando a perceber isso.

“Amalric cavalgou de lá, com um forte exército, para subjugar as províncias distantes, onde alguns dos barões o haviam desafiado. Mas não há união entre eles. A inveja que sentem um pelo outro é mais forte que o medo por Amalric. Ele os esmagará um por um. Muitos castelos e cidades, percebendo isso, se submetem a ele. Aqueles que resistem caem na miséria. Os nemédios estão saciando seu antigo ódio. E suas fileiras são preenchidas por aquilonianos, cujo medo, ouro ou necessidade de emprego os estão forçando para dentro de seus exércitos. É uma conseqüência natural”.

Conan balançou a cabeça sombriamente, olhando fixamente para os reflexos vermelhos da luz do fogo nos ricamente entalhados enfeites de carvalho, na parede.

- A Aquilônia tem um rei, ao invés da anarquia que temiam. – disse Servius finalmente – Valerius não protege seus súditos contra seus aliados. Centenas, que não puderam pagar o preço imposto a eles, foram vendidos para os traficantes kothianos de escravos.

A cabeça de Conan se ergueu bruscamente, e um fogo letal se acendeu em seus olhos azuis. Ele praguejou raivosamente, e suas mãos se fecharam, tornando-se verdadeiros martelos de ferro.

- Sim, homens brancos vendem homens brancos e mulheres brancas, como se fazia nos tempos feudais. Nos palácios de Shem e de Turan, eles viverão a vida de escravos. Valerius é rei, mas a união pela qual o povo procurou, ainda que pela espada, não está completa.

“A Gunderlândia, ao norte, e Poitain, ao sul, permanecem inconquistadas, e há províncias não-dominadas a oeste, onde os barões da fronteira têm a proteção dos arqueiros bossonianos. Mas estas províncias remotas não são uma ameaça real para Valerius. Devem permanecer na defensiva, e terão sorte se forem capazes de manter sua independência. Aqui, Valerius e seus cavaleiros estrangeiros são supremos”.

- Deixe-o tirar o maior partido possível, então. – disse Conan sombriamente – O tempo dele é curto. O povo vai se revoltar, quando souber que estou vivo. Tomaremos Tarantia de volta, antes que Amalric possa voltar com seu exército. Então, varreremos aqueles cães para fora do reino.

Servius estava silencioso. O crepitar do fogo estava alto naquele silêncio.

- Bem – exclamou Conan, impaciente –, por que fica sentado, com a cabeça inclinada, encarando a lareira? Você duvida do que falei?

Servius evitou os olhos do rei.

- O que um homem mortal pode fazer, você fará, Majestade. – ele respondeu – Já cavalguei sob seu comando em batalha, e sei que nenhum ser mortal é capaz de enfrentar sua espada.

- Sim, e daí?

Servius puxou o casaco de pêlos aparados para mais perto de si, e tremeu, apesar do fogo.

- Dizem que sua queda foi causada por feitiçaria. – ele disse logo em seguida.

- Sim, e daí?

- Qual o mortal que pode lutar contra feitiçaria? Quem é este homem velado, que comunga com Valerius e seus aliados, como os homens dizem? Que aparece e desaparece tão misteriosamente? Dizem, em sussurros, que ele é um grande feiticeiro, o qual morreu há milhares de anos, mas retornou das terras cinzas da morte para derrotar o rei da Aquilônia e restaurar a dinastia da qual Valerius é herdeiro.

- O que importa? – exclamou Conan enfurecido – Escapei dos fossos assombrados por demônios, em Belverus, e do diabolismo das montanhas. Se o povo se rebelar...

Servius sacudiu a cabeça:

- Seus partidários mais leais, nas províncias orientais e centrais, morreram, fugiram ou foram aprisionados. A Gunderlândia está distante ao norte; Poitain, distante ao sul. Os bossonianos se retiraram até suas fronteiras, no oeste distante. Levaria semanas para reunir e concentrar estas forças, e antes que isso fosse feito, cada tropa recrutada seria atacada separadamente por Amalric, e destruída.

- Mas uma revolta nas províncias centrais equilibraria a balança a nosso favor! – exclamou Conan – Poderíamos nos apoderar de Tarantia e defendê-la contra Amalric, até os gunderlandeses e poitainianos conseguirem chegar lá.

Servius hesitou, e sua voz diminuiu até um sussurro:

- Dizem que você morreu amaldiçoado. Dizem que aquele estranho homem velado lançou um feitiço sobre você, para lhe matar e arruinar seu exército. O grande sino anunciou sua morte. Acreditam que você está morto. E as províncias centrais não se rebelariam, mesmo se soubessem que você está vivo. A feitiçaria lhe derrotou no Valkia. A feitiçaria trouxe as notícias até Tarantia, pois naquela mesma noite, os homens gritavam sobre isso nas ruas.

“Um sacerdote nemédio lançou magia negra novamente nas ruas de Tarantia, para matar homens que ainda eram leais à sua memória. Eu mesmo vi. Homens armados caíam como moscas e morriam nas ruas, de uma forma que nenhum homem conseguiria entender. E o sacerdote magro ria e dizia: ‘Sou apenas Altaro, apenas um acólito de Orastes, o qual não é mais que um acólito daquele que usa o véu; o poder não é meu; o poder apenas age através de mim’”.

- Bom – disse Conan rudemente –, não é melhor morrer com honra do que viver na desonra? Será a morte pior do que a opressão, a escravidão e a suprema destruição?

- Quando o medo da feitiçaria está dentro, a razão fica de fora. – respondeu Servius – O medo, sentido pelas províncias centrais, é muito grande para permiti-los que se revoltem a seu favor. As províncias remotas lutariam por você... mas a mesma feitiçaria que derrubou seu exército no Valkia, lhe derrubaria novamente. Os nemédios dominam as partes mais vastas, ricas e densamente povoadas da Aquilônia, e não podem ser derrotados pelas forças que ainda poderiam estar sob seu comando. Você sacrificaria seus leais súditos em vão. Eu lamento profundamente dizê-lo, mas é verdade: Rei Conan, você é um rei sem reino.

Conan olhava fixamente para a fogueira, sem responder. Uma tora ardente se espatifou por entre as chamas, sem jorrar chuva alguma de faíscas. Poderia muito bem ser o espatifar de seu reino arruinado.

Novamente, Conan sentiu a presença de uma sombria realidade por trás do véu da ilusão material. Ele sentiu novamente o avançar inexorável de um destino impiedoso. Uma sensação de pânico furioso puxou sua alma; uma sensação de estar preso numa armadilha, e uma fúria vermelha que arde para destruir e matar.

- Onde estão os oficiais de minha corte? – ele finalmente indagou.

- Pallantides foi terrivelmente ferido no Valkia, foi resgatado pela família, e agora descansa no seu castelo em Attains. Ele terá sorte, se voltar a montar. Publius, o chanceler, fugiu disfarçado do reino, e ninguém sabe para onde. O conselho se dispersou. Alguns foram aprisionados, alguns foram banidos. Muitos de seus súditos leais foram executados. Esta noite, por exemplo, a Condessa Albiona morrerá sob o machado do carrasco.

Conan se sobressaltou e olhou para Servius, com tamanha fúria lhe ardendo nos olhos azuis, que o nobre recuou.

- Por quê?

- Porque ela não quer se tornar amante de Valerius. As terras dela foram confiscadas, seus partidários vendidos como escravos, e à meia-noite, na Torre de Ferro, a cabeça dela rolará. Seja prudente, meu rei... para mim, você será sempre meu rei... e fuja antes que seja descoberto. Nestes tempos, ninguém está a salvo. Espiões e informantes andam furtivamente entre nós, delatando o menor ato ou palavra de descontentamento, como traição e rebelião. Se você aparecer para seus súditos, isso terminará na sua captura e morte.

“Meus cavalos, e todos os homens nos quais posso confiar, estão ao seu dispor. Antes do amanhecer, podemos estar longe de Tarantia, e bem no nosso caminho em direção à fronteira. Se eu não posso lhe ajudar a recuperar seu reino, posso, pelo menos, lhe seguir no exílio”.

Conan sacudiu a cabeça. Servius olhou desconfortavelmente para ele, enquanto o cimério permanecia sentado, olhando fixamente para o fogo, com o queixo sustentado pelo grande punho. A luz da fogueira brilhava vermelha em sua malha de aço e seus olhos fatais. Eles ardiam à luz da fogueira como os olhos de um lobo. Servius estava novamente consciente, como no passado, e agora mais intensamente do que nunca, de algo estranho ao redor do rei. A grande estrutura, sob a cota-de-malha, era muito dura e flexível para um homem civilizado; o fogo elementar do primitivo queimava naqueles olhos, que ardiam de forma latente. Agora, a sugestão bárbara ao redor do rei estava mais pronunciada, como se, em seu extremo, os aspectos externos da civilização houvessem sido arrancados, para revelar a essência primordial. Conan estava revertendo ao seu tipo primitivo. Ele não agia como um homem civilizado agiria sob as mesmas condições, nem seus pensamentos corriam pelos mesmos canais. Ele era imprevisível. Apenas um passo separava o rei da Aquilônia do matador vestido de peles, das colinas cimérias.

- Cavalgarei para Poitain, se for o caso. – Conan finalmente disse – Mas cavalgarei só. E tenho um último dever a cumprir como rei da Aquilônia.

- O que quer dizer, Majestade? – perguntou Servius, balançado por uma premonição.

- Irei para Tarantia, atrás de Albiona, esta noite. – respondeu o rei – Já falhei com todos os meus outros súditos leais, ao que parece... se levarem a cabeça dela, podem levar a minha também.

- Isto é loucura! – gritou Servius, se erguendo cambaleante e agarrando a própria garganta, como se já sentisse o laço se fechando ao redor da mesma.

- Há segredos sobre a Torre, os quais poucos conhecem. – disse Conan – De qualquer forma, eu seria um cão em deixar Albiona morrer por causa de sua lealdade a mim. Posso ser um rei sem reino, mas não sou um homem sem honra.

- Isso arruinará a todos nós! – sussurrou Servius.

- Isso não arruinará a ninguém, a não ser a mim mesmo, se eu falhar. Você já se arriscou demais. Cavalgarei sozinho esta noite. Isto é tudo o que eu quero que você faça: procure para mim um tapa-olho, um cajado para minha mão, e roupas como as que os viajantes usam.


9) “É o Rei, ou Seu Fantasma!”

MUITOS HOMENS PASSAVAM pelos grandes portões arcados de Tarantia entre o pôr-do-sol e a meia noite – viajantes atrasados; mercadores de lugares distantes, com mulas pesadamente carregadas, e trabalhadores livres das fazendas e vinhedos das cercanias. Agora que Valerius era supremo nas províncias centrais, não havia rígida vigilância sobre as pessoas que fluíam num curso constante, através dos largos portões. A disciplina havia relaxado. Os soldados nemédios que ficavam de guarda estavam meio bêbados, e ocupados demais à espreita de belas jovens fazendeiras ou ricos mercadores que pudessem ser maltratados, para perceberem trabalhadores ou viajantes poeirentos – mesmo um viajante a pé, cujo manto gasto não conseguia esconder as linhas firmes de sua poderosa estrutura.

Este homem andava de um modo ereto e agressivo, que era natural demais para ele próprio perceber, e muito menos disfarçar. Um grande retalho lhe cobria um olho, e seu capuz de couro, puxado até suas sobrancelhas, lhe sombreava o rosto. Com cajado longo e grosso em sua musculosa mão morena, ele andava calmamente a passos largos, através do arco onde as tochas chamejavam e bruxuleavam; e, ignorado pelos guardas embriagados, emergiu sobre as ruas largas de Tarantia.

Sobre estas ruas iluminadas, as multidões de sempre cuidavam de seus negócios, e armazéns e balcões de mercadorias estavam abertos, com seus produtos à mostra. Um fio tecia constantemente um assunto-padrão. Soldados nemédios, sozinhos ou em grupos, andavam arrogantemente através das multidões, empurrando com os ombros para abrirem caminho em profunda arrogância. Mulheres saíam correndo do caminho deles, e homens davam um passo para o lado, com sobrancelhas escurecidas e punhos cerrados. Os aquilonianos eram uma raça orgulhosa, e aqueles eram seus inimigos hereditários.

Os nós dos dedos do viajante alto se contraíam no cajado, mas, assim como os outros, ele andava para um lado, para deixar os homens em armaduras passarem. No meio da multidão colorida e variada, ele não chamava muito a atenção, com suas vestes pardacentas e empoeiradas. Mas, num momento em que passou pelo armazém de um vendedor de espadas, e a luz que fluía de sua porta larga caiu sobre ele, ele pensou ter sentido um olhar fixo e intenso sobre si e, girando rapidamente, viu um homem usando o casaco marrom de um trabalhador livre e mirando-o fixamente. Este homem se afastou com pressa exagerada, e desapareceu na multidão em movimento. Mas Conan se dirigiu a uma estreita rua lateral e apressou o passo. Por ter sido mera curiosidade negligente; mas ele não podia se arriscar.

A sombria Torre de Ferro se erguia afastada da cidadela, no meio de um labirinto de ruas estreitas e casas aglomeradas, onde as estruturas mais humildes, ocupando um espaço em desordem, haviam invadido uma porção da cidade que lhes era habitualmente estranha. A Torre era na verdade um castelo; uma antiga e tremenda pilha de pedra compacta e ferro negro, a qual havia servido como fortaleza, num século mais antigo e mais rude.

Não muito longe dela, perdida numa confusão de casas e armazéns parcialmente abandonados, havia uma antiga torre de vigia, tão velha e esquecida que não aparecia nos mapas da cidade há 100 anos. Sua função original havia sido esquecida; e ninguém, dentre os que a tinham visto, percebiam que a tranca, aparentemente antiga, a qual a impedia de ser usada como quarto de dormir por mendigos e ladrões, era na verdade comparativamente nova e extremamente forte, habilmente disfarçada numa aparência de rústica antiguidade. Menos de meia-dúzia de homens no reino sequer conhecia o segredo daquela torre.

Não se via nenhum buraco de fechadura na pesada tranca incrustada de verde. Mas os dedos experientes de Conan, se movendo furtivamente sobre ela, pressionaram aqui e ali maçanetas invisíveis ao observador ocasional. A porta se abriu silenciosamente para dentro, e ele entrou numa escuridão compacta, empurrando a porta e fechando-a atrás de si. Uma luz mostraria que a torre estava vazia; uma desnuda e cilíndrica seta de pedra maciça.

Tateando num canto com a certeza da familiaridade, ele encontrou as saliências pelas quais procurava, numa laje de pedra que compunha o chão. Rapidamente, ele a ergueu e, sem hesitar, desceu para dentro da abertura sob ela. Seus pés sentiram uns degraus de pedra levando para baixo, para dentro do que ele sabia ser um túnel estreito, o qual corria diretamente para os alicerces da Torre de Ferro, a três ruas de distância.

O Sino na fortaleza, que só tocava à meia-noite, ou devido à morte de um rei, retumbou subitamente. Numa sala fracamente iluminada da Torre de Ferro, uma porta se abriu e uma figura surgiu dentro de um corredor. O interior da Torre era tão desagradável quanto sua aparência externa. Suas paredes de pedra maciça eram ásperas e sem adorno. As lajes do chão eram profundamente gastas por gerações de pés vacilantes, e a abóbada do teto era sombria na luz fraca das tochas postadas em nichos.

O homem que caminhava naquele corredor sombrio parecia combinar com seus arredores. Era um homem alto e poderosamente constituído, que vestia uma roupa justa de seda negra. Sobre sua cabeça havia um capuz negro que lhe caía ao redor dos ombros, e com dois buracos para os olhos. De seus ombros pendia um folgado manto negro e, sobre um dos ombros, ele carregava um pesado machado, cuja forma não era nem a de ferramenta nem de arma.

Enquanto ele seguia pelo corredor, uma figura veio manquejando até ele – um velho encurvado e ríspido, vergado pelo peso da própria lança e de uma lamparina que segurava numa das mãos.

- Você não é tão pontual quanto seu antecessor, senhor carrasco. – ele se queixou – Acabou de dar meia-noite, e homens mascarados já foram até a cela de milady. Eles lhe aguardam.

- Os sons do sino ainda ecoam entre as torres. – respondeu o executor – Se não sou tão rápido para saltar e correr ao aceno dos aquilonianos, como era o cão que ocupava este cargo antes de mim, eles acharão meu braço não menos rápido. Vá para seus deveres, velho guarda, e deixe-me ir para o meu. Acho que o meu ofício é o mais doce, por Mitra, pois você pisa em corredores frios e perscruta portas enferrujadas de calabouços, enquanto eu deceparei a mais bela cabeça de Tarantia esta noite.

O vigia seguiu capengando pelo corredor, ainda reclamando, e o executor reassumiu calmamente seu caminho. Poucas passadas o levavam a uma curva no corredor, e ele notou, desatento, que à sua esquerda uma porta estava parcialmente aberta. Se ele tivesse pensado, saberia que a porta havia sido aberta desde que o vigia passou; mas seu ofício não era pensar. Ele passou pela porta destrancada, antes de perceber que alguma coisa estava errada; e então, já era tarde demais.

Um suave passo de tigre e o sussurrar de um manto o avisaram, mas, antes que ele pudesse girar, um braço pesado se enganchou por trás, ao redor de seu pescoço, esmagando o grito antes que ele pudesse lhe chegar aos lábios. No breve instante que lhe foi permitido, ele percebeu, numa onda de pânico, a força de seu atacante, contra a qual seus próprios músculos vigorosos eram indefesos. Ele sentiu sem ver a adaga.

- Cão nemédio! – sussurrou uma voz cheia de ira em seu ouvido – Você decepou sua última cabeça aquiloniana!

E isso foi a última coisa que ele ouviu.

Num escuro calabouço, iluminado apenas por uma tocha tremeluzente, três homens se erguiam ao redor de uma mulher que se ajoelhava sobre as lajes alastradas por juncos, e olhava descontroladamente para eles. Estava vestida apenas com uma camisola sumária; seu cabelo dourado lhe caía em lustrosas mechas onduladas sobre os ombros brancos, e seus pulsos estavam amarrados às suas costas. Mesmo na luz trêmula da tocha, e apesar de seu desalinho e palidez de medo, sua beleza era impressionante. Ela se ajoelhou em silêncio, encarando, com olhos arregalados, os seus algozes. Os homens estavam firmemente mascarados e usavam mantos. Um trabalho como este precisava de máscaras, mesmo numa terra conquistada. Apesar disso, ela conhecia todos eles; mas o que ela sabia não afetaria ninguém, após aquela noite.

- Nosso piedoso soberano lhe oferece mais uma chance, condessa. – disse o mais alto dos três, e ele falava Aquiloniano sem sotaque – Ele me mandou dizer que, se você abrandar seu espírito orgulhoso e rebelde, ele ainda abrirá os braços para você. Se não... – ele gesticulou em direção a um sombrio bloco de madeira, no centro de cela. Estava sinistramente manchado, e apresentava muitos talhos profundos, como se uma lâmina afiada, cortando alguma substância suave, tivesse afundado na madeira.

Albiona estremeceu e ficou pálida, recuando. Cada fibra de seu vigoroso corpo jovem tremia com o anseio pela vida. Valerius era jovem também, e era bonito. Muitas mulheres o amavam, ela dizia a si mesma, lutando consigo mesma pela vida. Mas ela não conseguia falar a palavra que salvaria seu delicado corpo jovem do bloco e da queda do machado. Ela não conseguia explicar o motivo. Só sabia que, ao pensar no abraço de Valerius, sua pele se arrepiava com uma repugnância maior que o medo da morte. Ela sacudiu a cabeça negativamente, sem saber o que fazer, compelida por um impulso mais irresistível que o instinto pela vida.

- Então, não há mais nada a ser dito! – exclamou impacientemente um outro, que falava com sotaque nemédio – Onde está o carrasco?

Como que convocada pela palavra, a porta do calabouço se abriu silenciosamente, e uma grande figura ficou emoldurada nela, como uma sombra negra do inferno.

Albiona exprimiu um grito baixo e involuntário, ao ver aquela forma sombria, e os outros arregalaram silenciosamente os olhos, talvez eles mesmos tomados de temor supersticioso diante da silenciosa figura encapuzada. Através da máscara, os olhos brilhavam como brasas de fogo azul e, enquanto estes olhos descansavam sobre cada um dos homens, ele sentia um estranho arrepio lhe descer pela espinha.

Então, o aquiloniano alto agarrou rudemente a garota e a arrastou até o bloco. Ela gritou incontrolavelmente e lutou sem esperanças contra eles, desvairada de terror, mas ele a forçou cruelmente a se ajoelhar e curvou a cabeça loira dela até o bloco sangrento.

- Por que está demorando, carrasco? – ele exclamou furiosamente – Faça sua tarefa!

Ele foi respondido por um ribombar curto e borrascoso de gargalhada, a qual era indescritivelmente ameaçadora. Todos na masmorra ficaram petrificados, encarando a figura encapuzada – as duas figuras em manto, o homem mascarado que se curvava sobre a jovem, e a própria jovem ajoelhada, torcendo a cabeça aprisionada para olhar para o alto.

- O que significa esta alegria inconveniente, cão? – exigiu o aquiloniano incomodado.

O homem de roupa preta arrancou o capuz da cabeça e o lançou ao chão; ele se encostou à porta fechada e ergueu o machado do carrasco.

- Vocês me conhecem, cães? – ele roncou – Vocês sabem quem sou eu?

O silêncio ofegante foi quebrado por um grito.

- O rei! – guinchou Albiona, se livrando, com uma torção, do aperto afrouxado de seu captor – Oh, Mitra, o rei!

Os três homens ficaram imóveis como estátuas, e logo o aquiloniano estremeceu e falou, como um homem que duvida de seus próprios sentidos.

- Conan! – ele exclamou – É o rei, ou seu fantasma! Que trabalho do diabo é este?

- Trabalho do diabo para se igualar a diabos! – zombou Conan, com os lábios sorrindo, mas com o inferno flamejando em seus olhos – Venham e comecem, meus cavalheiros. Vocês têm suas espadas, e eu, este cutelo de açougueiro. Não, eu acho que esta ferramenta de carniceiro se encaixa no trabalho que acontecerá, meus honestos senhores!

- A ele! – murmurou o aquiloniano, puxando a espada – É Conan, e devemos matar ou sermos mortos!

E, como homens acordando de um transe, os nemédios desembainharam suas lâminas e se lançaram sobre o rei.

O machado do carrasco não era feito para tal trabalho, mas o rei empunhava aquela arma pesada e tosca tão levemente quanto uma machadinha; e seus pés rápidos, enquanto ele mudava constantemente de posição, frustravam-lhes o propósito, de todos os três o enfrentarem ao mesmo tempo.

Ele aparou a espada do primeiro homem, usando a lâmina do machado, e esmagou o peito do espadachim num contragolpe, antes que ele pudesse recuar ou se esquivar. O nemédio restante, errando um selvagem golpe vigoroso, teve os miolos salpicados para fora, antes que pudesse recuperar o equilíbrio; e, um instante depois, o aquiloniano foi recuado até um canto, aparando desesperadamente os golpes despedaçadores que caíam sobre ele, lhe faltando oportunidade até para gritar por socorro.

Súbito, o longo braço esquerdo de Conan se esticou e rasgou a máscara que havia na cabeça do homem, revelando-lhe o rosto pálido.

- Cão! – rangeu o rei – Eu achei que lhe conhecia. Traidor! Renegado maldito! Até mesmo este aço ordinário é honroso demais para sua cabeça repugnante. Não; morra como morrem os ladrões!

O machado desceu num arco devastador, e o aquiloniano gritou e caiu de joelhos, agarrando o coto do decepado braço direito, do qual o sangue jorrava. Havia sido decepado na altura do cotovelo, e o machado, incontido na descida, havia lhe talhado profundamente o lado, de modo que suas estranhas saíram.

- Fique aí, e sangre até morrer. – grunhiu Conan enojado, lançando o machado para longe – Venha, Condessa!

Curvando-se, ele cortou as cordas que amarravam os pulsos dela e, erguendo-a como se ela fosse uma criança, saiu da masmorra a passos largos. Ela soluçava histericamente, com os braços lançados ao redor do pescoço musculoso dele, num abraço desesperado.

- Calma. – ele murmurou – Ainda não saímos desta. Se conseguirmos alcançar a masmorra onde a porta secreta se abre para a escadaria que leva ao túnel... diabo, eles ouviram aquele barulho, mesmo através destas paredes.

Do outro lado do corredor, armas retiniam, e os passos e gritos de homens ecoavam sob o teto abobadado. Uma figura arqueada veio mancando rapidamente, de lanterna erguida, e sua luz brilhou em cheio sobre Conan e a garota. Com uma praga, Conan saltou em sua direção, mas o velho vigia, abandonando tanto a lanterna quanto a lança, saiu em disparada pelo corredor, guinchando por socorro a plenos pulmões com sua voz quebrada. Vozes mais graves o responderam.

Conan girou rapidamente e correu na direção oposta. Ele havia sido removido do calabouço que tinha a tranca secreta e a porta escondida, pela qual havia adentrado a Torre e pela qual esperava ir embora, mas ele conhecia muito bem aquela construção sombria. Antes de ser rei, ele havia sido aprisionado nela.

Ele se voltou para uma passagem lateral, e rapidamente emergiu em outro corredor, mais largo, que corria paralelo àquele por onde viera, e que estava abandonado no momento. Isto o trouxe de volta ao corredor que ele havia deixado, mas num ponto estratégico. A poucos passos de distância do corredor, havia uma pesada porta trancada e, diante dela, havia um nemédio barbudo, usando couraça e elmo, de costas para Conan enquanto espiava o corredor, na direção do crescente tumulto e das lanternas que tremeluziam ferozmente.

Conan não hesitou. Colocando a garota no chão, ele correu rápida e silenciosamente, de espada na mão. O homem só se virou quando o rei lhe havia alcançado; berrando de surpresa e terror, ele ergueu sua lança; mas antes que pudesse usar a tosca arma, Conan desceu a espada no elmo do sujeito, com uma força capaz de derrubar um boi. Elmo e crânio foram abertos ao mesmo tempo, e o guarda caiu ao chão.

Num instante, Conan havia puxado a pesada tranca que barrava a porta – muito pesada para um homem comum manusear – e chamou apressadamente Albiona, a qual correu cambaleante até ele. Erguendo-a sem cerimônia com um dos braços, ele carregou através da porta e em direção à escuridão externa.

Eles haviam adentrado um beco estreito, escuro como breu, murado pelo lado da Torre e, do outro lado, pela pedra perpendicular dos fundos de uma fileira de construções. Conan, correndo pela escuridão tão rapidamente quanto ousava, tateava pelas construções em busca de portas ou janelas, mas não achava nenhuma.

A grande porta se abriu com um estrondo atrás deles, e homens saíram em grandes números, com tochas brilhando em suas placas peitorais e espadas nuas. Olhavam ao redor, berrando, incapazes de penetrarem a escuridão com suas tochas, que só serviam para iluminar a poucos passos em qualquer direção, e então entraram correndo num beco escolhido ao acaso – indo para o lado oposto ao que fora tomado por Conan e Albiona.

- Eles logo perceberão seu erro. – ele murmurou, apressando o passo – Se pudermos achar uma fenda neste muro infernal... maldição! O vigia da rua!

Diante deles, um brilho fraco se fez visível, no local em que o beco se abria para uma rua estreita, e ele viu figuras indistintas avultando nela com um brilho de aço. Era de fato o vigia da rua, investigando o barulho que havia ouvido ecoar do outro lado do beco.

- Quem vem lá? – eles gritaram, e Conan rangeu os dentes diante do odiado sotaque nemédio.

- Fique atrás de mim. – ele ordenou à garota – Teremos que abrir nosso caminho à força, antes que os guardas da prisão voltem e nos cerquem entre eles.

E, agarrando sua espada, ele correu diretamente às figuras que se aproximavam.

A vantagem da surpresa era dele. Ele podia vê-los, delineados contra o brilho distante, e eles não podiam vê-lo se aproximar deles desde as profundezas negras do beco. Estava entre eles, antes que pudessem perceber, golpeando com a fúria silenciosa de um leão ferido.

Sua única chance era abrir caminho, antes que pudessem perceber o que estava acontecendo. Mas havia dez deles, em completa armadura de malha – veteranos endurecidos das guerras fronteiriças, nos quais o instinto por batalha era capaz de substituir seus raciocínios confusos. Três deles estavam caídos, antes de perceberem que era apenas um homem que os atacava, mas mesmo assim a reação deles foi instantânea. O clangor do aço se erguia, e faíscas voavam enquanto a espada de Conan se espatifava em elmos pontudos com viseiras e em cotas-de-malha. Ele podia enxergar melhor que eles, e na luz fraca, o movimento rápido de seu corpo fazia dele um alvo incerto. Espadas em movimento cortavam apenas o ar vazio ou resvalavam na lâmina; e, quando ele golpeava, era com a fúria e precisão de um vendaval.

Mas, atrás dele, soaram os gritos dos guardas da prisão, que voltavam correndo do beco, e as figuras em malha à sua frente ainda lhe barravam o caminho, numa eriçada parede de aço. Num instante, os guardas estariam às suas costas – desesperadamente, ele redobrou seus golpes, batendo como um ferreiro numa forja; e logo, percebeu subitamente uma mudança de direção. Do nada, atrás dos guardas, surgiram vinte figuras negras e houve um som de golpes fatais. Aço lampejava na escuridão, e homens gritavam, golpeados mortalmente por trás. Num instante, o beco estava alastrado de formas que se contorciam. Uma figura escura com um manto pulou em direção a Conan, que ergueu a espada ao lhe ver um brilho de aço na mão direita. Mas a outra estava vazia e foi estendida para ele, uma voz sibilou com urgência:

- Por aqui, Majestade! Rápido!

Murmurando uma praga de surpresa, Conan ergueu Albiona com um dos braços maciços e seguiu o ajudante desconhecido. Ele não estava disposto a hesitar, com 30 soldados da prisão se aproximando por trás.

Cercado por figuras misteriosas, ele correu pelo beco, carregando a condessa como se ela fosse uma criança. Ele nada saberia dizer sobre seus salvadores, exceto que eles usavam mantos e capuzes negros. Dúvida e suspeita lhe cruzaram o pensamento, mas eles, pelo menos, lhe haviam matado os inimigos, e ele não viu conduta melhor do que segui-los.

Como que lhe sentindo o medo, o líder lhe tocou levemente o braço e disse:

- Não tema, Rei Conan; somos seus súditos leais.

A voz não era familiar, mas o sotaque era o Aquiloniano das províncias centrais.

Atrás deles, os guardas gritavam, enquanto tropeçavam sobre os cadáveres na lama, e vieram em disparada vingativa para o beco, vendo a vaga massa escura se mover entre eles e a luz da rua distante. Mas os homens encapuzados viraram subitamente em direção à parede aparentemente vazia, e Conan viu uma porta se abrir lá. Ele murmurou uma praga. Havia atravessado aquele beco durante o dia, em tempos passados, e nunca havia percebido uma porta ali. Mas eles a atravessaram, e a porta se fechou atrás deles com o estalido de uma tranca. O som não era tranqüilizante, mas seus guias o apressavam, se movendo com a precisão da familiaridade e guiando Conan com uma mão em cada cotovelo. Era como atravessar um túnel, e Conan sentiu os membros esbeltos de Albiona lhe tremendo nos braços. Então, em algum lugar à frente deles, uma abertura ficou fracamente visível – um simples, e um tanto pequeno, arco negro na escuridão –, e eles a atravessaram em fila.

Após isso, houve uma sucessão desnorteante de pátios e becos escuros, e corredores sinuosos, todos atravessados em total silêncio, até que, finalmente, eles adentraram uma larga câmara dourada, cuja localização Conan não conseguiria imaginar, pois sua rota tortuosa havia confundido até mesmo seu senso primitivo de direção.


10) Uma Moeda de Acheron

NEM TODOS OS SEUS guias adentraram a câmara. Quando a porta se fechou, Coam viu apenas um homem diante de si – uma figura magra, coberta por um manto negro com um capuz. O homem abaixou este último, mostrando o pálido oval de um rosto, com feições calmas e delicadamente esculpidas.

O rei pôs Albiona de pé, mas ela ainda se agarrava a ele e olhava apreensivamente ao redor. A câmara era larga, com paredes de mármore parcialmente cobertas por cortinas de veludo negro, e com espessos tapetes suntuosos sobre o chão de mosaico, banhado pelo suave brilho dourado de lampiões de bronze.

Conan pôs instintivamente a mão no cabo de sua espada. Havia sangue em sua mão; sangue coagulado ao redor da entrada da bainha, pois ele havia embainhado sua lâmina sem limpá-la.

- Onde estamos? – ele exigiu.

O estranho respondeu com uma humilde e profunda reverência, na qual o desconfiado rei não conseguiu detectar qualquer traço de ironia.

- No templo de Asura, Majestade.

Albiona exclamou levemente e se agarrou ainda mais a Conan, olhando fixa e temerosamente para as negras portas arcadas, como se na expectativa de que entrasse alguma forma medonha das trevas.

- Nada tema, minha senhora. – disse o guia deles – Aqui não há nada que lhes possa fazer mal, apesar da superstição vulgar para o contrário. Se seu monarca foi suficientemente convencido da inocência de nossa religião para nos proteger da perseguição dos ignorantes, então certamente uma de suas súditas não precisa ficar apreensiva.

- Quem é você? – indagou Conan.

- Sou Hadrathus, sacerdote de Asura. Um de meus seguidores lhe reconheceu quando você entrou na cidade, e me trouxe a notícia.

Conan grunhiu uma blasfêmia.

- Não tema que outros descubram sua identidade. – Hadrathus lhe garantiu – Seu disfarce enganaria qualquer um, menos um seguidor de Asura, cujo culto procura ver sob o aspecto da ilusão. Você foi seguido até a torre de vigia, e alguns do meu povo adentraram o túnel para lhe ajudar, caso você voltasse por aquele caminho. Outros, inclusive eu, cercaram a torre. E agora, Rei Conan, o comando é seu. Aqui, no templo de Asura, você ainda é rei.

- Por que vocês arriscaram suas vidas por mim? – perguntou o rei.

- Você foi nosso amigo quando se sentava sobre seu trono. – respondeu Hadrathus – Você nos protegeu quando os sacerdotes de Mitra tentaram nos expulsar da terra.

Conan olhou, curioso, ao redor de si. Ele nunca visitara antes o templo de Asura, e nem tinha certeza de que havia um templo destes em Tarantia. Os sacerdotes daquela religião tinham um hábito de esconder seus templos de uma forma excepcional. O culto a Mitra era esmagadoramente predominante nas nações hiborianas, mas o culto a Asura persistia, apesar da excomunhão oficial e do antagonismo popular. Conan havia escutado histórias sombrias sobre templos escondidos, onde fumaça ardente subia de forma incessante desde altares negros, nos quais vítimas raptadas eram sacrificadas diante de uma grande serpente, cuja cabeça medonha sempre oscilava pelas escuridões mal-assombradas.

A perseguição fez com que os seguidores de Asura escondessem seus templos com engenhosa habilidade, e ocultassem seus rituais na obscuridade; e este sigilo, por sua vez, provocou mais suspeitas monstruosas e contos de pecado.

Mas Conan tinha a vasta tolerância dos bárbaros, e havia se recusado a perseguir os seguidores de Asura, ou a permitir que o povo o fizesse sem maiores evidências que fossem apresentadas contra eles, rumores e acusações que não pudessem ser provados. “Se eles se dedicam à magia negra,” ele havia dito, “como podem sofrer com suas perseguições? Se não se dedicam, não há mal neles. Demônios de Crom! Deixe os homens adorarem os deuses que quiserem”.

Diante de um respeitoso convite de Hadrathus, ele se sentou numa cadeira de marfim, e gesticulou a Albiona para que se sentasse em outra, mas ela preferiu se sentar num tamborete de ouro aos pés dele, comprimindo-se contra sua coxa, como se procurando segurança no contato. Como muitos seguidores ortodoxos de Mitra, ela tinha um horror intuitivo dos seguidores e do culto de Asura, instilado em sua infância por histórias absurdas de sacrifício humano e deuses antropomórficos cambaleando através de templos sombrios.

Hadrathus se postou diante deles, com a cabeça descoberta curvada:

- Qual o seu desejo, Majestade?

- Comida, primeiro. – ele grunhiu, e o sacerdote bateu num gongo dourado com um bastão de prata.

Mal o som suave havia parado de ecoar, quando quatro figuras encapuzadas saíram de uma porta encortinada, carregando uma grande travessa de prata, com quatro pernas, pratos fumegantes e vasos de cristal.

Eles a colocaram diante de Conan e se curvaram humildemente, e o rei enxugou as mãos no damasco e estalou os lábios com indisfarçado apetite.

- Cuidado, Majestade! – sussurrou Albiona – Esta gente come carne humana!

- Aposto meu reino que isto não é nada, além de uma genuína carne assada de boi – respondeu Conan – Venha, moça, fique à vontade! Você deve estar faminta após ter passado pela prisão.

Assim aconselhada, e com o exemplo diante de si, de alguém cuja palavra era a lei definitiva para ela, a condessa aquiesceu e comeu voraz, mas graciosamente, enquanto seu senhor dilacerava os quartos de carne com os dentes e bebia sofregamente o vinho, com tanta satisfação que não parecia já ter comido naquela noite.

- Seus sacerdotes são sagazes, Hadrathus. – ele disse, com um grande osso na mão e a boca cheia de carne – Seus serviços serão bem-vindos em minha campanha para readquirir meu reino.

Lentamente, Hadrathus balançou a cabeça, e Conan bateu o osso na mesa, num assomo de fúria impaciente:

- Demônios de Crom! O que aflige os homens da Aquilônia? Primeiro Servius... agora você! Vocês não conseguem fazer nada, a não ser balançar suas cabeças idiotas quando falo em expulsar aqueles cães?

Hadrathus suspirou e respondeu lentamente:

- Milorde, é duro dizê-lo e eu gostaria de dizer o contrário. Mas a liberdade da Aquilônia está acabando! Não, a liberdade de todo o mundo pode estar no fim! Eras se sucedem às eras na história do mundo, e agora estamos entrando numa era de horror e escravidão, como foi há muito tempo atrás.

- O que quer dizer? – indagou o rei, inquieto.

Hadrathus afundou numa cadeira e descansou os cotovelos nas coxas, olhando fixamente para o chão.

- Não são apenas os lordes rebeldes da Aquilônia e os exércitos da Nemédia que estão organizados contra você. – respondeu Hadrathus – É feitiçaria... medonha magia negra, vinda da juventude sombria do mundo. Uma forma medonha foi erguida das sombras do Passado, e ninguém é capaz de enfrentá-la.

- O que quer dizer? – Conan repetiu.

- Falo de Xaltotun de Acheron, que morreu há 3 mil anos, mas hoje anda pela terra.

Conan estava calado, mas em sua mente flutuava uma imagem – a imagem de um rosto barbudo, de beleza calma e inumana. Mais uma vez, ele se viu perseguido por uma sensação de familiaridade inquieta. Acheron... o som da palavra despertou instintivas vibrações de memória e associações em sua mente.

- Acheron. – ele repetiu – Xaltotun de Acheron... você está louco, homem? Acheron tem sido um mito por mais séculos do que eu posso lembrar. Várias vezes me perguntei se ele sequer chegou a existir.

- Foi uma negra realidade – respondeu Hadrathus –; um império de praticantes de magia negra, impregnado em perversidade e agora há muito esquecido. Ele foi finalmente destruído pelas tribos hiborianas do oeste. Os magos de Acheron praticavam repugnante necromancia, taumaturgia do tipo mais maligno e magia pavorosa, ensinada a eles por demônios. E, de todos os sacerdotes daquele reino amaldiçoado, nenhum foi tão poderoso quanto Xaltotun de Python.

- Então, como ele foi derrotado? – Conan perguntou, incrédulo.

- De algum modo, uma fonte de poder cósmico, a qual ele guardava zelosamente, foi roubada e usada contra ele. Aquela fonte retornou a ele, e ele está invencível.

Albiona, apertando o manto negro do carrasco ao redor de si, olhava fixamente para o sacerdote e o rei, sem entender a conversa. Conan sacudiu furiosamente a cabeça.

- Você está brincando comigo. – ele grunhiu – Se Xaltotun morreu há 3000 anos, como este homem pode ser ele? É algum velhaco, que está usando o nome do velho.

Hadrathus se curvou em direção a uma mesa de marfim, e abriu um pequeno cofre de ouro que havia lá. Deste, ele tirou algo que brilhava obtusamente na luz suave – uma grande moeda de ouro, de feitio antigo.

- Você viu Xaltotun sem o véu? Então veja isto. É uma moeda que foi cunhada na antiga Acheron, antes de sua queda. Aquele império negro estava tão impregnado por feitiçaria, que até mesmo esta moeda tem seu uso em magia negra.

Conan a pegou e franziu a testa para ela. Não havia equívocos sobre sua grande antiguidade. Conan havia manuseado muitas moedas nos seus anos de roubos, e tinha um bom conhecimento prático delas. As beiradas estavam gastas, e a inscrição quase apagada. Mas o rosto, estampado em um dos lados, ainda era claro e nítido. E a respiração de Conan foi tragada entre seus dentes fechados. Não fazia frio na câmara, mas ele sentiu um formigamento no couro cabeludo e uma contração gelada na pele. O rosto era o de um homem barbado, impenetrável, com uma beleza calma e inumana.

- Por Crom! É ele! – murmurou Conan. Agora ele entendia o senso de familiaridade, que a visão do homem barbado havia lhe despertado pela primeira vez. Ele havia visto uma moeda como aquela antes, uma vez, há muito tempo numa terra distante.

Com um sacudir de ombros, ele resmungou:

- A semelhança é apenas coincidência... se ele é astuto o suficiente para usar o nome de um mago esquecido, também o é para assumir sua semelhança.

Mas ele falou sem convicção. A visão daquela moeda havia sacudido os alicerces de seu universo. Ele sentia que a realidade e estabilidade estavam desmoronando para um abismo de ilusão e feitiçaria. Um mago era fácil de entender; mas isto era diabolismo além da sanidade.

- É impossível duvidarmos que ele seja mesmo Xaltotun de Python. – disse Hadrathus – Foi ele quem fez desmoronarem os penhascos no Valkia, através de seus feitiços que escravizam os elementos naturais da terra... foi ele quem mandou a criatura das trevas para dentro de sua tenda, antes do amanhecer.

Conan franziu a testa para ele:

- Como soube disso?

- Os seguidores de Asura têm canais secretos de conhecimento. Isso não importa. Mas você percebe a futilidade de sacrificar seus súditos, numa vã tentativa de recuperar sua coroa?

Conan descansou seu queixo no punho, e olhou sombriamente para o nada. Albiona o observava ansiosamente, com o pensamento tateando perplexo pelos labirintos do problema que o confrontava.

- Não há feiticeiro no mundo que possa fazer magia para enfrentar a magia de Xaltotun? – ele finalmente perguntou.

Hadrathus balançou a cabeça negativamente:

- Se houvesse, nós de Asura o conheceríamos. Dizem que nosso culto é um sobrevivente do antigo culto stígio à serpente. Isso é mentira. Nossos ancestrais vieram de Vendhya, além do Mar de Vilayet e dos azuis Montes Himelianos. Somos filhos do Leste, e não do Sul, e temos conhecimento de todos os magos do Leste, que são mais poderosos que os do Oeste. E nenhum deles seria mais do que palha ao vento, diante do poder negro de Xaltotun.

- Mas ele já foi vencido uma vez. – persistiu Conan.

- Sim; uma fonte cósmica foi usada contra ele. Mas essa fonte está nas mãos dele novamente, e ele se encarregará de que ela não seja roubada outra vez.

- E o que é esta maldita fonte? – Conan indagou, irritado.

- Chama-se o Coração de Ahriman. Quando Xaltotun foi derrotado, o sacerdote primitivo, que o havia roubado e usado contra Xaltotun, o escondeu numa caverna assombrada e construiu um pequeno templo sobre a caverna. Três vezes depois disso, o templo foi construído, cada vez maior e mais elaborado que antes, mas sempre no mesmo lugar do santuário original, embora os homens tenham esquecido os motivos. A lembrança do símbolo oculto desapareceu das mentes dos homens comuns, e foi preservada apenas em livros sacerdotais e tomos esotéricos. De onde ele veio, ninguém sabe. Alguns dizem que é o verdadeiro coração de um deus, outros dizem que é uma estrela que caiu dos céus há muito tempo atrás. Até ser roubado, ninguém o viu durante 3 mil anos.

“Quando a magia dos sacerdotes de Mitra falhou contra a de Altaro, acólito de Xaltotun, eles se lembraram da antiga lenda do Coração, e o alto sacerdote e um acólito desceram para dentro da negra e terrível cripta sob o templo, para dentro da qual nenhum sacerdote havia descido durante 3000 anos. Nos antigos volumes encadernados a ferro, que falam do Coração com o simbolismo místico deles, também se fala de uma criatura das trevas, deixada pelo antigo sacerdote, para guardá-lo.

“Lá embaixo, numa câmara quadrada com portas arcadas que levam para trevas imensuráveis, o sacerdote e seus acólitos encontraram um altar de pedra negra, que brilhava fracamente, com um fulgor inexplicável.

“Naquele altar, fica um curioso vaso de ouro, semelhante a uma concha marinha de duas válvulas, a qual se agarra à pedra como um carrapato. Mas estava aberta e vazia. O Coração de Ahriman desaparecera. Enquanto eles olhavam, horrorizados, o guardião da cripta, a criatura das trevas, caiu sobre eles e retalhou o sumo-sacerdote até ele morrer. Mas o acólito fugiu daquele ser – um pária sem mente nem alma, dos fossos, trazido há muito tempo para guardar o Coração –, e escapou subindo as longas e negras escadas estreitas, e carregando o sacerdote, o qual, antes de morrer, contou, ofegante, as notícias aos seus seguidores, mandou que se rendessem a uma força que eles não poderiam derrotar, e pediu segredo. Mas a notícia havia sido sussurrada entre os sacerdotes, e nós, de Asura, soubemos dela”.

- E Xaltotun extrai seu poder daquele símbolo? – Conan perguntou, ainda cético.

- Não. Seu poder é tirado do golfo negro. Mas o Coração de Ahriman veio de algum lugar de luz flamejante, e os poderes das trevas são incapazes de resistir a ele, quando ele está nas mãos de um adepto. É como uma espada que pode golpeá-lo, e não uma espada com a qual ele possa golpear. Ele restaura a vida e pode destruir vida. Ele o roubou, não para usá-lo contra os inimigos, mas para evitar que seja usado contra ele.

- Uma tigela de ouro em forma de concha, sobre um altar negro numa caverna profunda. – Conan murmurou, franzindo a testa enquanto tentava capturar a imagem ilusiva – Isso me faz lembrar de algo que já vi ou ouvi. Mas o que, em nome de Crom, é este ilustre Coração?

- Ele tem a forma de uma grande jóia, semelhante a um rubi, mas pulsando com um fogo cegante com o qual nenhum rubi já brilhou. Ele arde como fogo vivo...

Súbito, Conan se ergueu de um pulo e bateu o punho direito na palma da mão esquerda, como um trovão.

- Crom! – ele rugiu – Como fui idiota! O Coração de Ahriman! O coração de meu reino! Encontre o coração de meu reino, Zelata disse. Por Ymir, era a jóia que vi na fumaça verde; a jóia que Tarascus roubou de Xaltotun, enquanto ele jazia no sono do lótus negro!

Hadrathus também ficou de pé, sua calma lhe caindo de si como se fosse uma roupa:

- O que está dizendo? O Coração, roubado de Xaltotun?

- Sim! – Conan bramiu – Tarascus temia Xaltotun, e queria lhe inutilizar o poder, o qual ele pensou que residisse no Coração. Talvez ele tenha achado que o bruxo morreria, caso o Coração fosse perdido. Por Crom... ahhh!

Com uma selvagem careta de decepção e desgosto, ele deixou sua mão fechada lhe cair no lado.

- Esqueci. Tarascus o deu a um ladrão para que este o lançasse no mar. A esta hora, o sujeito deve estar quase em Kordava. Antes que eu possa segui-lo, ele embarcará e entregará o Coração ao fundo do oceano.

- O mar não irá segurá-lo! – exclamou Hadrathus, tremendo de agitação – O próprio Xaltotun o teria lançado dentro do oceano há muito tempo, se não soubesse que a primeira tempestade o carregaria para a terra firme. Mas, em qual praia desconhecida ele chegará?

- Bom – Conan estava recuperando um pouco de sua confiança animada –, não há garantia de que ele o lance para longe. Se eu conheço ladrões... e devo conhecer, pois eu fui um ladrão em Zamora, no início de minha juventude... ele não se livrou da jóia. Ele a venderá para algum comerciante rico. Por Crom! – ele andava para um lado e para o outro, em sua crescente agitação – Vale a pena procurar! Zelata mandou que eu encontrasse o coração de meu reino, e tudo o mais que ela me mostrou provou ser verdade. É possível que o poder para derrotar Xaltotun se esconda naquela bugiganga escarlate?

- Sim! Aposto minha cabeça nisso! – gritou Hadrathus, com o rosto iluminado de fervor, os olhos brilhando e os punhos fechados – Com ele nas mãos, podemos desafiar os poderes de Xaltotun! Eu juro! Se pudermos recuperá-lo, teremos uma chance maior de recuperar sua coroa e expulsar os invasores de nossos portões. Não são as espadas da Nemédia que a Aquilônia teme, mas as artes negras de Xaltotun.

Conan olhou para ele por um instante, impressionado pelo fervor do sacerdote.

- É como uma busca num pesadelo. – ele finalmente disse – Mas suas palavras ecoam o pensamento de Zelata, e tudo o mais que ela disse era verdade. Procurarei por aquela jóia.

- Ela contém o destino da Aquilônia. – disse Hadrathus com convicção – Mandarei homens com você...

- Não! – exclamou o rei impacientemente, não querendo ser dificultado por sacerdotes em sua busca, embora estes fossem habilidosos em artes esotéricas – Isto é tarefa para um guerreiro. Irei só. Primeiro para Poitain, onde deixarei Albiona com Trocero. Depois, para Kordava e para o mar além, se for necessário. Ela pode estar lá; mesmo que o ladrão pretenda cumprir as ordens de Tarascus, ele terá alguma dificuldade em achar um navio de partida nesta época do ano.

- E, se você encontrar o Coração – gritou Hadrathus –, prepararei o caminho para sua conquista. Antes que você retorne à Aquilônia, espalharei a notícia, através de canais secretos, de que você vive e está retornando com uma magia mais forte que a de Xaltotun. Terei homens prontos para se revoltarem, quando você chegar. Eles se revoltarão, se tiverem certeza de que estarão protegidos contra as artes negras de Xaltotun.

“E eu lhe ajudarei em sua jornada”.

Ele se ergueu e bateu no gongo.

- Um túnel secreto leva, da parte embaixo do tempo para um local fora dos muros da cidade. Você irá para Poitain num barco de peregrino. Ninguém ousará incomodá-lo.

- Como queira. – Com um propósito definido em mente, Conan estava incendiado com impaciência e energia dinâmica – Apenas permita que isso seja feito logo.

Nesse meio tempo, os acontecimentos não se moviam devagar em outro lugar da cidade. Um mensageiro sem fôlego havia entrado abruptamente no palácio, onde Valerius se divertia com suas dançarinas, e, colocando um dos joelhos sobre o chão, arfou uma história distorcida, sobre o quebrar sangrento de uma prisão e a fuga de uma encantadora prisioneira. Ele também trazia as notícias de que o Conde Thespius, a quem a execução de Albiona fora confiada, estava morrendo e implorando para ter uma palavra com Valerius, antes de partir. Cobrindo-se apressadamente com um manto, Valerius acompanhou o homem através de vários caminhos sinuosos, e chegou a um quarto onde jazia Thespius. Não havia dúvida de que o conde estava morrendo; espuma de sangue lhe borbulhava dos lábios a cada horrorizante arfada. Seu braço decepado lhe havia sido amarrado, a fim de deter o sangue; mas, mesmo sem isso, o talho em seu lado era mortal.

Sozinho no quarto com o homem moribundo, Valerius praguejou suavemente:

- Por Mitra, acreditei que o único homem na terra, capaz de dar tal golpe, estivesse morto.

- Valerius! – arfou o moribundo – Ele está vivo! Conan vive!

- O que está dizendo? – exclamou o outro.

- Eu juro por Mitra! – gorgolejou Thespius, quase vomitando o sangue que lhe jorrava até os lábios – Foi ele quem levou Albiona! Ele não está morto... nenhum fantasma voltou do inferno para nos assombrar. É de carne e osso, e mais terrível do que nunca. O beco atrás da torre está cheio de homens mortos. Cuidado, Valerius... ele voltou... para matar a todos nós...

Um forte estremecimento sacudiu a figura manchada de sangue, e o Conde Thespius desabou.

Valerius franziu a testa para o morto, olhou rapidamente ao redor do quarto vazio e, caminhando rapidamente até a porta, abriu-a subitamente. O mensageiro e um grupo de guardas nemédios se encontravam a vários passos corredor abaixo. Valerius murmurou algo que parecia indicar satisfação.

- Todos os portões foram fechados? – ele exigiu saber.

- Sim, Majestade.

- Tripliquem os guardas em cada um. Não deixem que ninguém entre ou saia da cidade sem a mais rigorosa averiguação. Ponham homens para esquadrinharem as ruas e procurarem pelos bairros. Um prisioneiro de grande valor escapou, com a ajuda de um rebelde. Algum de vocês reconheceu o homem?

- Não, Majestade. O velho vigia teve um vislumbre dele, mas só soube dizer que era um gigante, vestido na roupa preta do executor, cujo corpo nu ele achou numa cela vazia.

- É um homem perigoso. – disse Valerius – Não se arrisquem com ele. Todos vocês conhecem a Condessa Albiona. Procurem por ela e, se a encontrarem, matem-na e ao companheiro dela instantaneamente. Não tentem capturá-los vivos.

Retornando à sua câmara palaciana, Valerius convocou à sua presença quatro homens de aspecto curioso e estrangeiro. Eram altos, magros, de pele amarelada e feições imóveis. Eram bastante similares na aparência, igualmente vestidos em longas togas negras, sob as quais seus pés calçados em sandálias eram bem visíveis. Suas feições eram ensombrecidas por seus capuzes. Postavam-se diante de Valerius com as mãos dentro das mangas largas, e os braços cruzados. Valerius olhou para eles sem prazer. Em suas longas viagens, ele havia encontrado muitas raças estranhas.

- Quando eu lhes encontrei passando fome nas selvas khitaianas – ele disse abruptamente –, exilados de seu reino, vocês juraram me servir. Vocês me serviram bem, em sua maneira abominável. Mais um serviço, eu peço, e então eu lhes libertarei de seu juramento.

“Conan, o cimério, rei da Aquilônia, ainda vive, apesar da feitiçaria de Xaltotun – ou talvez por causa dela. Eu não sei. A mente obscura daquele demônio ressuscitado é muito errante e engenhosa para um homem mortal compreender. Mas, enquanto Conan viver, não estarei seguro. O povo me aceitou como o menor de dois males, quando pensou que ele estivesse morto. Se ele reaparecer, o trono tremerá sob meus pés numa revolução, antes que eu possa erguer minha mão.

“Talvez meus aliados pretendam usá-lo para me substituir, caso decidam que já servi ao meu propósito. Não sei. Eu sei que este planeta é pequeno demais para dois reis da Aquilônia. Procurem o cimério. Usem seus talentos sobrenaturais para desentocá-lo, onde quer que ele fuja ou se esconda. Ele tem muitos amigos em Tarantia. Ele teve ajuda quando libertou Albiona. Foi preciso mais de um homem, mesmo para alguém como Conan, para fazer toda aquela matança no beco do lado externo da torre. Mas chega. Peguem seus bastões e descubram a trilha dele. Para onde a trilha levará vocês, eu não sei. Mas encontrem-no! E, quando o encontrarem, matem-no!”.

Os quatro khitaianos inclinaram as cabeças ao mesmo tempo e, ainda em silêncio, se viraram e caminharam sem um ruído para fora da câmara.


11) Espadas do Sul

A ALVORADA, QUE SE ERGUIA sobre as colinas distantes, brilhava nas velas de uma pequena embarcação, que descia o rio, cujo leito se curva a uma milha das muralhas de Tarantia, e dá voltas na direção sul como uma grande serpente. Aquele barco diferia das embarcações comuns, manejadas pelo largo Khorotas, e dos navios mercantes, carregados de riquezas. Era longo e estreito, com uma proa alta e curvada, e era negro como ébano, com caveiras brancas pintadas na borda. No meio da nau, erguia-se uma pequena cabine, com as janelas cobertas de cortinas por dentro. Outras embarcações davam espaço ao agourento barco pintado; era, obviamente, um daqueles “barcos peregrinos”, que carregava um falecido seguidor de Asura em sua última peregrinação misteriosa ao sul, onde, bem distante dos Montes Poitainianos, um rio finalmente fluía para o oceano azul. Naquela cabine jazia, indubitavelmente, o corpo do falecido adorador. Todos os homens estavam familiarizados com a visão daqueles barcos escuros; e os mais fanáticos devotos de Mitra não se atreveriam a tocar ou interferir em suas viagens sombrias.

Qual era seu destino final, os homens não sabiam. Alguns diziam que era a Stygia; outros, uma ilha sem nome além do horizonte; outros diziam que era a glamourosa e misteriosa terra de Vendhya, onde os mortos finalmente chegavam em casa. Mas ninguém sabia ao certo. Tudo o que sabiam era que, quando um seguidor de Asura morria, o corpo ia para o sul, descendo o grande rio, num navio negro remado por um gigantesco escravo, e nem barco nem corpo nem escravo eram novamente vistos; a não ser, naturalmente, que certas histórias obscuras fossem verdadeiras, e fosse sempre o mesmo escravo que remasse os botes para o sul.

O homem que impelia aquele barco particular era tão grande e marrom quanto os outros, embora um exame mais acurado, de perto, revelasse o fato de que a cor era o resultado de pigmentos cuidadosamente aplicados. Ele vestia uma tanga de couro e sandálias, e manobrava os longos remos com força e habilidade incomuns. Mas ninguém chegava muito perto do barco sombrio, pois era bem sabido que os seguidores de Asura eram detestados, e que estes barcos de peregrinação estavam carregados de magia negra. Então, os homens giravam seus barcos para longe e murmuravam um encantamento, enquanto o barco escuro deslizava, e eles jamais sonhariam que estavam ajudando a fuga de seu rei e da Condessa Albiona.

Era uma estranha jornada, naquela negra embarcação delgada, descendo o grande rio para uns trezentos quilômetros de onde o Khorotas vira pro leste, margeando os Montes Poitainianos. Como num sonho, o mutável panorama deslizava para trás. Durante o dia, Albiona se deitava pacientemente na pequena cabine, tão quieta quanto o cadáver que ela fingia ser. Apenas tarde da noite, quando os barcos de prazer – com seus desocupados habitantes reclinados em almofadas de seda, à luz das tochas seguras pelos escravos – deixavam o rio, antes que o amanhecer trouxesse os apressados barcos de pesca, é que a garota se atrevia a sair. Então, ela pegava o longo remo, habilmente preso por cordas, enquanto Conan tirava algumas horas de sono. Mas o rei precisava de pouco descanso. O ardor de sua atividade o mantinha permanentemente alerta; e sua poderosa estrutura estava à altura daquela dura atividade. Sem pararem, eles seguiram para o sul.

Então, eles sumiram rio abaixo, através das noites pontilhadas por milhões de estrelas e dos dias de sol dourado, deixando para trás as terras de inverno à medida que seguiram para o sul. Eles passaram pelas margens de cidades à noite, sobre as quais palpitavam o reflexo de inúmeras luzes; altivas mansões à beira do rio e férteis campinas frutíferas.

Então, finalmente, as montanhas azuis de Poitain ergueram-se diante deles, camada sobre camada, como trincheiras dos deuses, e o grande rio, desviando-se daqueles penhascos em forma de torre, fluía trovejante pelo curso das colinas, com ondas rápidas e espumantes.

Conan observou a margem com atenção. Apoiando brevemente seu remo a um lado, ele aproximou seu barco até a margem, ao lado de um pequeno promontório que penetrava na água, e no qual uns abetos cresciam regularmente em volta de uma rocha cinza e de forma pouco usual.

- Alguns barcos cruzam rapidamente o que há mais adiante. – disse Conan – Hadrathus afirma que é possível fazê-lo, mas nós iremos parar aqui. Ele disse que aqui nos encontraríamos com um homem que nos esperaria com cavalos, mas não vejo ninguém. De qualquer forma, não entendo como conseguiria chegar a notícia de nossa viagem, antes mesmo de nós.

Ele atracou e amarrou a corda da proa a uma raiz curva, e logo saltou na água, lavou a pintura marrom da pele e saiu pingando, com sua cor natural. Da cabine, tirou uma cota-de-malha aquiloniana que Hadrathus lhe havia conseguido, e sua espada. Enquanto isso, Albiona se vestia com roupas apropriadas para uma viagem às montanhas. Quando Conan ficou totalmente armado, ele se virou em direção à margem e viu um homem sob as árvores, e instintivamente levou a mão à espada. O homem, de capa escura, segurava as rédeas de um cavalo branco e selado, para mulheres, e um baio, de guerra.

- Quem é você? – indagou o rei.

O outro fez uma profunda reverência:

- Sou um devoto de Asura. Uma ordem veio. Eu obedeci.

- Como assim “veio”? – perguntou Conan, mas o outro simplesmente fez outra reverência:

- Vim para guiá-los através das montanhas, até que encontremos um forte poitainiano.

- Não preciso de guia – disse Conan –; conheço muito bem esses montes. Obrigado pelos cavalos, mas a condessa e eu chamaremos menos a atenção indo sós, do que acompanhados por um discípulo de Asura.

O homem entregou a Conan as rédeas dos cavalos, e fez uma última reverência. Logo subiu ao barco, afastou-o da margem e se perdeu rapidamente de vista, rio abaixo, penetrando nas águas perigosas de onde vinha o estrondo da correnteza. Com um sacudir confuso de sua cabeça, Conan ergueu a condessa à sela do corcel branco, e logo montou no cavalo de combate, e cavalgaram em direção aos cumes que se destacavam contra o céu.

A região que se estendia aos pés das elevadas montanhas era agora um território fronteiriço totalmente devastado, onde os barões reverteram a práticas feudais, e os bandoleiros perambulavam à vontade. Poitain não havia declarado formalmente sua independência da Aquilônia, mas era efetivamente um reino autônomo, governado por seu conde hereditário: Trocero. Embora o sul do país estivesse formalmente submetido a Valerius, o novo rei nunca havia se atrevido a enfrentar a desafiante bandeira do leopardo escarlate de Poitain.

O rei e sua bela companhia se aproximaram das longas encostas azuis ao anoitecer. Enquanto subiam, a agitada região estendia-se como um vasto manto púrpura, bem abaixo deles, com o brilho de rios e lagos, o resplendor amarelo de largos campos, e o lampejo branco de torres distantes. Diante deles e bem acima, eles vislumbravam a primeira das firmes fortalezas poitainianas, dominando uma estreita passagem, com a bandeira vermelha tremulando contra o céu azul.

Antes que eles a alcançassem, um grupo de cavaleiros, vestindo armaduras polidas, saiu de entre as árvores, e seu líder ordenou severamente aos viajantes para que parassem. Eram homens altos, com os olhos escuros e cabelos negros do sul.

- Alto! Diga-nos quem é e por que cavalga a Poitain.

- Acaso Poitain se revoltou – perguntou Conan, olhando atentamente o outro –, para que um homem em armadura aquiloniana seja detido e interrogado como se fosse um estrangeiro?

- Muitos bandidos cavalgam para fora da Aquilônia nestes tempos. – disse o outro – E, se repudiar um usurpador é se revoltar, então, sim, nos revoltamos. Preferimos servir a memória de um homem morto do que aceitar o comando de um cão vivo.

Conan tirou o elmo que lhe cobria parte do rosto, agitou para trás sua negra cabeleira e olhou fixamente o homem que havia falado. Este tremeu violentamente e ficou pálido.

- Santos do céu! – ele disse, estremecendo-se – É o rei... vivo!

Os demais olharam atônitos e, um instante depois, surgiu de suas bocas um grande grito de espanto e alegria. Cercaram o cimério, invadidos por uma intensa emoção, lançando seus gritos de guerra e brandindo as espadas em sua extrema emoção. Aquela aclamação dos guerreiros poitainianos era capaz de comover ao mais duro dos corações.

- Ah, o Conde Trocero vai chorar de alegria quando vê-lo, senhor! – gritou um.

- Sim, e Prospero. – gritou outro – O general parece envolto num manto de melancolia, e se amaldiçoa, dia e noite, por não ter chegado a tempo a Valkia para morrer ao lado de seu rei!

- Atacaremos atrás de um império! – gritou outro, erguendo sua longa espada acima da cabeça – Viva Conan, rei de Poitain.

O estrondo do aço brilhante ao seu redor, e os gritos de aclamação assustaram as aves que, das árvores próximas, se ergueram ao céu, como nuvens multicoloridas. O sangue caloroso dos homens do sul havia se inflamado, e eles não desejavam outra coisa, que não serem guiados por seu recém-encontrado soberano à batalha e ao saque.

- Quais são suas ordens meu senhor? – exclamaram – Permita que um de nós se antecipe e leve a notícia de sua chegada a Poitain! Bandeiras irão ondular em todas as torres, um tapete de rosas cobrirá o caminho aos pés de seu cavalo; as mulheres mais belas e o melhor da cavalaria do sul te aclamarão, e lhe renderão as honras que merece...

Conan negou com a cabeça.

- Quem duvidaria de sua lealdade? Mas, destas montanhas o vento sopra sobre o território de meus inimigos, e prefiro que estes não saibam que estou com vida... ainda não. Levem-me ao Conde Trocero e guardem o segredo de minha identidade.

Deste modo, o que os cavalheiros desejavam que fosse uma recepção triunfal se reduziu a uma discreta entrada na cidade. Viajaram apressadamente, sem falar com ninguém. Apenas as imprescindíveis palavras aos capitães da guarda de cada posto de mando. Conan ia entre seus cavaleiros, com a viseira do elmo ocultando-lhe o rosto.

As montanhas estavam despovoadas, exceto por bandidos, e as guarnições intermitentes dos destacamentos e fortins.

Os lúdicos e despreocupados poitainianos não precisavam trabalhar demais para viver de suas terras fertilíssimas. Ao sul das cordilheiras, as ricas e belas planícies de Poitain se estendiam até o rio Alimane; mas, além do rio, ficava a terra de Zingara. Mesmo agora, quando o inverno estava ondeando as folhas além das montanhas, a grama alta e exuberante ondulava sobre as planícies, onde pastavam os cavalos e o gado pelos quais Poitain era famosa. Palmeiras e bosques de laranjais sorriam ao sol, e as deslumbrantes torres púrpuras, douradas e escarlates dos castelos refletiam a luz dourada. Era uma terra de calor moderado e de abundância, de belas mulheres e guerreiros ferozes. Não eram apenas as terras duras que geravam homens duros. Poitain estava cercada por vizinhos cobiçosos, e seus filhos aprendiam a serem duros em guerras incessantes. Ao norte, a terra era protegida por montanhas, mas ao sul, apenas o Alimane separava as planícies de Poitain das planícies de Zingara; e, não uma, mas por mil vezes, aquele rio havia se banhado de vermelho. Ao leste, ficava Argos; e além de Argos, Ophir – reinos poderosos e avarentos. Os cavaleiros de Poitain defendiam suas terras com o peso e a lâmina de suas espadas, e pouco conheciam o descanso e da ociosidade.

Por fim, o cimério chegou ao castelo do Conde Trocero de Poitain...

Conan se sentava num divã de seda, no centro de uma sala suntuosa, cujas tênues cortinas se mexiam com a brisa que entrava pelas janelas. Trocero vagava pela sala como uma pantera – um homem magro e inquieto, com cintura esguia e ombros de espadachim, o qual carregava seus anos com leveza.

- Deixe que lhe proclamemos rei de Poitain, senhor! – insistiu o conde – Deixe aqueles porcos do norte carregarem o jugo que eles mesmos colocaram no pescoço. O sul ainda é seu. Fique morando aqui, e nos governe entre as flores e as palmeiras.

Mas Conan sacudiu a cabeça:

- Não há terra mais nobre em todo o mundo do que a de Poitain. Mas eu não conseguiria me manter sozinho no trono, por mais valentes que sejam seus homens.

- Mantiveram-se sozinhos durante muitas gerações. – respondeu Trocero, com o zeloso orgulho de sua raça – Nós nem sempre fizemos parte da Aquilônia.

- Eu sei. Mas agora a situação não é a mesma, quando todos os reinos estavam divididos em pequenos principados que lutavam entre si. Mas os dias dos ducados e das cidades livres acabaram; estamos na era dos impérios. Os governantes alimentam grandes ambições imperiais, e só a união faz a força.

- Então, vamos anexar Zingara a Poitain. – disse Trocero. – Há meia dúzia de príncipes zíngaros que lutam continuamente entre si e, além disso, o país está dividido por guerras civis. O conquistaremos província por província, e o incluiremos em nossos domínios. Então, com a ajuda dos zíngaros, dominaremos Ophir e Argos. Construiremos um império...

Conan sacudiu novamente a cabeça:

- Deixe que os outros alimentem sonhos imperiais. Eu só quero manter o que é meu. Não desejo governar um império forjado a sangue e fogo. Uma coisa é se apossar de um trono com ajuda dos próprios súditos e governá-los com seu consentimento; e outra, bem diferente, é subjugar uma nação inteira e implantar um regime de terror. Não quero ser outro Valerius. Não, Trocero; ou simplesmente governarei toda a Aquilônia, ou não governarei nada.

- Então, nos guie através das montanhas, e derrotaremos os nemédios.

Os olhos ferozes de Conan brilharam de admiração.

- Não, Trocero. Seria um sacrifício inútil. Já lhe disse o que devo fazer para recuperar meu reino. Tenho que encontrar o Coração de Ahriman.

- Mas isto é loucura! – protestou Trocero – Os resmungos de um sacerdote herege, e de uma velha bruxa louca!

- Você não estava em minha tenda, antes do que ocorreu em Valkia. – respondeu Conan sombriamente, olhando involuntariamente para o pulso direito, no qual ainda havia leves marcas azuis – Você não viu os penhascos desmoronarem e destruírem o melhor de meu exército. Não, Trocero. Estou convencido. Xaltotun não é um homem mortal, e só com o Coração de Ahriman poderemos vencê-lo. Por isso, partirei a cavalo para Kordava... e sozinho.

- Mas isso é perigoso! – protestou Trocero.

- A vida é perigosa. – trovejou o rei – Não viajarei como rei da Aquilônia; nem sequer como cavaleiro de Poitain, mas como um mercenário errante, como eu fui no passado, quando cavalguei em Zingara. Ah, tenho muitos inimigos ao sul do Alimane, e tanto na terra quanto no mar. Muitos que não me conhecem como rei da Aquilônia, certamente se lembrarão de mim como Conan dos piratas barachos, ou como Amra, dos corsários negros. Mas também conto com muitos amigos e pessoas que me ajudariam para seu próprio benefício.

Um leve sorriso de nostalgia se desenhava nos lábios do cimério. Trocero deixou cair as mãos, desanimado, e olhou para Albiona, que estava sentada num divã próximo.

- Compreendo suas dúvidas, milorde. – ela disse – Mas eu também vi a moeda no templo de Asura. Hadrathus disse que datava de 500 anos antes da queda de Acheron. Se Xaltotun é o homem representado nessa moeda, como assegura Sua Majestade, isso significa que ele não era um feiticeiro comum, mesmo em sua outra vida, pois os anos de sua vida se contaram por séculos, e não como as vidas de outros homens são numeradas.

Antes que Trocero pudesse responder, soaram batidas discretas na porta, e logo uma voz disse:

- Milorde, surpreendemos um homem se esgueirando ao redor do castelo. Disse que deseja falar com seu convidado. Esperamos suas ordens.

- Um espião da Aquilônia! – disse Trocero, pegando sua adaga, mas Conan ergueu a voz e disse:

- Abra a porta e deixe-me vê-lo.

A porta foi aberta e nela apareceu um homem, seguro em ambas as mãos por dois soldados. Era um indivíduo delgado, vestindo um manto escuro com capuz.

- Você é devoto de Asura? – perguntou Conan

O homem assentiu em silêncio, os robustos soldados se entreolharam com assombro e olharam hesitantes para Trocero.

- O rumor chegou ao sul. – disse o homem – Nossa seita não tem adeptos além do rio Alimane, de modo que não poderemos lhe ajudar nessa área. Mas há homens nossos na direção leste, até o rio Khorotas, e isto é o que soubemos: o ladrão que, por encargo de Tarascus, levava o Coração de Ahriman, não chegou a Kordava. Foi morto por assaltantes nas montanhas de Poitain. O chefe do bando se apoderou da jóia, sem conhecer sua verdadeira natureza. E como, além disso, temia a destruição de seu bando por cavaleiros poitainianos, ele vendeu-a ao mercador kothiano Zorathus.

- Ah! – disse Conan se levantando, interessado – E o que houve com Zorathus?

- Há quatro dias, ele cruzou o Alimane, em direção a Argos, com um pequeno grupo de servos armados.

- Ele é um tolo, em atravessar Zingara numa época dessas. – disse Trocero.

- Sim, os tempos estão muito revoltos do outro lado do rio. Mas Zorathus é um homem ousado e negligente. Ele tem muita pressa em chegar a Messantia, onde espera encontrar um comprador para a jóia. Talvez ele pense em vendê-la finalmente na Stygia. Talvez ele suspeite de sua verdadeira natureza. De qualquer modo, ao invés de seguir a longa estrada que serpenteia ao longo das fronteiras de Poitain e adentra Argos, longe de Messantia, ele atravessou o leste de Zingara, seguindo o caminho mais curto e direto.

Conan golpeou a grande mesa com o punho fechado, de modo que ela tremeu.

- Então, por Crom, a fortuna finalmente jogou a meu favor! Um cavalo, Trocero, e a armadura de um Companheiro Livre! Zorathus leva grande vantagem, mas não tão grande a ponto de me ultrapassar, se eu segui-lo até o fim do mundo!


12) A Presa do Dragão

AO AMANHECER, CONAN atravessou, a cavalo, a correnteza rasa do Rio Alimane, seguindo o rastro da caravana que se dirigia para o sudoeste; e, atrás dele, na outra margem, o Conde Trocero estava imóvel sobre o cavalo, à frente de seus cavaleiros vestidos em aço, sobre os quais ondulava, sob a brisa da manhã, o grande estandarte do leopardo escarlate. Aqueles homens, de cabelos escuros e armaduras reluzentes, permaneceram em silêncio até a silhueta de seu rei se perder no azul da distância, que ficava branca em direção ao nascer do sol.

Conan montava um grande cavalo negro, presente de Trocero. Não usava mais a armadura da Aquilônia. Havia vestido a armadura de um veterano dos Companheiros Livres, dentre os quais havia homens de todas as raças. Seu capacete era um morion simples e cheio de amassaduras, o couro de seus arreios estava desgastado e a cota-de-malha brilhava como a de um soldado veterano de muitas campanhas, e a capa vermelha, que pairava displicentemente sobre seus ombros, estava manchada e rasgada. Conan tinha o aspecto de um soldado da fortuna, hábil em todo tipo de vicissitudes, rico um dia, depois de um saque, e indigente no outro pela má sorte numa partida de dados.

Mais que representar bem seu papel, Conan o sentia. Era o despertar de velhas lembranças, o ressurgir dos dias turbulentos, ferozes e gloriosos, bem anteriores à jornada na qual conseguira a coroa. Dias e dias de mercenário errante, bravateador, brigão, beberrão, despreocupado com o amanhã e sem maior ambição do que beber cerveja, beijar lábios vermelhos e brandir sua espada afiada pelos campos de batalha do mundo.

Inconscientemente, Conan adotou novamente os velhos costumes. Cavalgava como os soldados, acentuando um pouco mais o movimento; enquanto, de seus lábios, surgiam espontaneamente pragas esquecidas e velhas canções, que ele cantava em coro com seus descuidados amigos, em muitas tabernas, em muitas estradas empoeiradas e campos sangrentos.

Era uma terra inquieta a qual ele cavalgava. As companhias de cavalaria, que habitualmente patrulhavam o rio, alertas contra incursores vindos de Poitain, não se viam em parte alguma. Lutas internas haviam deixado as fronteiras sem guarnição. A longa estrada branca se estendia, monótona, de horizonte a horizonte. As longas caravanas de camelos, os pesados vagões e os rebanhos de ovelhas pareciam haver desaparecido; apenas grupos ocasionais de cavaleiros, vestidos de couro e metal, com seus rostos aquilinos e olhos endurecidos, cavalgando com ar cansativo. Olhavam inquisitivamente para Conan, mas se afastavam, pois a armadura de cavaleiro solitário não prometia saque, mas apenas duros golpes.

As aldeias estavam desertas e queimadas até os alicerces, e os campos, abandonados. Só os mais bravos se aventuravam a cavalgar pelas estradas naqueles tempos, e a população nativa havia sido dizimada pelas guerras civis e incursões provenientes da outra margem do rio. Em épocas de paz, esses caminhos haviam sido passagem obrigatória das caravanas de mercadores que viajavam de Poitain a Messantia, em Argos, ou vice-versa. Mas, naquela ocasião, os comerciantes consideravam mais prudente se dirigir para o leste, atravessando Poitain, para logo encontrar Argos, e desviar-se para o sul. Era um caminho mais longo, porém mais seguro. Só um homem muito imprudente arriscaria a vida e bens naquela estrada, que cruzava Zingara.

O horizonte sul tinha imagem de chamas à noite, e vagos pilares de fumaças levados para o alto, de dia; nas cidades e planícies do sul, homens morriam, tronos desabavam e castelos pegavam fogo. Conan sentiu a velha atração pela guerra mercenária: virar seu cavalo e mergulhar na luta, na pilhagem e no saque, como nos velhos tempos. Por que trabalhar duro para recuperar o governo de um povo que já o havia esquecido? Para que perseguir um fogo-fátuo? Para que perseguir uma coroa que estava perdida para sempre? Por que ele não poderia buscar o esquecimento, se perder em marés vermelhas de guerra e saque que o envolveram tão freqüentemente no passado? Seria mesmo impossível esculpir um novo reino para ele? O mundo estava entrando numa era de ferro, uma era de guerras e ambições imperiais; alguns homens fortes poderiam muito bem se erguer sobre as ruínas de nações como conquistadores supremos. Por que ele próprio não poderia ser um? Então, seu demônio familiar lhe sussurrou no ouvido, e os fantasmas do seu passado sangrento e sem lei percorriam sua mente. Mas ele não se desviou do caminho; continuou cavalgando, sempre em frente, buscando a resposta a uma pergunta que se tornava cada vez mais indomável, até o ponto de, às vezes, parecer estar perseguindo um sonho impossível.

Ele apressou o trote de seu corcel negro o máximo que pôde, mas a longa estrada branca continuava desolada diante dele, de horizonte a horizonte. Zorathus levava uma vantagem considerável, mas Conan avançava firmemente, sabendo que viajava muito mais rápido que os mercadores sobrecarregados. E assim, ele chegou ao castelo do Conde Valbroso, uma construção pousada nas rochas nuas, como um ninho de abutre a vigiar aquele caminho.

Valbroso desceu da fortaleza, acompanhado de seus soldados. Era um homem magro e escuro, com olhos cintilantes e nariz aquilino, como uma ave de rapina. Usava uma armadura negra e seguiam-no trinta lanceiros de bigodes escuros, verdadeiros falcões das guerras fronteiriças, tão avarentos e impiedosos quanto seu próprio senhor. Ultimamente, a taxa das caravanas estava magra, e Valbroso amaldiçoava as guerras civis que despojavam as estradas de seu gordo comércio, mesmo quando as abençoava pelas liberdades que elas lhe permitiam com os vizinhos.

Ele não esperava muito do cavaleiro solitário que havia vislumbrado de sua torre, mas qualquer grão era bem-vindo a seu moinho. De uma olhada, ele havia avaliado a desgastada cota-de-malha e o escuro rosto cicatrizado de Conan, e suas conclusões foram as mesmas que as dos cavaleiros que haviam passado pelo cimério na estrada: um homem de bolsa vazia e lâmina rápida.

- Quem é você, velhaco? – ele perguntou de forma exigente.

- Um mercenário, cavalgando para Argos. – respondeu Conan – Que importa o nome?

- Você está cavalgando na direção errada para um Companheiro Livre. – rosnou Valbroso – Ao sul, a luta está boa, e o saque também. Junte-se a mim. Você não passará fome. A estrada continua vazia de mercadores gordos para serem saqueados, mas pretendo levar meus velhacos e viajar para o sul, para vender nossas espadas a qualquer facção que parecer mais poderosa.

Conan não respondeu de imediato, sabendo que, se recusasse a oferta, ele poderia ser instantaneamente atacado pelos soldados de Valbroso. Antes que pudesse tomar uma decisão, o zíngaro falou de novo:

- Vocês, velhacos dos Companheiros Livres, sempre conhecem truques pra fazerem os homens falarem. Eu tenho um prisioneiro... o último mercador que eu peguei, por Mitra, e o único que vi em uma semana... e o miserável é teimoso. Ele tem uma caixa de ferro, cujo segredo nos desafia, e eu não consegui convencê-lo a abri-la. Por Ishtar, eu acreditava conhecer todas as formas de persuasão existentes, mas talvez você, como um Companheiro Livre veterano, saiba algo que não sei. De qualquer forma, venha comigo e veja o que pode fazer.

As palavras de Valbroso instantaneamente animaram Conan. Parecia que o prisioneiro era Zorathus. Conan não conhecia o mercador, mas qualquer homem teimoso o bastante para percorrer a estrada de Zingara em tempos como aqueles, seria obstinado o bastante para resistir à tortura.

Ele avançou até Valbroso e cavalgou pelo caminho tortuoso, até o topo da colina, onde ficava o frágil castelo. Como soldado, deveria ter cavalgado atrás do conde, mas a força do hábito o fez esquecê-lo, e Valbroso não prestou atenção. Anos de vida na fronteira ensinaram ao conde que aquele lugar não era a corte real. Ele era ciente da independência dos mercenários, cujas espadas abriram caminho para muitos reis subirem ao trono.

Havia um fosso seco, meio preenchido com entulho em alguns lugares. Os cascos dos cavalos ressoaram pela ponte levadiça e pelo arco do portão. Atrás deles, a grande porta de entrada caiu com um estrondo metálico. Eles entraram num pátio deserto, cercado por capim escasso e com um poço no meio. Barracas para soldados se erguiam desordenadamente, próximas à muralha, e mulheres, vulgares ou ornamentadas com bizarras roupas luxuosas, olhavam das portas. Soldados com malhas enferrujadas jogavam dados nas lajes sob as abóbadas. Parecia mais o refúgio de um bandido que o castelo de um nobre.

Valbroso desmontou e sinalizou a Conan para segui-lo. Passaram pelo vão da porta e por um corredor abobadado, onde foram recebidos por um homem cicatrizado, de olhar duro, usando cota-de-malha e descendo uma escada de pedra – evidentemente o capitão da guarda.

- Ah, Beloso! – disse Valbroso – Ele falou?

- Ele é persistente – resmungou Beloso, lançando um olhar desconfiado para Conan.

Valbroso resmungou uma praga e subiu ruidosamente a escada espiralada, seguido por Conan e o capitão. Enquanto subiam, os gemidos de um homem em agonia mortal ficaram audíveis. A câmara de torturas de Valbroso ficava no alto da corte, e não numa masmorra do subsolo. Naquele compartimento, onde um homem magro e peludo, de aspecto bestial, usando calças de couro e agachado, roia vorazmente um osso de boi, estavam os instrumentos de tortura: potros, botas, ganchos e todos os acessórios criados pela mente humana para dilacerar carne, quebrar ossos, bem como romper e arrancar veias e ligamentos.

Num potro, havia um homem nu estendido, e um único olhar mostrou a Conan que ele estava morrendo. O alongamento não-natural de seus membros e corpo indicava articulações desmontadas e rupturas irreversíveis. Era um homem escuro, com um rosto inteligente e aquilino, e espertos olhos escuros. Eles agora estavam vidrados e injetados de sangue, devido à dor, e o orvalho da agonia brilhava em seu rosto. Seus lábios contraídos deixavam à mostra as gengivas escurecidas.

- Lá está a caixa. – perversamente, Valbroso, chutou um pequeno, porém pesado, cofre de ferro, que estava no chão próximo. Estava intrincadamente entalhado com pequenas caveiras e dragões curiosamente sinuosos e enroscados uns aos outros, mas Conan não viu prendedor ou argola de cadeado que pudesse abrir a tampa. As marcas de fogo, de machados, alavancas e cinzéis eram meros arranhões.

- Esta é a caixa do tesouro do cão. – disse Valbroso furiosamente – Todos os homens do sul sabem de Zorathus e seu cofre de ferro. Sabe Mitra o que há nele. Mas ele não irá ceder seu segredo.

Zorathus! Era verdade, então; o homem que ele procurava jazia à sua frente. O coração de Conan bateu violentamente, enquanto ele se inclinava sobre a forma maltratada, embora ele não desse evidências de sua aflita ansiedade.

- Afrouxe essas cordas, velhaco! – ele ordenou asperamente ao torturador, e Valbroso e seu capitão se encararam. No esquecimento daquele instante, Conan havia usado seu tom imperial, e o bruto em couro de animal instintivamente obedeceu ao comando cortante daquela voz. Ele afrouxou gradualmente para que o súbito abrandamento das cordas não fosse um tormento tão grande para as articulações quanto fora o estiramento.

Pegando uma jarra de vinho próxima, Conan colocou a extremidade nos lábios do infeliz. Zorathus engoliu espasmodicamente, e parte do líquido escorregou sobre seu peito ofegante.

De dentro dos olhos avermelhados veio um brilho de reconhecimento, e os lábios sujos de espuma se abriram. Deles saiu um lamento angustiado na língua Kothiana:

- Então, isto é a morte? A longa agonia terminou? Pois este é o Rei Conan, que morreu em Valkia, e eu estou entre os mortos.

- Você não está morto. – disse Conan – Mas está morrendo. Você não será mais torturado. Eu me encarregarei disso. Mas não posso mais lhe ajudar. Mas antes que morra, me diga como abrir seu cofre de ferro!

- Meu cofre de ferro... – murmurou Zorathus em frases entrecortadas pelo delírio – O cofre forjado entre as montanhas flamejantes de Khrosha; o metal que nenhum cinzel pode cortar. Quantos tesouros ele carregou, através de toda a extensão do mundo! Mas nenhum tesouro como o que guarda agora.

- Diga-me como abri-lo. – insistiu Conan – Ele não pode mais lhe ser útil, mas a mim ainda pode ajudar.

- Sim, você é Conan. – murmurou o Kothiano – Eu lhe vi sentado em seu trono, no grande salão público de Tarantia, com sua coroa na cabeça e o cetro na mão. Mas você está morto; você morreu em Valkia. E sei que meu próprio fim está perto.

- O cão diz o quê? – exigiu Beloso impacientemente, sem entender Kothiano – Ele vai nos dizer como abrir o cofre?

Como se a voz lhe despertasse uma faísca de vida no peito contorcido, Zorathus virou seus olhos avermelhados em direção ao que falara.

- Só contarei a Valbroso. – ele arfou em Zíngaro – A morte está perto de mim. Aproxime-se, Valbroso!

O conde o fez, com seu rosto escuro iluminado pela cobiça. Atrás dele, seu taciturno capitão, Beloso, também se aproximou.

- Pressione as sete caveiras na borda, uma após a outra. – ofegou Zorathus – Então, pressione a cabeça do dragão que se contorce de um lado a outro da tampa. Depois, aperte a esfera nas garras do dragão. Isso abrirá a tampa secreta do cofre.

- Rápido, a caixa! - gritou Valbroso, com uma praga.

Conan a levantou e colocou-a em um estrado, e Valbroso o empurrou para o lado.

- Deixe-me abri-la! - gritou Beloso, pondo-se à frente.

Valbroso o empurrou para trás, com a ambição brilhando em seus olhos negros.

- Ninguém além de mim irá abri-la! – ele gritou.

Conan, cuja mão se dirigira instintivamente ao cabo de sua espada, olhou para Zorathus. Os olhos do homem estavam vidrados e avermelhados, mas estavam fixos em Valbroso com ardente intensidade; e havia a sombra de um retorcido sorriso ameaçador nos lábios do moribundo? O mercador só entregou o segredo quando soube que estava morrendo. Conan voltou a olhar Valbroso, mesmo enquanto o moribundo o observava.

Ao longo da borda da tampa, sete caveiras estavam entalhadas entre galhos entrelaçados de estranhas árvores. Um dragão incrustado encontrava-se contorcido ao longo da parte superior da tampa, entre arabescos adornados. Valbroso pressionou as caveiras com estrondosa rapidez e, enquanto comprimia seu polegar na cabeça do dragão entalhado, ele praguejou rapidamente e retirou a mão, sacudindo-a irritado.

- Uma ponta afiada nos entalhes! - ele rosnou – Furei meu polegar.

Ele pressionou a bola de ouro, segura pelas garras do dragão, e a tampa se abriu bruscamente. Seus olhos foram deslumbrados por uma chama dourada. Parecia, às suas mentes estonteadas, que o cofre entalhado estava cheio de um fogo incandescente, o qual se derramava pela borda e se estendia no ar em faíscas palpitantes. Beloso gritou e Valbroso prendeu a respiração. Conan ficou sem fala, com seu cérebro tomado pelo resplendor.

- Mitra, que jóia!

A mão de Valbroso mergulhou no cofre e saiu com uma grande esfera escarlate e pulsante, que preencheu a sala com um brilho suave. No seu fulgor, Valbroso parecia um cadáver. E o moribundo, desamarrado no potro, riu selvagem e repentinamente.

- Tolo! - ele gritou - A jóia é sua! Dei-lhe a morte com ela! O arranhão em seu polegar... olhe pra cabeça do dragão, Valbroso!

Todos se viraram e arregalaram os olhos. Algo diminuto brilhou da escancarada boca esculpida.

- A presa do dragão! - guinchou. Zorathus - Mergulhada no escorpião negro da Stygia! Tolo, estúpido em abrir o cofre de Zorathus com as mãos nuas! Morto! Você é um homem morto agora!

E, com uma espuma sangrenta nos lábios, ele morreu.

Valbroso cambaleou, gritando:

- Oh, Mitra, estou ardendo! - ele guinchou – Minhas veias queimam com fogo líquido! Minhas articulações estão explodindo! Morte! Morte!

E ele cambaleou e se espatifou de ponta-cabeça. Houve um instante de medonhas convulsões, no qual seus membros se retorceram em posições horrendas e não-naturais, e então ele se congelou naquela pose, com os olhos vítreos mirando fixa e cegamente para o alto, e seus lábios contraídos para trás, mostrando gengivas enegrecidas.

- Morto! - murmurou Conan, se abaixando para pegar a jóia no chão onde rolara da mão rígida de Valbroso. Ela jazia no chão, como um poço trêmulo de fogo do sol poente.

- Morto! - sussurrou Beloso, com a loucura em seus olhos. Então, ele se moveu.

Conan foi pego desprevenido, com os olhos deslumbrados e suavemente estonteado pelo fulgor da grande gema. Ele não se deu conta das intenções de Beloso, até que algo se espatifou com terrível força sobre seu elmo. A incandescência da jóia se esparramou numa chama mais vermelha e ele caiu de joelhos devido à pancada.

Ele ouviu um rápido movimento de pés e um berro, semelhante ao de um boi em agonia. Estava atordoado, mas não totalmente inconsciente, e percebeu que Beloso havia pegado o cofre de ferro e o arremessado sobre sua cabeça, quando se abaixara. Só o capacete havia lhe salvado o crânio. Ele se ergueu cambaleante, puxando sua espada e tentando sacudir a escuridão de seus olhos. A sala girava diante de seu olhar aturdido. Mas a porta estava aberta e passos rápidos diminuíam de volume na escada espiralada. No chão, o brutal torturador ofegava moribundo, com um grande corte no peito. E o Coração de Ahriman se fora.

Conan cambaleou pra fora da câmara, com a espada na mão e o sangue lhe escorrendo pelo rosto, vindo do capacete. Ele desceu correndo as escadas feito um bêbado, ouvindo um ressoar de aço no pátio abaixo, gritos e então o frenético rufar de cascos de cavalo. Ao se lançar para fora, ele viu os soldados se movendo em círculos, confusos, enquanto as mulheres guinchavam. O portão de trás estava aberto e um soldado jazia sobre sua lança cruzada e com a cabeça rachada. Os cavalos, ainda com suas rédeas e selas, corriam relinchando pelo pátio, e o garanhão negro de Conan estava entre eles.

- Ele está louco! - uivou uma mulher, torcendo as mãos, enquanto corria enlouquecida. - Ele saiu do castelo feito um cão louco, talhando a torto e a direito! Beloso está louco! Onde está o Lorde Valbroso?

- Ele foi por onde? - rugiu Conan.

Todos se voltaram e olharam o estranho, cujo rosto estava manchado de sangue e a espada, desembainhada.

- Pela porta dos fundos! - berrou uma mulher, apontando para o leste, enquanto outra vociferou: – Quem é este velhaco?

- Beloso matou Valbroso! – gritou Conan, saltando e agarrando a crina do garanhão, enquanto os soldados avançavam hesitantes em sua direção.

Uma gritaria selvagem estourou ante a sua informação, mas a reação deles foi exatamente como ele esperava. Ao invés de fecharam os portões para aprisioná-lo, ou perseguirem o assassino fugitivo para vingar seu senhor, eles ficaram ainda mais confusos com suas palavras. Lobos presos apenas por medo a Valbroso, eles não deviam lealdade ao castelo ou uns aos outros.

Espadas começaram a se chocar no pátio, e mulheres gritavam. E, em meio àquilo tudo, ninguém notou Conan, enquanto ele disparava pelo portão e descia estrondosamente a colina. A ampla planície se estendia à sua frente, e além da colina, a rota de caravanas se dividia: uma bifurcação ia para o sul e a outra, para o leste. E, na estrada oriental, ele viu outro montador, inclinado e cavalgando velozmente. A planície oscilava diante dos olhos de Conan, a luz do sol era uma espessa névoa vermelha e ele cambaleou em sua sela, agarrando a crina esvoaçante com a mão. O sangue lhe escorria na cota-de-malha, mas ele ferozmente esporeou o garanhão.

Atrás dele, a fumaça começou a sair do castelo na colina, onde o corpo do conde jazia esquecido e desdenhado, ao lado do de seu prisioneiro. O sol estava se pondo; contra um medonho céu vermelho, duas figuras negras fugiam. O garanhão não estava descansado, mas tampouco estava o cavalo montado por Beloso. Mas a grande fera respondia poderosamente, recorrendo a profundas reservas de vitalidade.

Por que o zíngaro fugia de um perseguidor, Conan não forçou seu cérebro contundido para imaginar. Talvez um pânico irracional dominasse Beloso, nascido da loucura que se escondia naquela jóia esplendorosa. O sol havia se posto; a estrada branca era um pálido vislumbre, através de um fantasmagórico crepúsculo se desvanecendo em sombras púrpuras, bem à sua frente. O garanhão arfava, se esforçando duramente. O território estava mudando nas sombras que se reuniam. Planícies nuas davam lugar a moitas de carvalhos e amieiros. Colinas baixas se erguiam à distância. Estrelas começavam a piscar. O garanhão ofegava e oscilava em sua marcha. Mas, adiante, se erguia uma densa floresta que se estendia até as colinas no horizonte, e entre este e ele próprio, Conan vislumbrou a forma indistinta do fugitivo. Ele apressou o aflito garanhão e viu que estava alcançando sua presa, jarda após jarda. Acima das batidas dos cascos, um estranho grito se ergueu das sombras, mas nem perseguidor nem perseguido prestaram atenção.

Enquanto se moviam sob os galhos que pendiam sobre a estrada, eles ficaram quase lado a lado. Um grito feroz brotou dos lábios de Conan, enquanto sua espada era erguida; o pálido oval de um rosto se virou em sua direção, uma espada lampejou numa mão meio-vista e Beloso ecoou o grito - e então, o exausto garanhão, cambaleando e gemendo, tropeçou nas sombras e caiu de cabeça pra baixo, arremessando seu atordoado montador da sela. A cabeça latejante de Conan se espatifou contra uma pedra, e as estrelas foram apagadas numa noite mais densa.

Quanto tempo Conan ficou sem sentidos, ele nunca soube. Sua primeira sensação, ao recobrar a consciência, foi a de ser arrastado por um braço, sobre um chão áspero e pedregoso, e através de densos matagais. Então, ele foi lançado ao chão sem cerimônias, e talvez o solavanco tenha lhe devolvido os sentidos.

Seu elmo havia sumido, sua cabeça doía terrivelmente, ele sentia náuseas, e havia sangue grosso e coagulado entre suas mechas negras. Mas, com a vitalidade de uma coisa selvagem, a vida e a consciência tomaram conta dele e ele tomou conhecimento de onde estava.

Uma grande lua vermelha brilhava entre as árvores, e assim ele percebeu que era mais de meia-noite. Ele ficara desacordado durante horas, tempo suficiente para se recuperar do terrível golpe que Beloso havia lhe acertado, assim como da queda que lhe deixara inconsciente. Sua mente se sentiu mais clara do que durante a louca cavalgada atrás do fugitivo.

Ele não jazia ao lado da estrada branca, o que percebera com um sobressalto de surpresa, enquanto seus arredores começaram a lhe despertar a percepção. A estrada não estava à vista. Ele estava caído na grama, numa pequena clareira cercada por uma parede negra de talos de árvores e galhos emaranhados. Seu rosto e mãos estavam arranhados e rasgados como se ele tivesse sido arrastado por espinheiros. Erguendo seu corpo, ele olhou ao redor. E então, ele se estremeceu violentamente. Algo estava se agachando sobre ele...

Por um instante, Conan duvidou de sua consciência, pensando que fosse uma invenção do delírio. Certamente, não poderia ser real aquele estranho ser imóvel e cinza, acocorado sobre os próprios quadris e encarando-o com olhos desumanos que não piscavam.

Conan ficou de olhos arregalados, meio esperando que aquilo se dissipasse, como a figura de um sonho, e então um arrepio de recordação se arrastou por sua espinha. Memórias meio esquecidas se agitaram, de histórias terríveis, sussurradas, dos fantasmas que assombravam estas florestas desabitadas, ao pé das colinas que faziam a fronteira entre Zingara e Argos. Vampiros, assim lhes chamavam os homens; comedores de carne humana, criaturas das trevas, filhos da união profana entre uma raça perdida e esquecida, e os demônios do mundo inferior. Em algum lugar daquelas florestas primitivas, estavam as ruínas de uma cidade antiga e maldita, sussurravam os homens; e, entre suas tumbas, deslizavam sombras cinzas e antropomórficas – Conan tremeu fortemente.

Ele continuou encarando a cabeça disforme que se erguia obscuramente sobre ele e, cuidadosamente, estendeu uma das mãos em direção à espada em seu quadril. Com um terrível grito, que o homem imitou involuntariamente, o monstro lançou-se sobre sua garganta.

Conan ergueu o braço direito, e as presas caninas se fecharam neste, forçando os elos da cota-de-malha pra dentro da carne firme. As mãos – disformes, porém semi-humanas – agarraram-lhe o pescoço, mas ele escapou, erguendo e girando o corpo inteiro, enquanto puxava sua adaga com a mão esquerda.

Eles rolaram sobre a grama, golpeando e rasgando. Os músculos, que se contraíam sob aquela cadavérica pele cinza, eram duros como arames de aço, superando a força de um homem. Mas os músculos de Conan eram de ferro, também, e sua malha o salvou das presas rangentes e garras dilacerantes, por tempo suficiente para que ele arremetesse sua adaga novamente, novamente e novamente. A espantosa vitalidade do monstro semi-humano parecia inesgotável, e a pele do rei tremia ao contato com aquela carne fria e pegajosa. Ele pôs toda a sua selvagem repugnância atrás da lâmina que afundava, e repentinamente o monstro se ergueu convulsivamente sob ele, enquanto a ponta encontrava seu medonho coração, e então caiu imóvel.

Conan se levantou, abalado pela náusea. Ele ficou no meio da clareira, vacilante, com a espada numa mão e a adaga na outra. Ele não havia perdido seu instintivo senso de direção, mas ele não sabia em qual direção a estrada se encontrava. Ele não tinha como saber em qual direção o vampiro havia arrastado-o. Conan olhou os negros e silenciosos bosques manchados pela lua, que o cercavam, e sentiu um suor frio brotar na pele. Ele estava sem cavalo e perdido naqueles bosques assombrados, e aquela coisa disforme, de olhos arregalados, a seus pés era uma silenciosa evidência dos horrores que se escondiam na floresta. Ele quase prendeu a respiração em sua intensidade dolorosa, aguçando os ouvidos para escutar um possível quebrar de gravetos ou farfalhar de capim.

Ao chegar um som, ele se sobressaltou violentamente. Subitamente, o ar da noite foi quebrado pelo relincho de um cavalo apavorado. Seu cavalo! Havia panteras na floresta, ou talvez os vampiros devorassem tanto animais quanto homens.

Ele atravessou selvagemente o matagal em direção ao som, assobiando agudamente enquanto corria, com seu medo afogado em fúria berserk. Se seu cavalo estivesse morto, ele perderia sua última chance de seguir Beloso e recuperar a jóia. Mais uma vez, o garanhão relinchou de medo e fúria, em algum lugar próximo. Havia um som de patadas, e de algo que batia pesadamente e recuava.

Conan entrou impetuosamente na larga estrada branca, sem dar aviso, e viu o garanhão saltando e dando coices à luz da lua, com suas orelhas viradas para trás; seus olhos e dentes brilhando perigosamente. Ele batia suas patas numa sombra furtiva que mergulhava e pulava sobre ele. E então, outras sombras se moveram sobre Conan: sombras cinzas e furtivas, que o cercavam por todos os lados. Um hediondo cheiro de cripta enchia o ar da noite.

Praguejando, o rei golpeou a torto e a direito com sua larga espada, apunhalando e rasgando com sua adaga. Presas gotejantes faiscavam ao luar, mãos repugnantes o agarravam, mas ele abria caminho até o cavalo e agarrou a rédea, pulando sobre a sela. Sua espada subia e descia, traçando um gélido arco ao luar e borrifando sangue, enquanto rachava cabeças disformes e partia corpos desajeitados. O garanhão empinou, mordendo e dando patadas. Eles irromperam na estrada e desceram-na estrondosamente. Em ambos os lados, passaram rapidamente detestáveis sombras cinzas. Então, estas ficaram para trás e Conan, galgando uma elevação arborizada, viu uma vastidão de encostas nuas que se erguiam e se estendiam à sua frente.


13) “Um Fantasma do Passado”

LOGO APÓS O NASCER DO SOL, Conan cruzou a fronteira de Argos. Até então, não tinha visto o menor rastro do capitão Beloso. Ou o capitão havia conseguido escapar enquanto o rei jazia inconsciente, ou havia sido pego pelos sombrios canibais da floresta zíngara. Mas Conan não tinha visto sinais que indicassem a última possibilidade. O fato dos monstros não terem atacado até os últimos instantes era, para o cimério, um indício de que os estranhos seres haviam se empenhado futilmente em perseguir o capitão.

E, se o homem vivia, Conan tinha certeza de que ele estava bem à sua frente, cavalgando por aquela estrada. A menos que ele pretendesse ir para Argos, jamais teria tomado a estrada leste em primeiro lugar. Os soldados da fronteira não interrogavam o cimério. Um solitário mercenário errante jamais precisava de algum passaporte ou salvo-conduto, sobretudo se sua cota-de-malha sem enfeite não ostentasse o emblema de nenhum barão. Ele cavalgou pelas colinas cobertas de capim, onde sussurravam os riachos e os carvalhos faziam sombra a uma verde tapeçaria de capim. Era antiqüíssima aquela estrada, que levava de Poitain até o mar.

O reino de Argos estava em paz. Toscas carroças puxadas por bois circulavam na estrada, e homens de marrons e musculosos braços nus trabalhavam nos pomares e nos campos que sorriam sob os galhos das árvores que ladeavam o caminho. Homens idosos em residências diante de estalagens, sob longos galhos de carvalho, gritavam saudações ao transeunte.

Dos homens que trabalhavam nos campos; dos velhos tagarelas das estalagens, nas quais ele abrandava a sede com grandes odres de pele contendo cerveja espumante, e dos mercadores de olhos agudos e roupas de seda que ele encontrou na estrada, Conan buscava por notícias sobre Beloso.

Os relatos eram contraditórios, mas, finalmente, Conan verificou que um zíngaro magro e forte, com os perigosos olhos e bigodes negros do povo do oeste, estava em algum lugar do caminho diante dele e, aparentemente, indo para Messantia. Era um destino lógico; todos os portos de Argos eram cosmopolitas, em forte contraste com as províncias internas, e Messantia era o mais poliglota. Embarcações de todos os países ancoravam naquele porto, e fugitivos de muitas nações se juntavam lá. Em Messantia as leis eram aplicadas com tolerância. A cidade prosperava graças ao comércio marítimo, e seus cidadãos preferiam fazer vistas grossas em seus assuntos com homens do mar. Até Messantia, chegava não só o tráfico legal, mas também os contrabandistas e até os piratas, que realizavam um papel importante no comércio portuário. Tudo isso Conan sabia, porque no passado, quando havia sido pirata nas Ilhas Barachas, não entrara muitas vezes, sempre à noite, no porto de Messantia, para descarregar as mais diversas mercadorias? A maior parte dos piratas das Ilhas Barachas – um pequeno arquipélago, próximo à costa sudoeste de Zingara – eram marinheiros de Argos, e enquanto se dedicassem a perseguir navios de outros países, as autoridades de Argos não se mostrariam intolerantes demais.

Mas Conan não havia limitado suas atividades às de baracho. Havia navegado também com os bucaneiros zíngaros, e até com aqueles selvagens corsários negros, que navegavam, desde o sul distante, para assolar as costas setentrionais, e isto o colocava à margem das leis de todos os países. Se o reconhecessem em qualquer porto de Argos, isto poderia lhe custar a cabeça. Mas o cimério continuou cavalgando sem vacilar para Messantia, parando dia ou noite, apenas para dar descanso ao seu cavalo, e ele próprio dormir um pouco.

Entrou facilmente na cidade, misturando-se com a multidão que entrava e saía constantemente daquele importante centro comercial. Não havia muralhas ao redor de Messantia; o mar e seus barcos protegiam aquela grande cidade comercial do sul.

Era noite quando Conan cavalgou pelas ruas que levavam ao porto. Ao final destas ruas, ele pôde ver os desembarcadouros, os mastros e as velas das embarcações, e sentiu de novo, após tantos anos, o cheiro salino do mar; pôde ouvir o ruído dos aparelhos e do madeiramento dos cascos. Mais uma vez, o impulso do aventureiro tomou conta do seu coração.

No entanto, não se dirigiu para o cais. Desviou-se para um lado e subiu, com seu cavalo, por uma inclinação, com amplas pedras desgastadas, semelhantes a escadas, até chegar a uma rua espaçosa, onde alvas mansões ornamentadas dominavam, do alto, todo o cais e o porto. Ali viviam os homens que haviam enriquecido com o duro comércio marítimo: uns poucos e velhos capitães do mar que foram afortunados o bastante para encontrar algum tesouro num local remoto, e os mercadores que jamais haviam colocado um pé na cobertura de um navio e que nunca haviam escutado o rugido das tempestades ou da luta marítima.

Conan virou seu cavalo em direção a uma porta de ferro dourado, e cavalgou dentro de um pátio onde havia uma fonte sussurrante, e as pombas revoavam entre colunas e bancos de mármore. Um pajem, vestido com recortada jaqueta e calças de seda, avançou com ar interrogativo. Os mercadores de Messantia lidavam com os personagens mais estranhos e rudes, mas quase todos estavam relacionados com o mar. Era estranho que um soldado mercenário entrasse tão livremente, a cavalo, no pátio de um senhor de comércio.

- Aqui mora Publio, o mercador? - disse Conan, afirmando mais do que perguntando; e algo, em seu timbre de voz, fez o pajem tirar o chapéu emplumado, enquanto se inclinava e respondia:

- Sim, meu capitão.

O cimério desmontou, e o pajem chamou outro criado, que veio correndo para se encarregar das rédeas do corcel.

- Seu amo está aí dentro? - perguntou Conan, enquanto tirava as luvas e sacudia, de seu manto e sua malha, a poeira da estrada.

- Sim, meu capitão. A quem devo anunciar?

- Eu mesmo me anunciarei. - grunhiu Conan - Conheço muito bem o caminho. Espere aqui.

Obedecendo aquelas ordens imperativas, o rapaz ficou encarando Conan, enquanto este subia os poucos degraus de mármore da entrada, e o pajem se perguntou que relação poderia haver entre seu amo, um comerciante rico, com aquele guerreiro gigante que tinha o aspecto de um bárbaro do norte.

Criados, ocupados em suas tarefas, pararam e ficaram boquiabertos quando Conan cruzou uma larga varanda acima do pátio, e entrou num largo corredor pelo qual entrava a brisa do mar. Na metade deste, ele ouviu uma pena de escrever rabiscando e adentrou uma sala ampla, de cujos muitos e grandes batentes se avistava o porto.

Publio estava sentado diante de uma escrivaninha de madeira de teca, escrevendo num luxuoso pergaminho com uma dourada pluma de ave. Era um homem baixo, de cabeça grande e vivazes olhos escuros. Sua túnica azul era da mais fina seda bordada a ouro. Do pescoço do mercador, pendia uma pesada corrente de ouro maciço.

Quando o cimério entrou na sala, o comerciante levantou a cabeça com atitude aborrecida. Ele se congelou no meio do gesto. Sua boca ficou aberta; ele fitava um fantasma do passado. A descrença e o medo brilhavam em seus olhos grandes.

- Bem – disse Conan –, você não tem nenhuma palavra de saudação, Publio?

Publio umedeceu os lábios.

- Conan! – ele sussurrou, incrédulo – Por Mitra! Conan! Amra!

- Quem mais? – o cimério abriu o manto e lançou as luvas sobre a escrivaninha – O que está havendo, homem? – ele exclamou irritado – Não é capaz de me oferecer ao menos uma caneca de vinho? Tenho a garganta seca pela poeira das estradas.

- Sim, vinho! – ecoou Publio mecanicamente. Instintivamente sua mão se estendeu em busca de um gongo, e em seguida ele recuou, como que de um carvão em brasa, e estremeceu.

Enquanto Conan o observava com uma expressão sombria e divertida, o mercador se levantou e se dirigiu apressadamente até a porta e a fechou, mas não sem antes confirmar, de ambos os lados do corredor, que não havia nenhum escravo por perto. Logo, ele retornou se dispôs a servir bebida numa fina taça de vinho, de um garrafão. Conan o arrebatou com impaciência e, agarrando-o com as duas mãos, bebeu longamente e com óbvia avidez.

- Sim, não há dúvida alguma de que você é Conan. – sussurrou Publio – Mas você está louco?

- Por Crom, Publio – disse o cimério, baixando o garrafão, mas conservando-o entre as mãos –, vejo que você mora num alojamento bem melhor que o que tinha antes. Ninguém melhor que um mercador argoseano para se fazer rico. Antes, você só tinha uma cabana de porto, a qual fedia a peixe podre e vinho barato.

- Aqueles velhos dias já passaram. – disse Publio, puxando seu roupão, com um pequeno e involuntário tremor – Esqueci daquela época, como quem tira um manto usado.

- De qualquer forma – disse Conan –, não pode me dispensar tão facilmente quanto um manto velho. Não vou lhe pedir muito. Estou certo de que você não vai negar. Fizemos muitas transações comerciais juntos em tempos passados. Acha que não sei perfeitamente que esta mansão está feita, em grande parte, graças a meu suor e meu sangue? Quantos carregamentos de minhas galeras passaram por seu estabelecimento?

- Todos os mercadores de Messantia fizeram negócios com os piratas em um momento ou outro. – murmurou Publio, nervosamente.

- Mas não com os corsários negros.

- Por Mitra, cale a boca! – exclamou Publio, enquanto a testa se enchia de suor. Seus dedos sacudiram a borda dourada de seu robe.

- Eu só queria lhe lembrar. – respondeu Conan – Não precisa ficar tão nervoso. Em outros tempos, quando você lutava para ganhar a vida naquela pequena barraca do cais, você corria muitos perigos, e cooperava com todos os bucaneiros, contrabandistas e piratas daqui até as Ilhas Barachas. Parece que a prosperidade lhe amoleceu.

- Sou respeitável...

- Você quer dizer que é asquerosamente rico. – rosnou Conan – Como? Acaso teve algo a ver com os excelentes negócios com marfim, plumas de avestruz, cobre, peles de animais, enfeites de ouro, pérolas, ornamentos forjados a ouro e outras coisas vindas das costas de Kush? E como você os conseguia tão barato, enquanto os outros comerciantes pegavam seu peso em prata aos stígios? Vou lhe dizer, caso tenha esquecido: você os comprava de mim, por um preço bem abaixo do valor, e eu os conseguia das tribos da Costa Negra e dos navios dos stígios; eu e os corsários negros.

- Em nome de Mitra, chega! – implorou Publio – Não esqueci. Mas o que você faz aqui? Sou o único homem de Argos a saber que o rei da Aquilônia foi, em outras épocas, Conan o bucaneiro. Mas havia chegado até o sul o rumor da conquista da Aquilônia e da morte de seu rei.

- Meus inimigos me mataram umas cem vezes com seus rumores. – grunhiu Conan – Mas aqui estou, sentado e bebendo vinho de Kyros. – e ele uniu a ação à palavra.

Largando o garrafão, que estava meio vazio, ele disse:

- Só venho lhe pedir um pequeno favor, Publio. Sei que você está informado de tudo o que ocorre em Messantia. Eu só quero saber se um zíngaro chamado Beloso, que pode ter mudado de nome, está aqui. É um homem alto, magro, de pele escura como todos de sua raça, e é provável que ele tente vender uma jóia muito rara.

Publio negou com a cabeça:

- Não ouvi falar desse homem. Mas são milhares os que vêm e vão de Messantia constantemente. Se ele está aqui, meus agentes irão localizá-lo.

- Ótimo. Mande procurarem-no. Enquanto isso, gostaria que cuidassem do meu cavalo e me servissem comida aqui neste quarto.

Publio assentiu sem muito entusiasmo. Conan esvaziou o garrafão de vinho, o lançou sem muitos cuidados num canto, e se dirigiu a uma janela próxima, onde aspirou profunda e involuntariamente o ar salgado do mar. Deu uma olhada nas ruelas sinuosas do distrito portuário. Ele varreu com um olhar avaliativo os barcos amarrados ao porto, levantou a vista e observou, além da baía, a linha azul onde o mar se unia ao céu. E sua memória o transportou muito além daquele horizonte, até os mares dourados do sul, onde, sob o sol de raios flamejantes, não havia leis e se vivia uma vida turbulenta. Um cheiro de especiarias, que chegou até ele, trouxe-lhe imagens claras das costas onde os manguezais cresciam em abundância e os tambores ressoavam. Lembrou também dos combates nos navios, e de seus pisos, encharcados de sangue; a fumaça, as chamas e os gritos de matança... Absorto em seus pensamentos, Conan mal percebeu que Publio deixava a sala.

Puxando a túnica para andar melhor, o mercador avançou rapidamente pelos corredores, até chegar numa certa câmara, onde um homem alto e esguio, com uma grande cicatriz na têmpora, escrevia um pergaminho. Havia algo naquele homem que não se encaixava com a tarefa de escrivão à qual estava dedicado. Abruptamente, Publio falou com ele:

- Conan voltou!

- Conan? – o homem delgado se ergueu, enquanto a pena lhe caía da mão – O corsário?

- Sim.

O homem magro empalideceu.

- Ele é louco? – disse o escrivão, enquanto empalidecia – Se o descobrirem aqui, estamos perdidos! Irão enforcar a quem dá abrigo ou comercia com um corsário tão rapidamente quanto ao próprio corsário! O que aconteceria se o governador soubesse de nossas ligações com ele no passado?

- Ele não saberá. – respondeu Publio sombriamente – Envie seus homens pelos mercados e casebres do cais, para averiguarem se um zíngaro, um tal de Beloso, está em Messantia. Conan disse que ele tem uma jóia e quer vendê-la. Os comerciantes de jóias já devem saber dele. E outra coisa: reúna uma dúzia de homens desesperados, que sejam confiáveis para se desfazerem de um homem e manterem a boca bem fechada. Está entendendo?

- Perfeitamente. – o outro balançou a cabeça devagar e sombriamente.

- Não enganei, menti, roubei e lutei tão duramente durante tanto tempo até chegar onde estou, para que venha um fantasma do passado e coloque tudo a perder. – murmurou Publio, e sua expressão ameaçadora naquele momento deixaria perplexos os ricos nobres e damas, que lhe compravam as sedas e pérolas em seus muitos estabelecimentos. Mas pouco depois, quando voltou para perto de Conan com uma bandeja de frutas e carnes na mão, ele mostrava um semblante plácido à indesejada visita.

O cimério ainda estava em frente à enorme janela, olhando para o porto, onde se apinhavam as velas multicoloridas dos galeões e galeras.

- Se não me falha a visão, ali é uma galera stígia. – Ele observou, apontando uma embarcação longa, estreita, baixa e negra, que estava afastada das demais e ancorada a certa distância da baixa e larga praia arenosa, a qual se curvava até o distante promontório – Há paz, então, entre Stygia e Argos?

- A mesma paz que havia antes. – disse Publio, colocando a travessa sobre a mesa, com um suspiro de alívio, pois a primeira estava carregada; ele conhecia seu convidado de longa data – Os portos stígios estão temporariamente abertos aos nossos barcos e vice-versa. Mas eu não gostaria que um de meus barcos encontrasse uma dessas malditas galeras em alto-mar. Essa, da qual você fala, chegou ontem à noite, quase furtivamente. Desconheço as intenções de seus donos; até agora não comprou nem vendeu nada. Não confio nesses demônios de pele escura. A traição nasceu naquela terra sombria.

- Eu fiz com que lamentassem. – disse Conan, descuidadamente, virando as costas para a janela – Entrei com meu navio, à frente de meus piratas negros, até o próprio porto de Khemi, com seus castelos banhados pelo mar e seus muros negros. Era noite e incendiei as embarcações ali ancoradas. E por falar em traições, meu anfitrião, gostaria que você provasse estas carnes e bebesse um pouco deste vinho, só pra me mostrar que seu coração está no lugar certo.

Publio condescendeu ao pedido, com tal prontidão que todas as suspeitas de Conan se acalmaram. Sem pensar duas vezes, o cimério sentou-se e devorou o suficiente para três homens.

Enquanto ele comia, homens vasculhavam pelos mercados e lojas do porto, procurando um zíngaro que tivesse uma jóia, ou que procurasse por um barco que o levasse para portos estrangeiros. E, numa cabana iluminada apenas por uma lanterna de latão que pendia das vigas esfumaçadas, um homem alto e magro, com uma cicatriz na têmpora e os cotovelos apoiados numa mesa manchada de vinho, conversava com dez homens de parcos recursos, cujas feições sinistras e roupas esfarrapadas proclamavam seus ofícios.

E, na estrada branca, que do oeste, levava a Messantia, bem no momento em que surgiam as primeiras estrelas, um grupo de quatro cavaleiros altos e esguios, envoltos em capas negras e cobertos com capuzes, esporeavam impiedosamente suas montarias, e aquelas montarias eram tão magras quanto eles próprios, e estavam cansadas e suadas como se tivessem chegado de uma longa viagem.


14) A Mão Negra de Set

CONAN ACORDOU DE um sono profundo, tão rápida e instantaneamente quanto um gato. E, como um felino, ficou de pé, com a espada desembainhada, antes que o homem que lhe tocara pudesse recuar.

- O que houve, Publio? – indagou Conan, reconhecendo seu anfitrião. O pavio da lâmpada de ouro queimava tenuemente, espalhando uma luz suave sobre os grossos tapetes e ricos cobertores, sobre a cama onde ele havia descansado.

Publio, se recuperando do sobressalto causado pela ação repentina de seu hóspede desperto, respondeu:

- O zíngaro foi localizado. Chegou ontem, ao amanhecer. Somente poucas horas atrás, tentou vender, a um mercador shemita, uma gema estranha e muito grande. O mercador não quis saber nada do assunto, e aqueles que o viram dizem que o shemita ficou pálido sob a barba negra, ao ver a jóia, e que logo fechou seu estabelecimento e foi embora como se fugisse de uma coisa maldita.

- Deve ser Beloso. – murmurou Conan, sentindo as veias em suas têmporas pulsarem em impaciente ansiedade – Onde ele está agora?

- Dorme na casa de Servio.

- Conheço aquela espelunca de longa data. – grunhiu Conan – É melhor eu me apressar, antes que algum desses ladrões do porto o degole e leve a jóia.

O cimério recolheu seu manto, lançou-o sobre os ombros e logo pôs na cabeça um elmo dado por Publio.

- Deixe meu corcel selado e pronto no pátio. – ele disse – Devo voltar às pressas. Não esquecerei sua ajuda desta noite, Publio.

Pouco momentos depois, o mercador, de pé ante uma das portas de sua casa, viu a figura alta do rei se distanciar, por uma rua sombria.

- Adeus, corsário. – sussurrou o mercador – Deve ser uma jóia notável, pra ser procurada por um homem que acabou de perder um reino. Eu gostaria de ter dito a meus velhacos para protegê-lo antes de fazerem seu serviço. Mas algo deve ter dado errado. Que Argos esqueça Amra, e meus negócios com ele se percam na poeira do passado. No beco atrás da casa de Servio... é lá que Conan deixará de ser um perigo para mim.

A casa de Servio, um covil sujo e de péssima fama, estava situada perto do cais. Era um desarrumado edifício de pedra, com grossas vigas de navio, que despontava numa ruela longa e estreita. Conan avançava pelo beco e, quando se aproximou, teve uma sensação desconfortável de que estava sendo espionado. Examinou atentamente por entre as sombras das construções esquálidas, mas não conseguiu ver nada, embora, por um momento, tenha ouvido o fraco som do atrito entre de pano ou couro contra pele. Mas não era algo estranho. Ladrões e mendigos perambulavam por estes becos á noite, e eles provavelmente não o atacariam, após olharem seu tamanho e armadura. Mas, de repente, uma porta se abriu na parede à sua frente, e ele se escondeu entre as sombras de um saguão. Uma figura emergiu da porta aberta, e se moveu, ao longo do beco, de forma não-furtiva, mas com um silêncio natural, como o de um animal da selva. A luz das estrelas no beco era suficiente para delinear obscuramente o perfil do homem, quando este passou pela portada onde Conan se escondia. O forasteiro era um stígio. Não havia como confundir aquele rosto aquilino e aquela cabeça raspada, mesmo à luz das estrelas, e a capa sobre os ombros largos. Ele saía do beco em direção à praia e, pelo tênue lampejo de luz suave que se filtrava por entre suas roupas, Conan teve a impressão de que ele levava um farol escondido, enquanto ia embora.

Mas o cimério se esqueceu do estranho, ao perceber que a porta pela qual este entrara continuava aberta. Conan pretendia adentrar a entrada principal e obrigar Servio a mostrá-lo o quarto onde o zíngaro dormia. Mas se ele podia entrar na casa sem chamar a atenção, melhor ainda.

Poucas passadas largas o levaram à porta, e ele abafou um grunhido involuntário ao perceber – seus dedos haviam se exercitado bastante por entre os ladrões em Zamora, há muito tempo atrás – que a fechadura havia sido forçada. Estava retorcida e com os rebites desencaixados, o que indicava que havia sido empregada uma força bastante contundente. Como era possível usar de tal violência sem acordar a vizinhança? Além disso, era evidente que o estrago havia sido feito naquela mesma noite. Uma fechadura quebrada, se descoberta, seria consertada na casa de Servio, nesta vizinhança de ladrões e degoladores.

Conan entrou furtivamente, de punhal na mão, tentando imaginar onde podia encontrar os aposentos do zíngaro. Tateando na escuridão total, ele subitamente parou. Sentiu morte naquele quarto, como os animais selvagens sentem – não era uma ameaça dirigida a ele, era a presença de um cadáver, algo que acabava de morrer. Na escuridão, seu pé esbarrou em algo pesado e recuou. Com uma súbita premonição, ele tateou pela parede, até encontrar numa prateleira uma lâmpada de latão, com pederneira, aço e pavio a seu lado. Um instante depois, uma luz oscilante se acendeu e lhe permitiu dar uma olhada ao seu redor.

Um estrado de dormir, construído contra a áspera parede de pedra, uma mesa vazia e um banco completavam o mobiliário do pequeno quarto. Uma porta interna estava fechada com trava. E, sobre o chão sujo, jazia Beloso. Ele estava de barriga para cima e com a cabeça para trás, de modo que seus olhos vítreos pareciam fitar as vigas, cheias de fuligem, do teto com teias de aranha. Seus lábios estavam contraídos num sorriso congelado de agonia. Sua espada estava próxima a ele, ainda embainhada. A camisa estava rasgada e, no peito marrom e musculoso, se via a marca negra de uma mão, cujas marcas de dedos se distinguiam com perfeição.

Conan encarava em silêncio, sentindo um arrepio nos cabelos curtos da parte de trás do pescoço.

- Por Crom! – ele sussurrou – A mão negra de Set!

Ele vira aquela marca há muito tempo; o sinal da morte dos negros sacerdotes de Set, o culto sombrio que governava a obscura Stygia. E, subitamente, se lembrou do curioso brilho que surgia das roupas do misterioso stígio que saíra daquela casa.

- O Coração, por Crom! – ele sussurrou – Ele o carregava sob o manto. Ele o roubou; destroçou aquela porta com sua magia e matou Beloso. Era um sacerdote de Set!

Uma rápida investigação confirmou pelo menos parte de suas suspeitas. A jóia não estava no corpo do zíngaro. Em Conan, surgiu um sentimento desconfortável de que isto não acontecera por acaso, ou sem propósito: uma convicção de que a misteriosa galera stígia havia chegado ao porto de Messantia, com uma missão determinada. Como os sacerdotes de Set sabiam que o Coração havia chegado ao sul? Mas o pensamento não era mais fantástico que a magia capaz de matar um homem armado, através do toque de uma mão nua e aberta.

Passos furtivos, do lado de fora da porta, fizeram Conan se virar como um felino. Num só movimento, ele apagou rapidamente a lâmpada e desembainhou a espada. Seus ouvidos lhe diziam que havia homens lá fora, na escuridão, se aproximando da porta. Quando seus olhos se acostumaram à súbita escuridão, ele só conseguiu distinguir umas silhuetas obscuras que cercavam a entrada. Ele não sabia quem eram, mas, como sempre, ele tomou a iniciativa – saltando inesperadamente para a frente, desde a portada, sem esperar o ataque.

Seu movimento súbito pegou de surpresa aqueles que se esgueiravam. Ele sentiu e ouviu homens próximos, ao seu redor, viu obscuramente um rosto mascarado à luz das estrelas diante dele, e logo descarregou um golpe de espada com força mortífera. Antes que seus atacantes, de pensamento e ações mais lentas, pudessem reagir, o bárbaro fugiu pelas sombras da ruela.

Em plena corrida, o cimério ouviu à sua frente, um rumor de remos chapinhando no mar, esqueceu os homens atrás dele. Um bote se afastava pela baía! Apertando os dentes, ele aumentou a velocidade, mas, antes que pudesse alcançar a praia, ele ouviu o raspar e o ranger de cordas.

Nuvens espessas, vindas do mar, obscureceram as estrelas. Em total escuridão, Conan chegou à praia, aguçando os olhos sobre a negra água inquieta. Algo se movia: uma silhueta longa, baixa e negra, que se afastava lentamente, e depois ganhava velocidade. Ouviu o crepitar ritmado de remos compridos. Ele apertou os dentes, dominado por uma fúria impotente. Era a galera stígia, e ela corria para o mar aberto, levando a jóia que significava para ele o trono da Aquilônia.

Praguejando selvagemente, ele correu em direção às ondas que lambiam as areias, e agarrou a longa cota-de-malha para arrancá-la e mergulhar na água, a fim de nada atrás do navio que fugia. Mas o bater de um calcanhar na areia fez com que desse a volta. Ele havia esquecido seus perseguidores.

Figuras escuras o cercaram, com um som de pés sobre a areia. O primeiro caiu sob a espada violenta do cimério, mas os outros não hesitaram. Lâminas sibilavam ao seu redor e resvalavam em sua cota-de-malha na escuridão. Sangue e entranhas se derramavam sobre sua mão, e alguém gritou, enquanto ele dilacerava de forma mortal num golpe ascendente. Uma voz contida dava ordens para o ataque, e aquela voz soava vagamente familiar. Conan pulou, através das formas que agarravam e cortavam, em direção à voz. Uma débil claridade se filtrou através das nuvens, e isso lhe permitiu ver um homem alto e esguio, com uma grande cicatriz branca na têmpora. A espada de Conan arrebentou-lhe o crânio, como a um melão maduro.

Então, um machado, brandido às cegas na escuridão, golpeou o capacete do rei, enchendo-lhe os olhos com faíscas flamejantes. Ele cambaleou e atacou, sentiu sua espada afundar em alguém e ouviu um guincho de agonia. Então, ele tropeçou num cadáver, e então um porrete lhe arrancou o elmo entalhado da cabeça. No instante seguinte, o porrete lhe bateu em cheio no crânio desprotegido.

O rei da Aquilônia caiu desmaiado sobre a areia molhada. Acima dele, figuras lupinas ofegavam no escuro.

- Cortem sua cabeça! – murmurou um.

- Deixe-o aí deitado. – grunhiu outro – Ajude-me a atar meus ferimentos, antes que eu sangre até morrer. O mar irá arrastá-lo até a baía quando a maré subir. Veja; ele caiu na beirada a água. Seu crânio está partido; nenhum homem é capaz de viver após tais golpes.

- Me ajude a despi-lo. – insistiu um outro – Esta armadura vale algumas peças de prata. Vamos depressa. Tibério morreu, e ouço marujos cantando à medida que cambaleiam ao longo da praia. Vamos de uma vez.

Despojaram rapidamente o cimério de suas roupas, e logo se ouviram passos que se afastavam na noite. O canto levemente embriagado dos marinheiros se ouvia cada vez mais perto.

Em seu quarto, Publio, que caminhava nervosamente, de um lado a outro, diante de uma janela, da qual se avistava a baía nas sombras, virou-se de repente, com os nervos tensos. Sabia perfeitamente que a porta da moradia estava trancada por dentro, mas agora ela estava aberta, e quatro homens avançavam em sua direção. Ao vê-los, Publio sentiu um calafrio na pele. Ele já tinha visto gente estranha em sua vida, mas ninguém que pudesse comparar-se a eles. Eram homens altos e magros, que vestiam mantos negros, e seus rostos eram ovais palidamente amarelos sob as sombras de seus capuzes. Ele não era capaz de lhes perceber os traços do rosto, e estava irracionalmente feliz por não poder. Cada um levava um longo e estranhamente matizado cajado na mão.

- Quem são vocês? – ele indagou, e sua voz soou frágil e surda – O que fazem aqui?

- Onde está Conan, que foi rei da Aquilônia? – perguntou o mais alto, num tom tão friamente monótono que fez Publio estremecer. Era como o tom seco do sino de um templo khitaiano.

- Não sei do que estão falando. – gaguejou o mercador, com seu habitual equilíbrio sacudido diante do aspecto sobrenatural de seus visitantes – Não conheço tal homem.

- Ele esteve aqui. – disse o outro, sem mudança no tom de voz – Seu cavalo está no pátio. Diga-nos onde ele está, se não quiser sofrer nenhum mal.

- Gebal! – gritou Publio, agitado e recuando até encostar-se à parede – Gebal!

Os quatro khitaianos observaram o homem, sem emoção e sem mudarem de expressão.

- Se chamar o seu escravo, ele morrerá. – disse um deles, o que só serviu para deixar Publio ainda mais aterrorizado.

- Gebal! Onde está você, maldito? Ladrões estão matando seu amo!

No corredor externo, ressoaram passos rápidos, e Gebal invadiu a sala. Era um shemita de estatura mediana, com musculatura poderosa e encaracolada barba negro-azulada, o qual empunhava uma curta espada afiada.

Ele arregalou os olhos em estúpido espanto, diante dos quatro intrusos, incapaz de entender sua presença; ele se lembrava vagamente de ter adormecido de forma inexplicável na escada, a qual vigiava, e pela qual eles deviam ter subido. Jamais havia dormido em serviço antes. Mas seu amo continuava gritando, com um tom de histeria na voz, e o shemita então se lançou como um touro sobre os desconhecidos, com o braço musculoso no alto, para dar o golpe estripador. Mas o golpe jamais foi dado. Um braço, coberto por uma manga negra, estendeu o longo cajado. A ponta do bastão não fez mais do que roçar levemente o peito musculoso do shemita. Mas o impacto foi tão aterrador quanto o ataque de uma cobra.

Gebal parou de repente em seu avanço, como se tivesse encontrado uma barreira sólida. Sua cabeça de touro caiu sobre o peito, a espada caiu de seus dedos, e logo ele se dissolveu lentamente ao chão. Parecia que, de repente, todos os ossos de seu corpo haviam adquirido uma consistência gelatinosa. Publio ficou enojado.

- Não grite de novo. – avisou o khitaiano mais alto – Seus servos estão dormindo profundamente, mas, se acordá-los, eles morrerão, e você também. Onde está Conan?

- Foi à casa de Servio, perto do cais, procurar um zíngaro chamado Beloso. – respondeu Publio, sem oferecer nenhuma resistência. O mercador não era nenhum covarde, mas aqueles visitantes misteriosos pareciam ter transformado em água o tutano de seus ossos. Ele estremeceu convulsivamente, ao ouvir um súbito ruído de passos que se aproximavam rapidamente pela escada externa, altos naquele silêncio sinistro.

- Outro serviçal? – perguntou o khitaiano.

Publio negou mudamente com a cabeça, como se sua língua estivesse presa ao céu da boca. Ele não conseguia falar. Um dos khitaianos tirou o cobertor de um leito e o lançou sobre o cadáver. Logo eles se esconderam atrás de umas cortinas. Antes de desaparecer, o mais alto disse:

- Fale com o homem que está chegando e o dispense logo. Não faça nenhum sinal que o faça ver que não está sozinho neste cômodo. Se nos trair, nem você nem ele viverão para chegar até a porta. Finja que está só.

E, levantando sugestivamente o cajado, o homem amarelo desapareceu atrás da cortina.

Publio se estremeceu, e dominou como pôde sua intensa vontade de vomitar. Talvez tenha sido apenas um efeito da luz, mas o mercador acreditou ver os bastões se moverem em uníssono, como se tivessem vida própria. Fazendo um esforço intrépido, Publio tentou recuperar o ar sereno diante do homem que estava entrando na câmara.

- Fizemos o que nos ordenaste, meu senhor. – exclamou este homem – O bárbaro jaz morto na praia.

Publio sentiu um movimento nas cortinas atrás de si. O outro prosseguiu, sem perceber nada.

- Tibério, seu secretário, está morto. O bárbaro o matou, assim como a quatro de meus companheiros. O bárbaro não levava nada de valor, exceto algumas moedas de prata. Tem mais alguma ordem?

- Nada mais. – arfou Publio, pálido até os lábios – Pode ir.

O outro se inclinou em reverência e saiu pela porta, com uma vaga sensação de que Publio estava com estômago fraco e poucas palavras.

Os quatro khitaianos saíram então de seu esconderijo, e o mais alto deles perguntou:

- De quem este homem falava?

- De um vagabundo estrangeiro que havia me causado um grave prejuízo.

- Está mentindo... – disse calmamente o khitaiano – Ele estava falando do rei da Aquilônia. Eu o leio na expressão de seu rosto. Sente-se nesse divã, não se mova e fique calado. Ficarei com você, enquanto meus companheiros irão buscar o corpo.

Publio se sentou e tremeu de terror com a silenciosa e inescrutável figura que o observava, até que os três khitaianos regressaram à câmara, com as notícias de que o corpo de Conan não jazia na areia. Publio não sabia se ficava contente ou com remorso.

- Encontramos o lugar onde aconteceu a luta. – eles disseram – Havia sangue na areia, mas o rei desapareceu.

O quarto khitaiano desenhou símbolos imaginários no tapete, os quais cintilavam como escamas à luz do candeeiro.

- Não leram nada na areia? – ele perguntou.

- Sim. – ele respondeu – O rei está vivo e se dirigiu para o sul em um barco.

O khitaiano alto levantou a cabeça para olhar Publio, de um jeito que fez o mercador suar profusamente.

- O que querem de mim...? – ele gaguejou.

- Uma embarcação. – respondeu o khitaiano – Um barco bem aparelhado para uma boa viagem.

- Até onde viajarão? – gaguejou Publio, sem sequer pensar em recusar.

- Até o fim do mundo, talvez. – respondeu o khitaiano – Ou até os mares de metal derretido do inferno, além do sol nascente.


15) A Volta do Corsário

A PRIMEIRA SENSAÇÃO DE CONAN, de que sua consciência retornava, era a de movimento; sob ele não havia solidez, mas um incessante subir e descer. Então, ele ouviu o vento soprando pelas cordas e mastros, e percebeu que estava a bordo de um navio, antes mesmo que sua visão nublada clareasse. Ele ouviu um murmúrio de vozes, e então, uma pancada de água o alagou, sacudindo-o intensamente em total animação. Ele se levantou com uma praga inflamada, firmou suas pernas e olhou ao redor, com uma explosão de rudes gargalhadas em seus ouvidos, e o mau cheiro de corpos sujos em suas narinas.

Ele estava de pé, na parte de trás de uma longa galé que corria diante do vento que batia do norte, e a vela listrada inflava contra as escotas esticadas. O sol estava nascendo, num brilho deslumbrante de dourado, azul e verde. À esquerda do litoral, havia uma fraca sombra púrpura. À direita, se estendia o mar aberto. Tudo isso Conan viu num relance que, da mesma forma, incluíra a própria embarcação.

Esta era longa e estreita, um típico navio de comércio das costas meridionais, de popa alta, com cabines em ambas as extremidades. Conan baixou os olhos para o poço aberto, de onde subia aquele cheiro enjoativo e desagradável. Ele o conhecia há muito. Era o cheiro dos corpos dos remadores, acorrentados a seus bancos. Eram todos negros, quarenta homens de cada lado, cada um preso por uma corrente trancada próxima à cintura, com a outra extremidade soldada a um pesado anel, colocado profundamente no sólido vau que corria entre os bancos, da popa à proa. A vida de um escravo a bordo de uma galera argoseana era um inferno imensurável. Muitos deles eram kushitas, mas uns trinta dos negros, que agora descansavam em seus desocupados remos e olhavam com vaga curiosidade para o estrangeiro acima deles, eram das distantes ilhas meridionais, terra natal dos corsários. Conan os reconheceu por suas feições mais retas, cabelos mais lisos e seus membros mais longos e bem proporcionados. E viu, dentre eles, homens que haviam seguido-o há muito tempo.

Mas tudo isso ele viu e reconheceu, num rápido e abrangente olhar enquanto se levantava, antes de voltar sua atenção às figuras acima dele. Cambaleando momentaneamente em suas pernas firmadas, e com os punhos se fechando de raiva, ele olhou para as figuras amontoadas ao seu redor. O marujo que o havia molhado estava sorrindo, com o balde vazio ainda suspenso na mão, e Conan o amaldiçoou venenosamente, estendendo a mão instintivamente para o cabo da espada. Então, ele percebeu que estava desarmado e nu, exceto por suas curtas calças de couro.

- Que banheira piolhenta é esta? – ele rugiu – Como vim parar nesta bordo?

Os marinheiros riram zombeteiramente. Eram argoseanos atarracados e barbados contra um homem só – e um deles, cujas roupas mais suntuosas e ar de comando anunciavam-no como capitão, cruzou os braços e disse tiranicamente:

- Nós lhe encontramos inconsciente na areia. Alguém havia lhe golpeado a cabeça e levado suas roupas. Precisávamos de um homem extra e lhe trouxemos a bordo.

- Que navio é este? – exigiu Conan.

- O Aventureiro, de Messantia, com um carregamento de espelhos, mantos de seda escarlate, escudos, elmos dourados e espadas, para comercializar com os shemitas por cobre e minério de ouro. Eu sou Demétrio, capitão deste navio e seu mestre daqui em diante.

- Então, estou na direção que eu queria, afinal. – murmurou Conan, desatento àquela última observação. Eles estavam correndo na direção sudeste, seguindo a longa curva da costa argoseana. Estes navios de comércio nunca se aventuravam longe da costa. Em algum lugar à sua frente, ele sabia, aquela escura e baixa galé stígia corria para o sul.

- Você viu uma galé stígia...? – começou Conan, mas a barba do corpulento capitão de rosto brutal se eriçou. Ele não tinha o menor interesse em qualquer pergunta que seu prisioneiro quisesse fazer, e se ressentiu com o longo tempo em que ele reduzira este navio independente à sua propriedade particular.

- Vá para a frente! – ele rugiu – Já perdi tempo demais com você! Já lhe fiz a honra de lhe trazer à popa para ser reanimado, e já respondi o bastante às suas perguntas infernais. Saia desta popa! Você vai trabalhar a bordo desta galé...

- Comprarei seu navio... – Conan começou a dizer, antes de lembrar que era um andarilho sem dinheiro.

Um grito de rude alegria acolheu estas palavras, e o capitão ficou roxo, achando que ele se sentiu ridículo.

- Seu porco amotinado! – ele berrou, dando um passo ameaçador à frente, enquanto agarrava sua faca no cinto – Vá para a frente, antes que eu lhe açoite! Você vai manter uma língua cortês em sua boca, ou, por Mitra, vou lhe acorrentar entre os negros para puxar um remo!

O temperamento vulcânico de Conan explodiu. Há anos, mesmo antes dele ser rei, homem nenhum falou com ele assim e continuou vivo.

- Não levante sua voz comigo, seu cachorro com calças de alcatrão! – ele rugiu, numa voz tão tempestuosa quanto o vento marítimo, enquanto os marinheiros ficaram boquiabertos de espanto – Puxe esse brinquedo, e eu te dou para os peixes comerem!

- Quem você pensa que é? – ofegou o capitão.

- Vou lhe mostrar! – gritou o enfurecido cimério, girando e saltando para o corrimão, onde havia armas penduradas em seus ganchos.

O capitão puxou sua faca e correu rugindo até ele, mas antes que pudesse atacar, Conan agarrou-lhe o pulso com uma violenta torção que lhe deslocou o braço. O capitão berrou como um boi em agonia, e então rolou para o outro lado do convés, quando foi arremessado com desprezo por seu atacante. Conan arrancou um pesado machado do corrimão e girou como um gato, para enfrentar a investida dos marujos. Eles avançaram, ganindo feito cães de caça, desajeitados e com passos deselegantes, em comparação ao cimério com andar de pantera. Antes que eles pudessem atingi-lo com seus punhais, ele saltou no meio deles, golpeando a torto e a direito, rápido demais para ser acompanhado com os olhos; sangue e miolos respingaram, enquanto dois corpos atingiam o convés.

Facas cortavam selvagemente o ar, enquanto Conan, com esforço, abria caminho através da turba cambaleante e ofegante, e saltava para a ponte estreita que se estendia sobre o poço, da popa à proa, fora do alcance dos escravos abaixo. Atrás dele, o punhado de marujos na popa tropeçava em sua direção, intimidado pela destruição de seus companheiros, e o restante da tripulação – uns trinta ao todo – veio correndo pela ponte em sua direção, com as armas nas mãos.

Conan pulou sobre a ponte e se equilibrou acima dos rostos negros voltados para o alto, o machado erguido e a negra cabeleira soprada pelo vento.

- Quem sou eu? – ele gritou – Vejam, seus cães! Vejam, Ajonga, Yasunga, Laranga! Quem sou eu?

E, do poço, se ergueu um grito que se transformou em um poderoso rugido.

- Amra! É Amra! O Leão está de volta!

Os marinheiros que perceberam e entenderam o peso daquele grito aterrador ficaram pálidos e recuaram, olhando assustados para a figura selvagem na ponte. Seria ele realmente aquele ogro sedento de sangue, dos mares do sul, que havia desaparecido tão misteriosamente anos atrás, mas que ainda vivia em lendas sangrentas? Os negros estavam espumando de loucura, sacudindo e tentando arrancar suas correntes, e guinchando o nome de Amra como uma invocação. Kushitas que nunca tinham visto Conan antes se juntaram à gritaria. Os escravos no cercado sob a cabine posterior começaram a bater nas paredes, guinchando feito o demônio.

Demétrio, se arrastando pelo convés, apoiado em uma das mãos e nos joelhos, pálido com a dor de seu braço deslocado, gritou:

- Vão e matem-no antes que os escravos se libertem!

Incendiados de desespero por aquelas palavras, as mais terríveis para qualquer marujo de galé, os marinheiros investiram até a ponte com ambas as finalidades. Mas, com um salto leonino, Conan deixou a ponte e caiu de pé, feito um gato, na pista entre os bancos.

- Morte aos amos! – ele trovejou, enquanto seu machado se erguia e caía, despedaçando uma algema feito madeira. Num instante, um escravo que guinchava estava livre, estilhaçando seu remo para fazê-lo de porrete. Os homens estavam correndo freneticamente ao longo da ponte superior, e todo um pandemônio tomou conta do Aventureiro. O machado de Conan subiu e desceu sem pausa; e, a cada golpe, um negro espumante e barulhento ficava livre, louco pela fúria e ódio da liberdade e vingança.

Os marujos que saltavam pra dentro do poço, para agarrarem ou ferirem o quase desnudo gigante branco, que cortava algemas como um possesso, se viam arrastados para baixo pelas mãos dos escravos ainda não-libertos, enquanto outros, com suas correntes quebradas açoitando e quebrando ao redor de seus membros, saíam do poço como uma cega torrente negra, gritando como demônios, golpeando com remos quebrados e pedaços de ferro, rasgando e despedaçando com unhas e dentes. No meio daquilo tudo, os escravos no cercado derrubaram as paredes e, como uma onda, subiram ao convés; e, com cinqüenta negros libertados de seus bancos, Conan parou de cortar o ferro e saltou para o alto, em direção à ponte, para aliar seu machado entalhado aos porretes de seus aliados.

Então foi um massacre. Os argoseanos eram fortes, vigorosos e destemidos como todos de sua raça, treinados na escola brutal do mar. Mas eles não conseguiam fazer frente contra aqueles gigantes enfurecidos, liderados pelo tigre bárbaro. Pancadas, abusos e sofrimentos infernais foram vingados numa rajada vermelha de fúria, que rugiu como um tufão de um lado a outro do navio; e quando este tufão se apagou, apenas um homem branco estava vivo a bordo do Aventureiro, e era o gigante ensangüentado, ao redor do qual os negros se aglomeravam e cantavam, se prostrando no convés sangrento e batendo suas cabeças contra as tábuas, num êxtase de adoração ao herói.

Conan, com seu peito forte arfando e brilhando de suor, o machado vermelho seguro em sua mão lambuzada de sangue, olhou em seu redor, como o primeiro chefe de homens deve ter feito em alguma aurora primitiva, e jogou para trás sua negra cabeleira. Naquele momento, ele não era rei da Aquilônia; era novamente o lorde dos corsários negros, o qual havia talhado seu caminho para o comando através de fogo e sangue.

“Amra! Amra!”, cantavam os negros delirantes que foram deixados para cantar: “O Leão voltou! Agora, os stígios irão uivar como cães à noite, e os cães negros de Kush irão se lamentar! Agora, as vilas irão irromper em chamas e os barcos irão afundar! Sim, haverá choro de mulheres e o trovejar das lanças!”.

- Parem com isso, cães! – rugiu Conan, numa voz que abafou a batida do vento na vela – Dez de vocês vão pra baixo e libertem os remadores que ainda estão acorrentados. O restante cuide dos remos e os endireite, assim como às adriças. Demônios de Crom, não vêem que fomos arrastados em direção à costa, durante a luta? Vocês querem encalhar e serem recapturados pelos argoseanos? Lancem estes cadáveres ao mar. Apressem-se, seus velhacos, ou cortarei seus couros!

Com gritos, gargalhadas e canções selvagens, eles pularam para cumprir suas ordens. Os corpos, brancos e negros, foram arremessados ao mar, onde barbatanas triangulares já cortavam as águas.

Conan ficou na popa, calando com seu olhar aos homens negros que o olhavam com expectativa. Seus pesados braços marrons estavam cruzados; seu cabelo negro, crescido em suas andanças, soprado pelo vento. A mais selvagem e bárbara figura que pisara na ponte de um navio; e, neste corsário feroz, poucos cortesãos da Aquilônia reconheceriam seu rei.

- Tem comida no porão! – ele rugiu – E há armas em abundância para vocês, pois esta embarcação carregava lâminas e armaduras para os shemitas que moram ao longo da costa. Tem o bastante para trabalharmos no navio, sim, e para lutar! Vocês remavam acorrentados para os cães argoseanos. Vão remar como homens livres para Amra?

- Sim! – eles rugiram – Somos teus filhos! Leve-nos para onde você for!

- Então comecem a limpar aquele poço. – ele ordenou – Homens livres não trabalham num lugar sujo daqueles. Três de vocês venham comigo e peguem comida da cabine de trás. Por Crom, vou encher suas costelas, antes que este cruzeiro termine!

Outro brado de aprovação o respondeu, enquanto os negros famintos dispararam para cumprir-lhe a ordem. A vela inchou enquanto o vento soprava as ondas com força renovada, e as cristas brancas dançavam de acordo com o movimento do vento. Conan fincou seus pés à altura do convés, respirou fundo e esticou seus braços poderosos. Rei da Aquilônia, ele talvez não fosse mais; mas ainda era rei do oceano azul.


16) As Muralhas Negras de Khemi

O AVENTUREIRO PERCORREU o sul como uma coisa viva, com seus remos agora puxados por mãos livres e solícitas. Ele fora transformado, de um pacífico comerciante numa galera de guerra, tanto quanto possível. Os homens agora se sentavam nos bancos, com espadas aos seus lados e capacetes dourados em seus cabelos crespos. Os escudos estavam pendurados ao longo do parapeito, e feixes de lanças, arcos e flechas adornavam o mastro. Até mesmo as forças da natureza pareciam ajudar Conan agora: a grande vela púrpura inflava com uma forte brisa que a sustentava dia após dia, precisando de pouca ajuda dos remos.

Embora Conan tenha deixado um homem no mastro dia e noite, eles não viram nenhuma galera longa, baixa e escura fugindo para o sul, adiante deles. Dia após dia, as águas azuis ficavam vazias aos seus olhos, quebradas apenas por barcos pesqueiros que fugiam deles como pássaros assustados, ao verem os escudos pendurados ao longo do parapeito. A época do ano para comércio estava praticamente terminada, e eles não viram outros navios.

Quando a sentinela avistou uma vela, esta ia para o norte, e não para o sul. Na distante linha do horizonte, à frente deles, apareceu uma galera correndo, com uma enorme vela púrpura. Os negros insistiram com Conan, para girar e saqueá-la, mas ele balançou a cabeça. Em algum lugar ao sul dele, uma fina embarcação negra estava correndo em direção aos portos da Stygia. Naquela noite, antes da escuridão encerrar o trabalho, o último vislumbre da sentinela mostrou a ele a galera de corrida no horizonte; e ao amanhecer, ela continuava atrás deles, a uma distância muito grande. Conan se perguntou se ele o estava seguindo, embora ele não pudesse achar uma razão lógica para tal suposição. Mas ele deu pouca atenção. Cada dia que o levava mais para o sul, o deixava com mais feroz impaciência. As dúvidas nunca o atacavam. Do mesmo modo que acreditava no nascer e no pôr do sol, ele acreditava que um sacerdote de Set havia roubado o Coração de Ahriman. E para onde um sacerdote de Set o levaria, senão para o Stygia? Os negros sentiam sua ansiedade, e avançaram penosamente, como nunca o haviam feito sob o chicote, embora ignorassem sua meta. Eles esperavam ansiosamente por uma rubra corrida de pilhagem e saque, e estavam contentes. Os homens das ilhas do sul não conheciam outro ofício; e os kushitas da tripulação se juntaram, de todo coração, na perspectiva de pilharem seu próprio povo, com a indiferença de sua raça. Laços de sangue significavam pouco; um capitão vitorioso e o ganho pessoal eram tudo.

Logo o aspecto da costa mudou. Há não muito tempo, eles navegavam próximos a penhascos, com colinas azuis atrás deles. Agora o litoral era a orla de vastas campinas, que mal se erguiam sobre a linha da água, e se estendiam para cada vez mais longe numa distância nebulosa. Aqui havia poucos portos e ancoradouros, mas a planície verde era pontilhada pelas cidades dos shemitas; o mar verde, lambendo as bordas das planícies verdes, e os zigurates das cidades brilhando palidamente ao sol, um pouco reduzidos pela distância.

Pelas terras pastoris, andavam as manadas de gado e fortes cavaleiros atarracados, com elmos cilíndricos e barbas encaracoladas, negro-azuladas, com arcos em suas mãos. Este era o litoral das terras de Shem, onde não havia lei, exceto as que eram impostas por cada cidade-estado. No distante leste, Conan sabia, os prados davam lugar ao deserto, onde não havia cidades, e as tribos nômades perambulavam desembaraçadamente.

Enquanto eles continuavam indo para o sul, passava o imutável panorama das campinas pontilhadas de cidades, e, por fim, o cenário começava novamente a mudar. Moitas de tamarindo apareciam e os pequenos bosques de palmeiras ficavam mais densos. O litoral ficou mais acidentado, com um paredão de árvores e palmeiras verdes, e atrás delas se erguiam colinas nuas e arenosas. Correntes desaguavam no mar e, ao longo de suas margens molhadas, a vegetação crescia densa e com grande variedade.

Então, eles finalmente passaram pela desembocadura de um grande rio, que misturava seu fluxo ao oceano, e viram as grandes muralhas e torres negras de Khemi se alçarem contra o horizonte meridional.

O rio era o Styx, a verdadeira fronteira da Stygia. Khemi era o maior porto da Stygia e sua cidade mais importante. O rei morava na mais antiga Luxur, mas em Khemi reinava a astúcia dos sacerdotes – embora os homens dissessem que o centro de sua religião sombria ficasse bem no interior daquele país, numa misteriosa cidade deserta, próxima à margem do Styx. Este rio, que nascia em algum manancial sem nome, em terras distantes e desconhecidas ao sul da Stygia, corria na direção norte por mil milhas, antes de se curvar e fluir para o oeste por algumas centenas de milhas, para finalmente desaguar no oceano.

O Aventureiro, com as luzes apagadas, se moveu furtivamente pelo porto à noite e, antes que o amanhecer o mostrasse, ele ancorou numa pequena baía, poucas milhas ao sul da cidade. A baía era cercada por pântanos, um emaranhado verde de manguezais, palmeiras e videiras, apinhado de crocodilos e serpentes. Era extremamente improvável de ser descoberto. Conan conhecia aquele lugar de longa data: ele já se escondera lá antes, em seu tempo de corsário.

Enquanto eles deslizavam rapidamente pela cidade – cujos grandes bastiões negros se erguiam sobre os dentes pontudos de terra, que fechavam o porto –, tochas brilhavam e ardiam lividamente, e chegava aos seus ouvidos o baixo ribombar de tambores. O porto não era abarrotado de navios, como os de Argos. Os stígios não baseavam sua glória e poder nos navios e esquadras. Embarcações de comércio e galeras de guerra eles tinham, de fato, mas não em proporção à força terrestre. Muitas de suas embarcações trafegavam, subindo e descendo o grande rio, mais do que ao longo das costas marítimas.

Os stígios eram uma raça antiga, um povo obscuro, inescrutável, poderoso e sem piedade. Há muito tempo, o governo deles se estendia bem ao norte do Styx, além dos prados de Shem e dentro das férteis regiões montanhosas, agora habitadas pelos povos de Koth, Ophir e Argos. Suas fronteiras eram delimitadas com aquelas da antiga Acheron. Mas Acheron caíra, e os ancestrais bárbaros dos hiborianos se precipitaram em direção ao sul, com suas peles de lobos e capacetes com chifres, expulsando os antigos donos da terra diante deles. Os stígios nunca se esqueceram disso.

Durante o dia, o Aventureiro ficou ancorado na pequena baía, murada com galhos verdes e trepadeiras emaranhadas, através dos quais passavam rapidamente pássaros de penas vistosas e vozes ásperas, e dentre os quais deslizavam répteis silenciosos, de escamas brilhantes. Em direção ao pôr-do-sol, um pequeno barco se arrastava para cima e para baixo ao longo da praia, mostrando o que Conan queria – um pescador stígio em seu bote raso, de proa reta.

Eles trouxeram-no ao convés do Aventureiro – um homem alto, escuro e esguio, pálido de medo por seus captores, que eram ogros daquela costa. Ele só vestia um calção de seda, pois, assim como os hirkanianos, até os escravos e pessoas comuns da Stygia vestiam seda; e naquele bote havia um manto largo, com o qual pescadores como ele cobriam os ombros contra o frio da noite.

Ele se ajoelhou diante de Conan, esperando tortura e morte.

- Levante-se, homem, e pare de tremer! – disse impacientemente o cimério, que achou difícil entender este desprezível terror – Você não será ferido. Diga-me apenas o seguinte: houve uma galera, uma galera negra de corrida, voltando de Argos e adentrando Khemi nos últimos dias?

- Sim, milorde. – respondeu o pescador – Ontem, ao amanhecer, o sacerdote Thutothmes retornou de uma viagem para o distante norte. Dizem que ele esteve em Messantia.

- O que ele trouxe de Messantia?

- Ai de mim, milorde, eu não sei.

- Por que ele foi para Messantia? – exigiu Conan.

- Não sei, milorde, eu sou apenas um homem comum. Quem sou eu para saber o que se passa nas mentes dos sacerdotes de Set? Só posso falar o que eu vi e o que ouvi sussurrarem ao longo do cais. Dizem que novidades de grande importância vieram para o sul, embora ninguém saiba quais sejam; e é bem sabido que o lorde Thutothmes embarcou rapidamente na sua galera negra. Ele agora retornou, mas o que ele fez em Argos, ou que carregamento ele trouxe, ninguém sabe, nem mesmo os marujos que equipavam sua galera. Dizem que ele fez oposição a Thoth-Amon, que é senhor de todos os sacerdotes de Set e vive em Luxur; e que Thutothmes busca poder oculto para derrubar o Grande. Mas quem sou eu pra dizer? Quando sacerdotes lutam entre si, um homem comum só pode se deitar de bruços e esperar que nenhum dos dois pise nele.

Conan rosnou em vigorosa fúria a esta filosofia servil, e se virou em direção a seus homens:

- Irei sozinho para Khemi, para encontrar esse ladrão chamado Thutothmes. Mantenham este homem prisioneiro, mas não o machuquem. Demônios de Crom, parem de uivar! Vocês acham que podemos navegar pra dentro do porto e tomar a cidade de assalto? Eu devo ir só.

Silenciando o clamor de protestos, ele despiu a própria roupa, e vestiu os calções de seda e sandálias do prisioneiro, assim como a faixa no cabelo do homem, mas desprezou a faca curta do pescador. Os homens comuns da Stygia não tinham permissão de usarem espadas, e o manto não era grande o bastante para esconder a longa lâmina do cimério; mas Conan pôs no quadril um punhal de Ghanata, uma arma feita pelos ferozes homens do deserto, que moravam ao sul dos stígios: uma lâmina larga, pesada e ligeiramente curvada, afiada como uma navalha e longa o bastante para desmembrar um homem.

Então, deixando o stígio vigiado pelos corsários, Conan subiu no bote do pescador.

- Me esperem até o amanhecer. – disse ele – Se eu não voltar, não voltarei mais; e então vão depressa para o sul, para seus lares.

Enquanto ele subia no banco do bote, eles ergueram um lamento melancólico por sua partida, até ele virar a cabeça para trás e olhá-los, silenciando-os com uma praga. Então, dentro do bote, ele agarrou os remos e conduziu o pequeno barco velozmente pelas ondas, mais rápido do que o dono jamais moveria.


17) “Ele Matou o Filho Sagrado de Set!”

O PORTO DE Khemi ficava entre duas grandes saliências de terra, que adentravam o oceano. Ele contornou a saliência sul, onde os grandes castelos negros se erguiam como colinas feitas pela mão do homem, e entrou no porto logo ao anoitecer, quando ainda havia luz suficiente para os vigias reconhecerem o bote e manto do pescador, mas não o bastante para permitir o reconhecimento de detalhes traiçoeiros. Sem dificuldade, ele atravessou seu caminho entre as grandes galeras negras de guerra, ancoradas silenciosamente e sem luz, e parou numa escadaria de largos degraus de pedra que se erguia do mar. Lá, ele prendeu seu bote numa argola de ferro encaixada na pedra, como numerosas embarcações semelhantes eram amarradas. Não havia nada de estranho num pescador deixar lá o seu bote. Ninguém, além de um pescador, poderia encontrar um uso para tal barco, e eles não roubavam uns aos outros.

Ninguém dirigia a ele mais que um olhar casual, enquanto ele subia os longos degraus, evitando convenientemente as tochas que brilhavam regularmente acima da ondulante água escura. Ele parecia apenas um pescador comum, de mãos vazias, voltando após um dia infrutífero ao longo da costa. Se alguém o observasse de perto, lhe pareceria que seu passo era um tanto flexível e seguro, e sua postura um pouco ereta e confiante demais para um humilde pescador. Mas ele caminhava rapidamente, se mantendo nas sombras, e as pessoas comuns da Stygia não eram mais dadas a análises do que as pessoas comuns de raças menos exóticas.

Sua constituição não era diferente das classes dos guerreiros stígios, que eram uma raça alta e musculosa. Bronzeado pelo sol, ele era quase tão escuro quanto muitos deles. Seu cabelo negro, de corte reto e preso por uma faixa de cobre, aumentava a semelhança. As características que o distanciavam deles eram a sutil diferença em seu andar, suas feições estrangeiras e seus olhos azuis.

Mas o manto era um bom disfarce, e ele se mantinha na sombra tanto quanto possível, virando a cabeça quando um habitante passava muito perto dele.

No entanto, era um jogo perigoso, e ele sabia que não conseguiria manter a farsa por muito tempo. Khemi não era como os portos marítimos dos hiborianos, onde pululavam pessoas de todas as raças. Os únicos estrangeiros aqui eram os escravos negros e shemitas; e ele se parecia tão pouco com eles quanto os próprios stígios. Estrangeiros não eram bem-vindos nas cidades da Stygia; eram tolerados apenas quando vinham como embaixadores, ou como comerciantes autorizados. Mas mesmo estes não eram permitidos em terra firme, após o anoitecer. E agora não havia nenhum navio hiboriano em todo o porto. Uma estranha inquietação corria pela cidade, uma agitação de antigas ambições; um sussurro que ninguém conseguia definir, com exceção daqueles que sussurravam. Isto Conan sentia mais do que sabia, com seus aguçados instintos primitivos sentindo a inquietude a seu redor.

Se ele fosse descoberto, seu destino seria medonho. Eles o matariam meramente por ser estrangeiro; se fosse reconhecido como Amra, o chefe corsário que havia assolado sua costa com aço e fogo... Um tremor involuntário contraiu os ombros largos de Conan. Ele não temia inimigos humanos, nem qualquer morte por aço ou fogo. Mas esta era uma terra negra de feitiçaria e de horror sem nome. Set, a Velha Serpente, diziam, banida há muito tempo das raças hiborianas, ainda se escondia nas sombras dos templos místicos, e terríveis e misteriosos eram os atos praticados nos santuários noturnos.

Ele havia se afastado das ruas próximas ao cais, com seus largos degraus que conduziam para dentro d’água, e estava adentrando as longas ruas sombrias da parte principal da cidade. Não havia cena semelhante em qualquer cidade hiborianas – nenhum brilho de lampiões e fogaréus, com pessoas alegremente vestidas, a rirem e passearem pelas calçadas; e casas de comércio e balcões escancarados, ostentando suas mercadorias.

Aqui os balcões fechavam ao anoitecer. As únicas luzes ao longo das ruas eram tochas esfumaçadas, bruxuleando a longos intervalos. As pessoas que andavam pelas ruas eram relativamente poucas; elas andavam com pressa e em silêncio, e sua quantidade diminuía com o avanço das horas. Conan achou o cenário sombrio e irreal: o silêncio das pessoas, sua pressa furtiva, as grandes muralhas de pedra negra que se erguiam de cada lado das ruas. Havia uma imponência sombria na arquitetura stígia, que era esmagadora e opressiva.

As poucas luzes se mostravam em toda parte, menos nas partes altas das construções. Conan sabia que muitas daquelas pessoas descansavam nos tetos planos, entre as palmeiras de jardins artificiais sob as estrelas. Havia um murmúrio de música estranha, vindo de algum lugar. Ocasionalmente, uma carruagem de bronze retumbava sobre as lajes do calçamento, e havia o breve vislumbre de um nobre alto, de rosto aquilino, com um manto de seda enrolado sobre ele e uma faixa de ouro, com o emblema de uma serpente com a cabeça erguida, prendendo sua negra cabeleira; o negro cocheiro nu firmava suas pernas nodosas contra a força dos ferozes cavalos stígios.

Mas as pessoas que ainda cruzavam as ruas a pé eram gente comum, escravos, comerciantes, prostitutas e labutadores, e ficavam mais escassos, enquanto ele avançava. Ele ia em direção ao templo de Set, onde sabia ser provável encontrar o sacerdote que procurava. Ele acreditava que reconheceria Thutothmes se o visse, embora seu único vislumbre tenha sido na penumbra de um beco messântio. Ele estava certo de que o homem que vira era o sacerdote. Apenas ocultistas no alto dos labirintos do hediondo Círculo Negro tinham o poder da mão negra, que matava com um toque; e apenas um homem como aquele ousaria desafiar Thoth-Amon, a quem o mundo ocidental conhecia apenas como uma figura de terror e lenda.

A rua ficou larga, Conan sabia que estava adentrando a parte da cidade dedicada aos templos. As grandes estruturas erguiam seus negros volumes contra as pálidas estrelas, sombrias e indescritivelmente ameaçadoras à luz das poucas tochas. E repentinamente ele ouviu um grito abafado de uma mulher, no outro lado da rua e um pouco à sua frente – uma cortesã nua, vestida com o alto adorno de plumas na cabeça, típico de sua classe. Ela encolhia as costas contra a parede, olhando fixamente para algo que ele não conseguia ver. Com o grito dela, as poucas pessoas na rua pararam subitamente, como que congeladas. No mesmo instante, Conan ficou ciente de um sinistro deslizador à sua frente. Então, ao redor da esquina escura da construção, se aproximou rapidamente uma hedionda cabeça em forma de cunha e, atrás dela, fluía, rolo após rolo, um ondulante tronco escuro e brilhante.

O cimério recuou, lembrando de histórias que ouvira – as serpentes eram dedicadas para Set, deus da Stygia, o qual diziam ser ele mesmo uma serpente. Monstros como aquele eram mantidos nos templos de Set e, quando sentiam fome, tinham permissão de rastejarem para as ruas, para pegarem a presa que quiserem. Seus banquetes macabros eram considerados um sacrifício para o deus escamoso.

Os stígios que Conan viu caíram ajoelhados – homens e mulheres –, aguardando passivamente o fim. A grande serpente escolheria um, enrolaria o corpo escamoso neste, trituraria-o numa polpa vermelha e o engoliria como uma cobra faz com um camundongo. Os outros viveriam. Esta era a vontade dos deuses.

Mas não era a vontade de Conan. A píton deslizou em sua direção, com a atenção provavelmente atraída pelo fato dele ser o único humano à vista ainda de pé. Agarrando sua grande faca sob o manto, Conan esperou que o animal delgado passasse por ele. Mas a coisa se deteve diante dele e se ergueu aterradoramente à luz trêmula da tocha, com a língua bifurcada palpitando para dentro e para fora da boca, e seus olhos frios cintilando com a antiga crueldade do povo-serpente. Seu pescoço se arqueou, mas antes que pudesse arremeter, Conan puxou o punhal de dentro e atacou como um relâmpago. A larga lâmina dividiu a cabeça em forma de cunha e adentrou o grosso pescoço.

Conan puxou sua faca e deu um salto, enquanto aquele enorme corpo se emaranhava e se debatia em suas convulsões mortais. No momento em que ele ficou olhando fixamente em fascinação mórbida, o único som eram os golpes e chicotadas da cauda da cobra contra as pedras.

Então, dos devotos chocados, irrompeu um grito terrível:

- Blasfemador! Ele matou o filho sagrado de Set! Matem-no! Matem! Matem!

Pedras zuniram ao seu redor e os transtornados stígios investiam contra ele, gritando histericamente, enquanto, de todos os lados, outros saíam de suas casas e se juntavam ao clamor. Com uma praga, Conan girou e disparou para dentro da boca negra de um beco. Ele ouviu o barulho leve e contínuo de pés descalços nas lajes atrás dele, enquanto fugia guiado mais pelo tato que pela visão, e as paredes ecoavam os gritos vingativos de seus perseguidores. Então, sua mão esquerda encontrou uma lacuna na parede, e ele adentrou rapidamente outro beco, mais estreito. De ambos os lados, se erguiam paredes negras e perpendiculares de pedra. Lá no alto, ele podia ver uma fina linha de estrelas. Estas paredes gigantes, ele sabia, eram os muros dos templos. Ouviu, através deles, o bando passar pela entrada escura a todo grito. Seus berros ficaram distantes e sumiram à distância. Eles não viram o beco menor e correram em linha reta na escuridão. Ele também se manteve andando em linha reta à frente, embora a idéia de encontrar outro “filho” de Set nas trevas o fizesse estremecer.

Então, em algum lugar à sua frente, ele percebeu uma incandescência se movendo, como a de um pirilampo rastejante. Ele parou, encostou-se à parede, e agarrou sua adaga. Ele sabia o que era: um homem se aproximando com uma tocha. Agora estava tão perto que ele podia perceber a mão escura que a segurava, e o vago contorno oval de um rosto escuro. Mais alguns passos e o homem certamente o veria. Ele se agachou como um tigre e a tocha parou. Uma porta estava sumariamente desenhada à luz fraca, enquanto o portador da tocha mexia nela. Então ela se abriu, a silhueta alta desapareceu através dela e a escuridão se fechou novamente no beco. Havia uma sinistra insinuação de furtividade em torno daquela figura esquiva, adentrando aquela porta do beco na escuridão; talvez um sacerdote, voltando de alguma incumbência obscura.

Mas Conan tateou em direção à porta. Se um homem avançou àquele beco com uma tocha, outros poderiam chegar a qualquer momento. Recuar através do caminho pelo qual veio poderia significar o encontro com aquela turba da qual ele estava fugindo. A qualquer momento, eles poderiam voltar, encontrar o beco mais estreito e adentrarem-no uivando. Ele se sentiu encurralado por aquelas paredes íngremes e impossíveis de serem escaladas, desejando escapar, mesmo que a fuga significasse invadir alguma edificação desconhecida.

A pesada porta de bronze não estava trancada. Ela abriu sob seus dedos e ele perscrutou através da fenda. Ele estava olhando para dentro de uma grande câmara quadrada de sólida pedra negra. Uma tocha ardia sem chamas num nicho da parede. A câmara estava vazia. Ele deslizou pela porta envernizada e fechou-a atrás dele.

Seus pés calçados por sandálias não faziam barulho, enquanto ele cruzava o negro chão de mármore. Uma porta de teca estava parcialmente aberta e, deslizando por ela com a adaga na mão, ele entrou num grande e fosco lugar sombrio, cujo teto elevado era apenas uma sugestão de trevas acima dele, além das quais as paredes negras se estendiam para o alto. De todos os lados, vãos de portas com arcos negros levavam ao grande salão silencioso. Este era iluminado por curiosos lampiões de bronze, que davam uma luz fraca e estranha. Do outro lado do grande salão, uma larga escada de mármore negro, sem corrimão, seguia para o alto até se perder na escuridão e, acima dele, por todos os lados, varandas obscuras pendiam como recifes negros.

Conan estremeceu; ele estava no templo de algum deus stígio, se não do próprio Set, ou de alguém apenas um pouco menos sombrio. E o santuário estava ocupado. No meio do grande salão, havia um negro altar de pedra, maciço e sombrio, sem entalhes nem enfeites, e, enrolada sobre ele, uma das grandes serpentes sagradas, com suas escamas iridescentes tremeluzindo à luz dos lampiões. Ela não se movia, e Conan se lembrou de histórias sobre os sacerdotes manterem estas criaturas drogadas parte do tempo. Conan deu um passo vacilante para fora da porta, e então recuou subitamente, não para a sala que ele quase acabara de abandonar, mas para dentro de um vão com cortina de veludo. Ele escutara um suave passo em algum lugar muito próximo.

De um dos arcos negros, saiu uma figura alta e poderosa, usando sandálias e uma tanga de seda, com um largo manto pendurado pelos ombros. Mas a cabeça e o rosto estavam ocultos por uma máscara monstruosa, de semblante meio bestial, meio humano, de cuja parte mais alta esvoaçava uma massa de plumas de avestruz.

Em certas cerimônias, os sacerdotes stígios usavam máscaras. Conan esperava que o homem não o descobrisse, mas algum instinto avisou o stígio. Ele se desviou abruptamente de seu destino, o qual aparentemente era a escada, e caminhou diretamente para o vão. Enquanto puxava a cortina de veludo para o lado, uma mão saiu velozmente das sombras, esmagou o grito em sua garganta e o puxou de ponta-cabeça pra dentro do vão, e a faca o empalou.

O próximo movimento de Conan era o mais óbvio sugerido pela lógica. Ele tirou-lhe a máscara de dentes arreganhados e colocou-a sobre a própria cabeça. O manto do pescador ele lançou sobre o corpo do sacerdote, o qual ele escondeu atrás das cortinas, e puxou o manto do sacerdote sobre os próprios ombros musculosos. O destino lhe dera um disfarce. Toda Khemi poderia estar agora procurando pelo blasfemador que ousara se defender contra uma serpente sagrada; mas quem sonharia em procurá-lo sob a máscara de um sacerdote?

Ele caminhou destemidamente do vão e avançou ao acaso para uma das portas arcadas. Antes que desse uma dúzia de passos, ele se virou novamente, com todos os sentidos aguçados para o perigo.

Um grupo de figuras mascaradas descia a escada, todas enfileiradas e vestidas exatamente como ele. Ele hesitou, agarrando-se à porta, e continuou parado, confiando em seu disfarce, embora um suor frio se concentrasse em sua testa, costas e mãos. Nenhuma palavra foi dita. Como fantasmas, eles desceram para o grande salão e passaram diante dele em direção a uma negra arcada. O líder carregava um bastão de ébano, o qual sustentava uma sorridente caveira negra, e Conan achou que era uma daquelas procissões ritualísticas inexplicáveis para um estrangeiro, mas que representava uma forte – e, muitas vezes, sinistra – parte da religião stígia. O último vulto virou levemente a cabeça em direção ao imóvel cimério, como que esperando que este os seguisse. Não fazer o que obviamente esperavam dele, despertaria suspeitas instantaneamente. Conan colocou-se atrás do último homem e ajustou seu caminhar ao passo regular deles.

Eles atravessaram um longo e escuro corredor abobadado no qual, Conan observou inquietamente, a caveira do bastão tinha um brilho fosforescente. Ele sentiu uma onda de irracional e selvagem pânico animal, que o incitava a puxar sua adaga e cortar a torto e a direito aquelas figuras misteriosas, e fugir loucamente daquele templo sombrio e escuro. Mas ele se controlou, lutando contra as obscuras intuições monstruosas que emergiam do fundo de sua mente e povoavam a escuridão com formas sombrias de horror; e logo ele abafou com dificuldade um suspiro de alívio, enquanto eles marchavam por uma grande porta de duas válvulas, três vezes mais alta que um homem, e saíram à luz das estrelas.

Conan se perguntava se ele ousaria desaparecer em algum beco escuro; mas hesitou, incerto, e desceu a longa rua escura que eles percorriam silenciosamente, enquanto as pessoas que encontravam viravam as cabeças e fugiam deles. A procissão se mantinha longe das paredes; sair da fila e correr por um dos becos por onde passavam, chamaria demais a atenção. Enquanto ele se aborrecia e praguejava mentalmente, eles chegaram a uma baixa passagem abobadada, na muralha sul, e a atravessaram. Acima e ao redor deles, havia agrupamentos, de pequenas cabanas de barro com tetos baixos, e de palmeiras, espectrais à luz das estrelas. Agora, pensou Conan, era o momento de abandonar seus silenciosos companheiros.

Mas, no momento em que a porta ficou pra trás deles, não houve mais silêncio. Eles começaram a murmurar excitadamente entre si. O passo cadenciado e ritualístico foi abandonado; o bastão com a caveira foi colocado, sem cerimônias, debaixo do braço do líder; todo o grupo desfez a fila e se dirigiu apressadamente para diante. E Conan correu com eles. O baixo murmúrio tinha uma palavra que o havia galvanizado. A palavra era “Thutothmes!”.


18) “Sou a Mulher que Nunca Morreu”

CONAN OLHOU FIXAMENTE, COM ardente interesse, para seus companheiros mascarados. Ou um deles era Thutothmes, ou então o destino do grupo era um encontro com o homem que ele procurava. E ele soube qual era o destino, quando, além das palmeiras, vislumbrou um enorme triângulo negro avultando contra o céu sombrio.

Eles passaram pela zona de cabanas e árvores, e se algum homem os viu, ele teve o cuidado de não se mostrar. As cabanas estavam às escuras. Atrás destas, as torres negras de Khemi avultavam de forma sombria contra as estrelas que se refletiam nas águas do porto. À frente deles, o deserto se estendia em total escuridão. Em algum lugar, um chacal ganiu. As sandálias apressadas dos silenciosos neófitos não faziam barulho na areia. Pareciam fantasmas, caminhando em direção à colossal pirâmide que se erguia da escuridão do deserto. Não havia som sobre toda a terra adormecida.

O coração de Conan bateu mais rápido, quando olhou para a sombria cunha negra, que se destacava contra as estrelas, e sua impaciência em conhecer Thutothmes de qualquer maneira, não estava desprovida de certo medo do desconhecido. Nenhum homem podia se aproximar de uma daquelas pilhas sombrias de pedra negra sem apreensão. O próprio nome era símbolo de repulsivo horror entre as nações do norte, e as lendas davam a entender que os stígios não as construíram; que estavam naquela terra em qualquer data antiga e imemorial, em que o povo de pele escura adentrou a terra do grande rio.

Enquanto se aproximavam da pirâmide, ele vislumbrou um brilho tênue próximo à base, que dentro em pouco se transformou numa entrada, ladeada por meditativos leões de pedra com cabeças de mulheres, misteriosos pesadelos insondáveis cristalizados em pedra. O líder do grupo se dirigiu diretamente à porta, em cujo vão profundo Conan viu uma figura sombria.

O líder parou por um instante, em frente àquela figura obscura, e então desapareceu dentro do interior escuro, e um por um os outros seguiram-no. Enquanto cada sacerdote mascarado passava pelo portal sombrio, era parado sucintamente pelo misterioso guardião e algo ocorria entre eles – alguma palavra ou gesto que Conan não conseguia entender. Vendo isto, o cimério ficou propositadamente para trás e parou, fingindo amarrar a tira da sandália. Quando a última figura mascarada havia desaparecido, ele se levantou e aproximou-se do portal.

Ele estava se perguntando inquietamente se o guardião do templo era humano, ao se lembrar de alguns relatos que ouvira. Mas suas dúvidas foram tranqüilizadas. Uma pálida lâmpada de bronze ardia justamente dentro da porta, iluminando um longo e estreito corredor que disparava em direção às trevas; e um homem silencioso, na entrada do mesmo, estava envolto num longo manto negro. Ninguém estava à vista. Obviamente, os sacerdotes mascarados haviam desaparecido corredor abaixo.

Sobre a capa que se estendia ao redor de suas feições ameaçadoras, os olhos penetrantes do stígio observavam agudamente a Conan. Com sua mão esquerda, ele fez um estranho gesto. Ao acaso, Conan o imitou. Mas, evidentemente, outro gesto era esperado; a mão direita do stígio saiu de seu manto, com um brilho de aço, e sua punhalada assassina perfuraria o coração de qualquer homem comum.

Mas ele estava lidando com alguém cujos músculos eram preparados para a rapidez de um gato da selva. Enquanto a adaga reluzia à luz fraca, Conan agarrou o pulso escuro e arremeteu seu punho fechado contra o maxilar do stígio. A cabeça do homem recuou contra a parede de pedra, com um ruído surdo que indicava um crânio fraturado. Parando por um instante sobre ele, Conan escutou atenciosamente. A lâmpada ardia tenuemente, lançando vagas sombras nas proximidades da porta. Nada se movia na escuridão próxima à porta. Nada se movia na escuridão além, embora à distância e abaixo dele, ao que parecia, ele tenha percebido o som fraco e abafado de um gongo.

Ele se abaixou e arrastou o corpo para trás da grande porta de bronze, que estava escancarada para dentro, e então o cimério desceu o corredor, cautelosa porém rapidamente, em direção a um destino que nem sequer tentou imaginar. Não se afastara muito, quando parou, frustrado. O corredor se dividia em duas passagens, e ele não tinha como saber qual delas havia sido tomada pelos sacerdotes mascarados. Ao acaso, ele escolheu a esquerda. O chão se inclinava levemente para baixo e estava um pouco desgastado, como que por muitos pés. Aqui e ali, uma pálida lâmpada a óleo lançava uma fraca luz de pesadelo. Conan se perguntou, inquieto, com que propósito aquelas pilhas colossais foram construídas, e em qual era esquecida. Era uma terra antiqüíssima. Ninguém sabia quantas eras foram vistas pelos templos negros da Stygia, sob a luz das estrelas.

Estreitas arcadas negras se abriam ocasionalmente à direita e esquerda, mas ele se manteve no corredor principal, embora uma convicção, de ter tomado a direção errada, estivesse aumentando nele. Mesmo eles estando à sua frente, ele já deveria ter alcançado os sacerdotes àquela altura. Estava ficando nervoso. O silêncio parecia uma coisa tangível, e ele tinha a sensação de não estar só. Mais de uma vez, passando por uma arcada sombria, ele parecia sentir sobre si a mirada de olhos invisíveis. Ele parou, quase pensando em voltar para o local onde o corredor se ramificou pela primeira vez. Ele se virou abruptamente, com o punhal erguido e todos os nervos vibrando.

Uma garota se encontrava na entrada de um túnel menor, olhando-o fixamente. Sua pele de marfim indicava-a como uma stígia de alguma antiga família nobre, e como todas aquelas mulheres, ela era alta, esbelta e voluptuosa; seu cabelo era uma grande pilha de espuma negra, em meio à qual brilhava um cintilante rubi. Exceto pelas sandálias de veludo e pela larga cinta, incrustada de jóias, ao redor de sua cintura flexível, ela estava quase nua.

- O que faz aqui? – ela indagou.

Responder iria revelar sua origem estrangeira. Ele continuou parado, uma figura sombria na hedionda máscara, com as plumas balançando sobre ele. Seu olhar alerta vasculhou as sombras atrás dela e encontrou-as vazias. Mas talvez hordas de guerreiros pudessem entrar ao chamado dela.

Ela caminhou em direção a ele, aparentemente sem receio, embora desconfiada.

- Você não é um sacerdote. – ela disse – Você é um guerreiro. Mesmo com essa máscara, isso é óbvio. Há tanta diferença entre você e um sacerdote, quanto entre um homem e uma mulher. Por Set! – ela exclamou, parando subitamente e com os olhos flamejantes – Eu nem acredito que você seja um stígio!

Com um movimento rápido demais para ser acompanhado por olhos, a mão dele se fechou ao redor do roliço pescoço dela, tão levemente quanto uma carícia.

- Não faça o menor som! – ele sussurrou.

Sua suave carne ebúrnea era fria como o mármore, embora não houvesse medo nos grandes e maravilhosos olhos escuros que o fitavam.

- Não tenha medo. – ela respondeu calmamente – Eu não vou lhe trair. Mas você, um desconhecido e um estrangeiro, é louco de vir ao templo proibido de Set?

- Estou procurando pelo sacerdote Thutothmes. – ele respondeu – Ele está neste templo?

- Por que você o procura? – ela perguntou.

- Ele tem algo meu que foi roubado.

- Vou lhe levar até ele. – ela se ofereceu, tão prontamente que as suspeitas dele foram imediatamente despertadas.

- Não brinque comigo, garota. – ele rosnou.

- Não estou brincando com você. Não morro de amores por Thutothmes.

Ele hesitou, e então se decidiu; afinal, ele estava em poder dela tanto quanto ela no seu.

- Ande ao meu lado. – ele ordenou, mudando sua mão, da garganta para o pulso dela – Mas ande com cuidado. Se fizer algum movimento suspeito...

Ela o levou para o fundo do corredor inclinado, cada vez mais para baixo, até onde não havia mais lâmpadas a óleo, e ele caminhou às cegas no escuro, guiado menos pela visão do que pela sensação da mulher ao lado. Num momento em que falou com ela, a garota virou a cabeça em sua direção e ele se sobressaltou ao ver os olhos dela brilharem como fogo dourado no escuro. Dúvidas obscuras e vagas suspeitas monstruosas assombraram-lhe a mente, mas ele seguiu-a, através de um emaranhado labirinto de corredores negros, que confundiam até mesmo seu primitivo senso de direção. Ele se amaldiçoava mentalmente por sua tolice em se deixar conduzir para dentro daquela negra moradia de mistério; mas agora era tarde demais para voltar. Novamente, ele sentiu vida e movimento na escuridão ao seu redor, sentiu perigo e fome queimarem impacientemente nas trevas. A menos que seus ouvidos o enganassem, ele percebeu um fraco ruído deslizante, que recuava e retrocedia a um comando sussurrado da garota.

Ela finalmente o levou para dentro de uma câmara, iluminada por um curioso candelabro de sete braços, nos quais velas negras queimavam estranhamente. Ele sabia que estava bem abaixo da terra. A câmara era quadrada, com paredes e tetos de negro mármore polido, e mobiliada à maneira dos antigos stígios: havia um leito de ébano, coberto com veludo negro, e num estrado de pedra negra havia um esculpido caixão de múmia.

Conan ficou esperando, enquanto olhava as várias arcadas negras que se abriam para a câmara. Mas a garota não se moveu para diante. Estirando-se no leito com flexibilidade felina, ela entrelaçou os dedos atrás de sua cabeça suave e o olhou por baixo das longas pestanas curvadas.

- Bem? – ele demandou impacientemente – O que está fazendo? Onde está Thutothmes?

- Não há pressa. – ela respondeu preguiçosamente – O que é uma hora... ou um dia, um ano ou um século? Tire sua máscara. Deixe-me ver seu rosto.

Com um grunhido de irritação, Conan puxou o volumoso capacete, e a garota moveu a cabeça, como que em aprovação, enquanto examinava-lhe atentamente o escuro rosto cicatrizado e olhos resplandecentes.

- Há força em você... uma grande força; você seria capaz de estrangular um boi.

Ele se movia inquieto, com suas suspeitas crescendo. Com a mão no punho de sua espada, ele perscrutou as arcadas sombrias.

- Se você me trouxe para uma armadilha – ele disse –, não viverá para apreciar seu trabalho. Você vai sair deste leito e fazer o que prometeu, ou será que vou ter que...?

Sua voz parou. Ele estava encarando o caixão de múmia, no qual a fisionomia do ocupante estava entalhada em marfim, com a surpreendente nitidez de uma arte esquecida. Havia uma inquietante familiaridade ao redor daquela máscara esculpida, e, com um certo choque, ele percebeu isso. Havia uma assustadora semelhança entre ela e o rosto da jovem que se deitava no leito do ébano. Ela poderia ter sido a modelo para aquele entalhe, mas ele percebeu que o retrato tinha, pelo menos, séculos de idade. Hieróglifos arcaicos estavam rabiscados pela tampa envernizada e, procurando em sua mente por lembranças, aprendidas aqui e ali como conseqüência de uma vida aventureira, ele formou mentalmente uma palavra e disse-a em voz alta:

- Akivasha!


- Já ouviu falar na Princesa Akivasha? – indagou a garota no leito.

- Quem não ouviu? – ele grunhiu. O nome daquela antiga princesa, bela e maligna, ainda existia no mundo em canções e lendas, embora dez mil anos tivessem transcorrido desde que a filha de Tuthamon se deleitara em régias festas, no meio dos salões negros da antiga Luxur.

- Seu único pecado foi ter amado a vida em todos os sentidos. – disse a jovem stígia – Para conservar a vida, ela buscou a morte. Ela não podia suportar a idéia de envelhecer, enrugar, se debilitar e finalmente morrer como uma velha feia. Ela cortejou as Trevas como a um amante, e seu presente foi a vida... vida que não é como a que os mortais conhecem, a qual não envelhece nem murcha. Ela adentrou as sombras para trapacear a idade e a morte...

Conan mirou-a ferozmente, com os olhos semicerrados queimando de forma súbita. Ele se virou e puxou a tampa do sarcófago. Este estava vazio. Atrás dele, a garota estava rindo, e o som gelou o sangue em suas veias. Ele se voltou rapidamente para ela, com um arrepio nos cabelos curtos do pescoço.

- Você é Akivasha! – ele grunhiu.

Ela gargalhou e jogou para trás suas brilhantes madeixas, esticando sensualmente os braços.

- Eu sou Akivasha! Sou a mulher que nunca morreu, que nunca envelheceu! Aquela de quem os tolos falam que foi alçada da terra pelos deuses, em plena flor da juventude e beleza, para reinar eternamente em alguma região celestial! Não, é nas sombras que os mortais encontram imortalidade! Dez mil anos atrás, eu morri para viver para sempre! Dê-me seus lábios, homem forte!

Erguendo-se graciosamente, ela se aproximou dele, ficou nas pontas dos pés e lançou os braços ao redor de seu pescoço maciço. Franzindo a testa para sua bela fisionomia erguida, ele sentiu uma terrível fascinação e um medo glacial.

- Me ame! – ela sussurrou, com a cabeça lançada para trás e os lábios entreabertos – Me dê seu sangue, para renovar minha juventude e perpetuar minha vida eterna! Farei-lhe imortal também! Vou lhe ensinar a sabedoria de todas as eras, todos os segredos que sobreviveram por eternidades na escuridão sob estes templos sombrios. Eu lhe farei rei daquela horda sombria, que se deleita entre as tumbas dos anciãos, quando a noite cobre o deserto e morcegos voam diante da lua. Estou cansada de sacerdotes, de feiticeiros e de jovens cativas arrastadas, entre gritos agudos, através dos portais da morte. Eu desejo um homem. Me ame, bárbaro!

Ela pressionou a cabeça escura contra aquele peito poderoso, e ele sentiu uma dor aguda na base da garganta. Praguejando, ele afastou-a violentamente e lançou-a, estatelada, sobre o leito.

- Vampira maldita!

Um fio de sangue lhe escorria de um pequeno ferimento no pescoço. Ela se ergueu do leito como uma serpente em posição de ataque, com todos os fogos dourados do inferno ardendo em seus olhos arregalados. Seus lábios se moveram para trás, revelando dentes brancos e afiados.

- Tolo! – ela guinchou – Pensa que vai escapar de mim? Você viverá e morrerá nas trevas! Eu lhe trouxe para bem abaixo do templo. Você nunca conseguirá achar sozinho a saída. Nunca conseguirá abrir caminho por entre aqueles que guardam os túneis. Sem minha proteção, os filhos de Set teriam lhe devorado há muito tempo. Imbecil, ainda beberei seu sangue!

- Fique longe de mim, ou vou lhe cortar em pedaços! – ele grunhiu – Você pode ser imortal, mas o aço pode lhe desmembrar.

Enquanto ele recuava em direção à arcada pela qual entrara, a luz se extinguiu repentinamente. Todas as velas se apagaram de uma só vez, embora ele não soubesse como, pois Akivasha não as tocara. Mas o riso da vampira se ergueu zombeteiro atrás dele, tão doce e venenoso quanto as violas do inferno, e ele suava ao tatear pela arcada na escuridão, num quase pânico. Seus dedos encontraram uma saída e ele mergulhou através dela. Se era a arcada pela qual entrara, ele não sabia e nem se importava muito. Seu único pensamento era sair da câmara assombrada, que abrigara aquela bela e abominável demônia morta-viva por tantos séculos.

Suas andanças por aqueles negros corredores sinuosos eram um pesadelo que faziam suar. Atrás dele e ao seu redor, ele ouvia vagos escorregões e deslizamentos, e um eco daquela doce risada infernal que escutara no quarto de Akivasha. Ele deu ferozes cutiladas aos sons e movimentos que ouvia, ou imaginava ouvir, na escuridão próxima e, uma só vez, sua espada atravessou alguma flexível substância tênue, que poderia ser teia de aranha. Ele tinha uma desesperada sensação de que estavam brincando com ele, atraindo-o cada vez mais fundo para a noite suprema, antes de ser colocado à mira de garras e dentes demoníacos.

E, através de seu medo, corria a repugnante reação de sua descoberta. A lenda de Akivasha era muito antiga e, entre as malignas histórias contadas sobre ela, corria um fio de beleza, de idealismo, de eterna juventude. Para muitos sonhadores e poetas, ela não era apenas a princesa maligna da lenda stígia, mas o símbolo da juventude e beleza eternas, brilhando para sempre em algum reino distante dos deuses. E esta era a horrenda realidade. Esta desagradável perversão era a verdade daquela vida eterna. Através de sua reação física, corria a sensação de um sonho despedaçado de adoração humana, com seu ouro cintilante transformado em lodo e em imundície cósmica. Uma onda de inutilidade se arrastou sobre ele, um pálido medo da falsidade de todos os sonhos e adorações humanas.

E agora ele sabia que seus ouvidos não estavam lhe pregando peças. Estava sendo seguido, e seus perseguidores estavam se aproximando. Na escuridão, soavam o arrastar de pés e uns movimentos deslizantes que nunca foram feitos por pés humanos; não, e nem pelos pés de qualquer animal normal. Talvez o inferno também tivesse sua vida bestial. Estavam atrás dele. Ele se virou para enfrentá-los, embora não conseguisse enxergar nada, e recuou devagar. Então, os sons se calaram, antes mesmo que ele virasse a cabeça e visse, em algum lugar da extremidade do longo corredor, uma incandescência de luz.


19) No Salão dos Mortos

CONAN SE MOVEU CAUTELOSAMENTE em direção à luz que vira, com seu ouvido erguido sobre o ombro, mas não havia mais som de perseguição, embora ele sentisse a escuridão fértil em sensações de vida.

A incandescência não estava parada; se movia, balouçando-se esquisitamente para a frente. Então, ele viu a fonte. O túnel que ele atravessava cruzava outro corredor, mais largo, um pouco distante à frente dele. E, ao longo deste segundo túnel, passava uma bizarra procissão: quatro homens altos e magros, usando negras túnicas com capuzes, e apoiados nos bastões. O líder segurava uma tocha acima da cabeça – uma tocha que queimava com um brilho curiosamente firme. Como fantasmas, eles passaram através de seu limitado alcance visual e desapareceram, com apenas um brilho cada vez mais desbotado como sinal de sua passagem. A aparência deles era extraordinariamente velha. Eles não eram stígios, nem nada que Conan tivesse visto antes. Ele duvidava até que fossem humanos. Eram como fantasmas negros, espreitando como vampiros ao longo dos túneis assombrados.

Mas a posição dele não podia ser mais desesperada do que era. Antes que os pés inumanos às suas costas pudessem resumir o avanço deslizante deles ao desvanecimento da distante iluminação, Conan estava descendo o corredor. Ele se lançou ao outro túnel e viu, lá embaixo, bem distante, a estranha procissão se movendo na esfera brilhante. Ele se moveu furtivamente, sem barulho, e então recuou subitamente contra a parede, enquanto os via pararem e se agruparem, como que conferenciando algum assunto. Eles se viraram, como se fossem voltar por onde vieram, e ele escapuliu para dentro da arcada mais próxima. Tateando na escuridão – à qual se acostumara tanto, que conseguia tudo, menos enxergar nela –, ele descobriu que o túnel não seguia em linha reta, mas serpenteava, e ele caiu para trás além da primeira curva, de modo que a luz dos estranhos não caísse nele, enquanto eles passavam.

Mas, enquanto permanecera lá, esteve ciente de um baixo som sussurrado, em algum lugar atrás dele, como o murmúrio de vozes humanas. Descendo o corredor naquela direção, confirmou sua primeira suspeita. Abandonando sua intenção original de seguir os viajantes fantasmagóricos para qualquer que fosse o destino deles, ele se pôs pra fora, na direção das vozes.

Dali a pouco, ele viu um brilho à sua frente, e virou pra dentro do corredor do qual este saíra, viu uma larga arcada, ocupada com um brilho indistinto, no outro lado. À sua esquerda, uma estreita escada de pedra levava para o alto, e a cautela instintiva o levou a dar a volta e galgar a escada. As vozes que escutara estavam chegando de além daquele arco ocupado pelo brilho.

Os sons diminuíam sob ele, enquanto subia a escada, e logo apareceu através de uma baixa porta em arco, dentro de um vasto espaço aberto, brilhando com um fulgor sobrenatural.

Ele estava de pé numa galeria sombria, da qual ele olhava para baixo e via um salão mal-iluminado de proporções colossais. Era um salão dos mortos, o qual poucos viam, exceto os silenciosos sacerdotes da Stygia. Ao longo das paredes negras, se erguia, fila após fila, um esculpido sarcófago pintado. Cada um ficava num nicho na pedra escura, e as fileiras se sobrepunham, cada vez mais altas, até se perderem na escuridão acima. Milhares de máscaras esculpidas miravam impassíveis para baixo, sobre o grupo no centro do salão, o qual se tornava fútil e insignificante naquela vasta disposição de mortos.

Daquele grupo, dez eram sacerdotes e, embora eles houvessem descartado suas máscaras, Conan sabia que eram os sacerdotes que ele acompanhara até a pirâmide. Eles se erguiam diante de um homem alto e de rosto aquilino, próximo a um altar negro, onde jazia uma múmia, com ataduras podres. E o altar parecia estar no coração de um fogo vivo, que pulsava e tremeluzia, lançando faíscas de palpitante chama dourada nas pedras negras a seu redor. Este brilho deslumbrante vinha de uma grande jóia vermelha, repousada sobre o altar, e em cujo reflexo os rostos dos sacerdotes pareciam lívidos e cadavéricos. Enquanto olhava, Conan sentiu a aflição de todas as léguas, dias e noites cansativas de sua longa busca, e tremeu com o louco impulso de arremessar-se entre aqueles sacerdotes silenciosos, abrindo seu caminho com poderosos golpes de aço nu, e se apossar da gema vermelha com dedos entusiasmados. Mas ele se manteve em férreo autocontrole e agachou-se na sombra da balaustrada de pedra. Um vislumbre o mostrou uma escada que descia da galeria para o salão, pregada à parede e meio escondida nas sombras. Ele olhou ferozmente pra dentro da obscuridade do vasto local, procurando outros sacerdotes ou devotos, mas só viu o grupo sobre o altar.

Naquele grande vácuo, a voz de um homem junto ao altar soou cavernosa e fantasmagórica:

- E então a notícia chegou ao sul. O vento noturno a sussurrou, os corvos grasnaram-na enquanto voavam, e os sombrios morcegos contaram-na para as corujas e as serpentes que se escondem em antigas ruínas. Lobisomens e vampiros souberam, assim como os demônios de ébano que rondam pela noite. A adormecida Noite do Mundo agitou e sacudiu sua pesada cabeleira, e então começou o pulsar de tambores nas trevas profundas, e os ecos de distantes gritos sobrenaturais assustaram os homens que caminhavam pela sombra. Pois o Coração de Ahriman havia chegado novamente ao mundo, para cumprir seu destino secreto. Não me pergunte como eu, Thutothmes de Khemi e da Noite, ouvi a notícia antes de Thoth-Amon, que se proclama príncipe de todos os feiticeiros. Há segredos não encontrados por tais ouvidos, mesmo os seus, e Thoth-Amon não é o único lorde do Anel Negro.

“Eu soube, e fui encontrar o Coração, que veio para o sul. Foi como um ímã que me puxou certeiro. De morte em morte, ele veio, montado num rio de sangue humano. O sangue o alimenta, o sangue o puxa. Seu poder é o maior quando há sangue nas mãos que o seguram, quando ele é arrancado por matança daquele que o possui. Onde quer que brilhe, o sangue é derramado, os reinos cambaleiam e as forças da Natureza são tumultuadas.

“E aqui estou, o senhor do Coração, e lhes convoquei para virem secretamente, vocês que são leais a mim, para tomarem parte no reino negro que virá. Esta noite, vocês irão testemunhar a quebra do jugo de Thoth-Amon, o qual nos escraviza, e o nascimento de um império. Quem sou eu, mesmo eu, Thutothmes, para saber que poderes se escondem e sonham nessas profundezas rubras? Ele contém segredos esquecidos por três mil anos. Mas eu aprenderei. Eles me ensinarão”.

Ele acenou com a mão em direção às formas silenciosas que se alinhavam no salão:

- Veja como dormem, mirando através de suas máscaras esculpidas! Reis, rainhas, generais, sacerdotes, feiticeiros, as dinastias e a nobreza da Stygia por dez mil anos! O toque do Coração irá despertá-los de seus longos sonos. Há muito, muito tempo, o Coração latejou e pulsou na antiga Stygia. Aqui foi o seu lar, nos séculos anteriores à sua jornada para Acheron. Os antigos conheciam todo o seu poder, e eles me falarão quando eu usar sua mágica para ressuscitá-los a meu serviço. Irei despertá-los e aprender sua esquecida sabedoria, o conhecimento trancado naqueles crânios secos. Através do conhecimento do morto, escravizaremos o vivo! Sim, reis, generais e feiticeiros dos tempos antigos serão nossos ajudantes e escravos. Quem resistirá a nós? Vejam! Esta coisa seca e rachada no altar, um dia foi Thothmekri, um alto sacerdote de Set, que morreu há três mil anos. Ele era um iniciado no Anel Negro. Ele sabia do Coração. Ele nos falará de seus poderes.

Erguendo a grande jóia, o orador depositou-a no peito definhado da múmia, levantou a mão e começou um encantamento. Mas o encantamento não terminou. Com a mão cadenciada e os lábios abertos, ele congelou, olhando ferozmente para além de seus acólitos, e estes se viraram para olhar fixamente na direção em que ele estava olhando.

Através do arco negro de uma porta, quatro formas magras, em túnicas negras, haviam adentrado o grande salão. Seus rostos eram ovais amarelados nas sombras de seus capuzes.

- Quem são vocês? – exclamou Thutothmes, numa voz tão perigosa quanto o sibilar de uma naja – Vocês são loucos de invadirem o santuário sagrado de Set?

O mais alto dos estranhos falou, e sua voz tinha o tom seco do sino de um templo khitaiano:

- Estamos seguindo Conan da Aquilônia.

- Ele não está aqui. – respondeu Thutothmes, jogando o manto para trás com a mão direita, num curioso gesto de ameaça, como uma pantera que mostra as garras.

- Você mente. Ele está neste templo. Nós o rastreamos, de um cadáver atrás da porta de bronze na entrada externa, através de um labirinto de corredores. Estávamos seguindo sua trilha errante, quando ficamos a par deste conclave. Iremos continuar a busca. Mas primeiro nos dê o Coração de Ahriman.

- A morte é o quinhão dos loucos. – sussurrou Thutothmes, se aproximando do que falava. Seus sacerdotes se aproximaram com passo felino, mas os estranhos pareciam não prestarem atenção.

- Quem consegue olhá-lo sem desejo? – disse o khitaiano – Em Khitai, ouvimos falar nele. Ele nos dará poder sobre o povo que nos expulsou. Glória e maravilha estão concebidas em suas rubras profundezas. Dê-o para nós, senão lhe mataremos.

Um grito feroz ressoou, quando um sacerdote saltou com um brilho de aço. Mas antes que pudesse golpear, uma vara escamosa arremeteu e tocou-lhe o peito. E ele caiu como cai um morto. Num instante, as múmias testemunhavam uma cena de sangue e horror. Facas curvadas brilhavam e se tingiam de vermelho, cajados serpentinos eram arremetidos, e sempre que tocavam um homem, este gritava e morria.

Ao primeiro ataque, Conan havia saltado para cima e estava descendo rapidamente as escadas. Ele só teve vislumbres daquela breve luta diabólica – viu homens oscilando, encerrados na batalha e escorrendo sangue; viu um khitaiano completamente despedaçado, mas ainda de pé e distribuindo morte, quando Thutothmes o golpeou no peito com a mão vazia e aberta, e ele caiu morto, apesar do aço nu não ter sido suficiente para destruir sua fantástica vitalidade. No momento em que Conan saía a passos rápidos da escada, a luta estava quase terminada. Três dos khitaianos estavam caídos, retalhados, cortados em tiras e desentranhados; mas, dos stígios, apenas Thutothmes continuava de pé.

Ele investiu contra o khitaiano remanescente, com a mão vazia erguida feito uma arma, e esta mão estava tão escura quanto a de um negro. Mas antes que pudesse investir, o bastão na mão do khitaiano arremeteu, parecendo se alongar enquanto o homem amarelo empurrava. A ponta tocou o peito de Thutothmes, e ele tremeu; mais uma vez e mais outra, o bastão arremeteu, Thutothmes cambaleou e caiu morto, com as feições ocultas numa precipitação de negrume, que deixou ele todo com a mesma cor de sua mão encantada.

O khitaiano se virou em direção à jóia que queimava no peito da múmia, mas Conan ficou à frente dele.

Numa tensa quietude, os dois se encararam, em meio àquela desordem, com as múmias entalhadas olhando-os de cima.

- Há muito venho lhe seguindo, ó, rei da Aquilônia. – disse calmamente o khitaiano – Desci o longo rio e as montanhas, através de Poitain e Zingara, pelas colinas de Argos e descendo a costa. Com dificuldade, percebemos a sua trilha desde Tarantia, pois os sacerdotes de Asura são astutos. Perdemos-na em Zingara, mas encontramos seu capacete na floresta sob as colinas da fronteira, onde você lutou contra os vampiros das florestas. Quase perdemos novamente o seu rastro esta noite, entre estes labirintos.

Conan refletiu que havia sido afortunado em voltar do quarto da vampira por outro caminho que não o qual por onde fora conduzido. Do contrário, ele correria com tudo para o meio desses demônios amarelos, ao invés de avistá-los de longe, enquanto eles farejavam seu rastro como sabujos humanos, com qualquer que fosse o dom sobrenatural deles.

O khitaiano balançou a cabeça levemente, como se lendo seu pensamento.

- Isso não importa; a longa perseguição termina aqui.

- Por que vocês me caçaram? – indagou Conan, pronto para se deslocar em qualquer direção, com a velocidade de um gatilho.

- Era uma dívida a ser paga. – respondeu o khitaiano – Para você, que está prestes a morrer, não vou negar conhecimento. Somos vassalos do rei da Aquilônia, Valerius. Servimos a ele por muito tempo, mas agora estamos livres desse serviço... meus irmãos pela morte, e eu pelo cumprimento do dever. Voltarei à Aquilônia com dois corações: o Coração de Ahriman para mim e o de Conan para Valerius. Um leve contato do bastão, que foi cortado da viva Árvore da Morte...

O cajado arremeteu como uma víbora, mas o corte da faca de Conan foi mais rápido. A vara caiu, partida em duas metades contorcidas, e houve outro palpitar de aço afiado, como o jato de um relâmpago, e a cabeça do khitaiano rolou ao chão.

Conan se voltou e estendeu a mão em direção à jóia – então, ele recuou, com o cabelo arrepiado e o sangue congelando.

Pois, há não muito tempo, uma coisa definhada e marrom jazia no altar. A jóia tremeluzia no peito cheio e curvado de um desnudo homem vivo, que estava deitado entre as bandagens mofadas. Vivo? Conan não conseguia determinar. Os olhos eram como tenebrosos vidros negros, sob os quais brilhavam sombrias chamas inumanas.

Lentamente, o homem se levantou, pegando a jóia com a mão. Ele se elevou ao lado do altar, escuro, nu, com um rosto feito uma imagem esculpida. Silenciosamente, ele estendeu sua mão em direção a Conan, com a jóia palpitando feito um coração vivo dentro dela. Conan tomou-a, com uma lúgubre sensação de receber presentes da mão dos mortos. De alguma forma, ele compreendeu que os encantamentos apropriados não foram feitos; a conjuração não fora completada e a vida não fora totalmente restaurada àquele corpo.

- Quem é você? – indagou o cimério.

A resposta veio em tom monótono, como a água pingando das estalactites em cavernas subterrâneas:

- Eu era Thothmekri; eu estou morto.

- Bom, me leve para fora deste templo amaldiçoado, você leva? – pediu Conan, com a pele arrepiada.

Com passos cadenciados e mecânicos, o morto se dirigiu a uma arcada negra. Conan o seguiu. Uma olhadela para trás o mostrou, mais uma vez, o vasto salão sombrio, com suas prateleiras de sarcófagos, os homens mortos esparramados ao redor do altar; e a cabeça do khitaiano que ele matara, mirando, sem ver, as vastas sombras no alto.

O brilho da jóia iluminava os vastos túneis, como uma lâmpada enfeitiçada, pingando fogo dourado. Rapidamente, Conan teve um vislumbre de pele ebúrnea nas sombras, e acreditou ter visto a vampira Akivasha recuando diante do brilho da jóia; e, com a vampira, outras formas, menos humanas, disparavam ou cambaleavam para dentro das trevas.



O morto caminhava em linha reta, sem olhar para a direita nem para a esquerda, com seu andar inalterável feito um andarilho do juízo final. Grossos pingos de suor frio se aglomeravam na pele de Conan. Dúvidas glaciais o acometeram. Como ele poderia saber se aquela terrível figura do passado estava conduzindo-o para a liberdade? Mas ele sabia que, sozinho, jamais conseguiria se desembaraçar daquele labirinto enfeitiçado de corredores e túneis. Ele seguiu seu espantoso guia, através da escuridão que avultava à sua frente e às suas costas, e era tomada por formas esquivas de horror e loucura que se encolhiam em frente ao brilho cegante do Coração.

Então, a entrada de bronze ficou diante dele, e Conan sentiu o vento noturno soprando de um lado ao outro do deserto, e viu as estrelas e o deserto iluminado pelas estrelas, através do qual se estendia a grande sombra negra da pirâmide. Thothmekri apontou silenciosamente o deserto, e então se virou, andando altiva e silenciosamente de volta às trevas. Conan olhou, calado, aquela figura silenciosa que voltava à escuridão sem fazer som e com passos inflexíveis, como alguém que se move para um destino conhecido e inevitável, ou retorna ao sono eterno.

Com uma praga, o cimério pulou da entrada e fugiu pelo deserto, como se perseguido por demônios. Ele não voltou a olhar para a pirâmide, ou na direção das torres negras de Khemi que avultavam vagamente pelas areias. Dirigiu-se ao sul, até a costa, e correu como o faz um homem num pânico desregrado. O violento esforço deixou seu cérebro livre das obscuras teias de aranha; o vento limpo do deserto soprou os pesadelos de sua alma, e sua revolta transformou-se numa selvagem maré de júbilo, antes que o deserto desse lugar a um emaranhado de vegetação pantanosa, através da qual ele viu a água negra estendida além dele, e o Aventureiro ancorado.

Ele mergulhou na vegetação, com o charco à altura de seu quadril, negligente dos tubarões e crocodilos, nadou até a galera e subiu pela corrente no convés, molhado e exultante, antes que o vigia o visse.

- Acordem, seus cães! – rugiu Conan, pondo para um lado a lança que a assustada sentinela apontou-lhe no peito – Içar âncora! Dêem àquele pescador um capacete cheio de ouro e ponham-no em terra firme! A aurora logo irá romper, e antes do nascer do sol, deveremos correr ao porto mais próximo de Zingara!

Ele girou rapidamente, sobre a cabeça, a grande jóia, a qual lançou borrifos de luz que pontilharam o convés com fogo dourado.


20) Do Pó Se Erguerá Acheron

O INVERNO HAVIA PASSADO na Aquilônia. Folhas brotavam nos galhos das árvores, e a grama fresca sorria ao toque das quentes brisas do sul. Mas muitos campos estavam inativos e vazios; muitas pilhas carbonizadas de cinzas marcavam o ponto onde orgulhosas casas de campo, ou cidades prósperas, haviam estado. Lobos vagavam abertamente ao longo de estradas cobertas por capim, e bandos de homens magros e sem dono se moviam furtivamente pelas florestas. Somente em Tarantia havia festa, riquezas e pompa.

Valerius governava como alguém tocado pela loucura. Até mesmo muitos dos barões que haviam dado boas vindas ao seu retorno, finalmente protestavam contra ele. Seus coletores de impostos oprimiam tanto ricos quanto pobres; as riquezas de um reino pilhado entravam em Tarantia, a qual se tornou menos a capital de um reino do que a guarnição militar de conquistadores numa terra conquistada. Seus mercadores enriqueciam, mas era uma prosperidade precária; pois ninguém sabia quando ele poderia ser falsamente acusado de alta traição, sua propriedade confiscada e ele próprio jogado numa cela, ou levado para o sangrento bloco do carrasco.

Valerius não tentou conciliar seus súditos. Ele se mantinha no poder através das tropas nemédias e de mercenários desesperados. Ele próprio sabia ser uma marionete de Amalric. Ele sabia que nunca poderia esperar unificar a Aquilônia sob seu governo e se livrar do jugo de seus senhores, pois as províncias fronteiriças resistiriam a ele até a última gota de sangue. E os nemédios o tirariam do trono, se ele fizesse alguma tentativa de consolidar seu reino. Havia sido pego em sua própria morsa. O amargor do orgulho derrotado lhe corroeu a alma, e ele se lançou num reino de orgia, como alguém que vive um dia após o outro, sem pensar nem se importar com o amanhã.

Mas havia sutileza em sua loucura, tão profunda que nem mesmo Amalric a percebeu. Talvez os anos selvagens e caóticos de andanças como um exilado houvessem gerado nele uma amargura além da concepção comum. Talvez a repugnância à sua posição atual lhe houvesse aumentado esta amargura para um tipo de loucura. De qualquer forma, ele vivia com um desejo: causar a ruína de todos que se uniram a ele.

Ele sabia que seu governo acabaria no instante em que ele tivesse servido aos propósitos de Amalric; ele também sabia que, enquanto continuasse a oprimir seu reino nativo, o nemédio lhe permitiria reinar, pois Amalric desejava esmagar a Aquilônia em submissão total, destruir seu último fragmento de independência, e então finalmente ele próprio se apoderar dela, reconstruí-la ao seu modo com suas vastas riquezas, e usar seus homens e recursos naturais para arrancar a coroa de Tarascus. Pois o trono de um imperador era a ambição suprema de Amalric, e Valerius sabia disso. Valerius não sabia se Tarascus suspeitava disso, mas sabia que o rei da Nemédia lhe aprovava o rumo impiedoso. Tarascus odiava a Aquilônia, com um ódio nascido de velhas guerras. Ele desejava apenas a destruição do reino ocidental.

E Valerius pretendia arruinar o país de forma tão absoluta, que nem mesmo as riquezas de Amalric pudessem reconstruí-lo. Ele odiava o barão tanto quanto odiava os aquilonianos, e tinha esperança apenas de ver o dia em que a Aquilônia ficasse totalmente arruinada, e Tarascus e Amalric estivessem engalfinhados numa desesperançosa guerra civil, a qual pudesse destruir completamente a Nemédia.

Ele acreditava que a conquista das ainda rebeldes províncias da Gunderlândia e Poitain, e das fronteiras bossonianas, marcaria seu fim como rei. Ele então teria servido aos propósitos de Amalric e poderia ser descartado. Assim, ele adiava a conquista dessas províncias, limitando suas atividades a ataques-surpresa e pilhagens sem propósitos, enfrentando as insistências de Amalric por ação com todo tipo de objeções e adiamentos plausíveis.

Sua vida era uma série de festas e de violentas orgias. Ele preenchia o palácio com as garotas mais belas do reino, quer elas quisessem ou não. Blasfemava contra os deuses e se estatelava bêbado sobre o chão do salão de banquetes, usando a coroa dourada, e manchando suas púrpuras túnicas reais com o vinho que derramava. Em assomos de sede de sangue, ele enfeitava as forcas na praça do mercado com cadáveres nelas pendurados, saciava os machados dos carrascos e mandava seus cavaleiros nemédios trovejarem através da terra, saqueando e queimando. Levada à loucura, a terra estava numa constante convulsão de revolta desvairada, selvagemente reprimida. Valerius pilhava, estuprava, saqueava e destruía até o próprio Amalric protestar, avisando-o que ele iria arruinar o reino além de qualquer reparo, sem saber que esta era sua determinação firmada.

Mas, enquanto os homens, tanto da Aquilônia quanto da Nemédia, falavam da loucura do rei, na Nemédia se falava muito em Xaltotun, o mascarado. Mas poucos o viram nas ruas de Belverus. Diziam que ele passava muito tempo nas colinas, em estranhos conclaves com os remanescentes vivos de uma velha raça: gente escura e silenciosa, que afirmava descender de um antigo reino. Os homens sussurravam sobre tambores batendo lá no alto, nas colinas enevoadas; sobre fogueiras brilhando na escuridão, e estranhos cânticos levados nos ventos; cânticos e rituais esquecidos há séculos, exceto como fórmulas sem significado, murmuradas ao lado de lares nas montanhas, em aldeias cujos habitantes diferiam estranhamente do povo dos vales.

Ninguém sabia o motivo para estes conclaves, exceto Orastes, que freqüentemente acompanhava o pythoniano, e em cujas feições crescia uma sombra desvairada.

Mas em pleno fluxo da primavera, um súbito sussurro passou pelo reino que afundava, e acordou a terra para uma vida ansiosa. Ele veio como um vento sussurrante trazido do sul, despertando homens afundados na apatia do desespero. Mas como ele começou a chegar, ninguém conseguia dizer de fato. Alguns falavam de uma estranha e sombria mulher velha, a qual desceu das montanhas com seu cabelo soprado pelo vento, e um grande lobo cinza que a seguia como se fosse um cão. Outros sussurravam sobre os sacerdotes de Asura, que se moviam às escondidas, como fantasmas furtivos, da Gunderlândia até as fronteiras de Poitain, e para as aldeias nas florestas dos bossonianos.

Entretanto, a notícia chegou, e a revolta correu como fogo ao longo das fronteiras. Distantes guarnições nemédias foram assaltadas e massacradas, bandos de pilhagem foram despedaçados; o oeste se armou, e havia um ar diferente ao redor da revolta – uma resolução feroz e uma fúria inspirada, mais do que o frenético desespero que havia motivado as revoltas precedentes. Não eram apenas as pessoas comuns; os barões estavam fortificando seus castelos e desafiando os governadores das províncias. Tropas de bossonianos foram vistas se movendo ao longo dos limites das fronteiras: homens atarracados e resolutos em gorros de aço e brigantinas, com longos arcos em suas mãos. Da inerte estagnação, dissolução e ruína, o reino estava subitamente vivo, vibrante e perigoso. Desse modo, Amalric mandou apressadamente uma mensagem para Tarascus, o qual veio com um exército.

No palácio real de Tarantia, os dois reis e Amalric discutiam a revolta. Eles não haviam enviado mensagem para Xaltotun, que estava imerso em seus estudos místicos nas colinas nemédias. Desde aquele dia sangrento, no vale do Valkia, eles não o haviam chamado para ajudá-los com sua magia; e ele havia se afastado, se comunicando muito pouco com eles e aparentemente indiferente às suas intrigas.

Nem haviam mandado mensagens para Orastes, mas ele veio, e estava branco como a espuma soprada diante da tempestade. Ele se encontrava na câmara de cúpula de ouro, onde os reis faziam um conclave, e eles observavam assombrados o seu olhar fixo e desvairado, o medo que eles nunca imaginaram existir na mente de Orastes.

- Você está cansado, Orastes. – disse Amalric – Sente-se neste divã, e mandarei um escravo lhe trazer vinho. Você cavalgou muito...

Orastes recusou o convite:

- Matei três cavalos na estrada que parte de Belverus. Não posso beber vinho, não posso descansar, até dizer o que tenho a dizer.

Ele deu um passo para trás e para a frente, como se alguma chama interna não o deixasse ficar imóvel, e, parando diante de seus companheiros espantados:

- Quando usamos o Coração de Ahriman para trazer um morto de volta à vida – Orastes disse abruptamente –, nós não pesamos as conseqüências de se violar o pó negro do passado. A culpa é minha, e a falta também. Só pensamos nas ambições de nós quatro, esquecendo quais esse homem poderia ter. E soltamos um demônio sobre a terra, um diabo inexplicável para a humanidade comum. Já penetrei profundamente no mal, mas há um limite para onde eu, ou qualquer um de minha raça e era, possa ir. Meus ancestrais eram homens limpos, sem qualquer mancha demoníaca; apenas eu desci às covas, e só posso pecar ao alcance de minha individualidade pessoal. Atrás de Xaltotun jazem mil séculos de magia negra e diabolismo, uma antiga tradição do mal. Ele está além da nossa concepção, não apenas porque seja por si só um feiticeiro, mas também porque ele é filho de uma raça de feiticeiros.

“Eu vi coisas que destruíram minha alma. No coração das colinas adormecidas, observei Xaltotun comungar com as almas dos condenados, e invocar os antigos demônios da esquecida Acheron. Vi os amaldiçoados descendentes daquele império amaldiçoado prestarem culto a ele, e o saudarem como seu sumo sacerdote. Já vi o que ele planeja – e eu lhes digo que é nada menos do que a restauração do antigo, negro e pavoroso reino de Acheron!”.

- O que quer dizer? – indagou Amalric – Acheron é pó. Não há sobreviventes o bastante para fazerem um império. Nem mesmo Xaltotun pode restaurar o pó de 3 mil anos.

- Você sabe pouco de seus poderes negros. – Orastes respondeu sombriamente – Eu vi as próprias colinas adquirirem um aspecto estranho e antigo sob o encantamento de suas palavras mágicas. Vislumbrei, como sombras por trás das verdades, as formas foscas de vales, florestas, montanhas e lagos que não são como hoje, mas como foram no passado obscuro... até senti, mais do que vislumbrar, as torres púrpuras da esquecida Python tremeluzindo como imagens de bruma na penumbra.

“E, no último conclave em que eu o acompanhei, a compreensão de sua magia finalmente veio a mim, enquanto os tambores soavam e adoradores em forma de animais uivavam com suas cabeças no pó. Eu lhes digo que ele quer restaurar Acheron através de sua magia, pela feitiçaria de um gigantesco sacrifício sangrento, tal como o mundo nunca viu. Ele pretende escravizar o mundo e, com um dilúvio de sangue, varrer o presente e restaurar o passado!”.

- Você está louco! – exclamou Tarascus.

- Louco? – Orastes lançou um olhar desvairado sobre ele – Pode algum homem ver o que vi e continuar totalmente são? Mas eu falo a verdade. Ele planeja o retorno de Acheron, com suas torres, magos, reis e horrores, como foi no passado. Os descendentes de Acheron irão servi-lo como um núcleo sobre o qual reconstruir, mas é o sangue e os corpos do povo do mundo atual que fornecerão a argamassa e as pedras para a reconstrução. Não sei lhes dizer como. Meu próprio cérebro dá voltas quando tento entender. Mas eu vi! Acheron será Acheron novamente, e até mesmo as colinas, florestas e rios reassumirão seu antigo aspecto. Por que não? Se eu, com meu pequeno estoque de conhecimento, consegui ressuscitar um homem morto há 3.000 anos, por que o maior feiticeiro do mundo não pode trazer de volta à vida um reino morto há 3 mil anos? Do pó se erguerá Acheron às ordens dele.

- Como poderemos impedi-lo? – Tarascus perguntou, impressionado.

- Só há uma maneira. – respondeu Orastes – Devemos roubar o Coração de Ahriman!

- Mas eu... – começou involuntariamente Tarascus, mas ele logo fechou a boca.

Ninguém havia notado isso, e Orastes prosseguia:

- É uma força que pode ser usada contra ele. Com essa jóia em minhas mãos, eu posso enfrentá-lo. Mas como iremos roubá-la? Ele a escondeu em algum lugar secreto, do qual nem mesmo um ladrão zamoriano poderia roubá-la. Não há como eu saber onde é o esconderijo. Se ele pudesse dormir novamente o sono do lótus negro... mas a última vez em que ele dormiu foi após a batalha do Valkia, mas ele estava cansado por causa da grande magia que havia praticado, e...

A porta estava fechada e trancada, mas ela se abriu silenciosamente, e Xaltotun apareceu diante deles – calmo, tranqüilo e passando a mão na barba patriarcal; mas as luzes bruxuleantes do inferno lhe palpitavam nos olhos.

- Eu lhe ensinei demais. – ele disse calmamente, apontando um dedo como um sinal de condenação para Orastes. E, antes que alguém pudesse se mover, ele havia lançado um punhado de pó no chão próximo aos pés do sacerdote, que parecia um homem transformado em mármore. O pó pegou fogo e ardeu: uma serpentina azul de fumaça se ergueu e oscilou ao redor de Orastes, numa fina espiral. E, quando esta ergueu-se ao redor de seus ombros, ela se enroscou ao redor de seu pescoço com uma rapidez chicoteante que se assemelhava ao ataque de uma cobra. O grito de Orastes foi engasgado a um gorgolejo. Suas mãos voaram até o pescoço, seus olhos se arregalaram e sua língua apareceu; então, a fumaça sumiu e se foi, e Orastes desabou morto ao chão.

Xaltotun bateu palmas e dois homens entraram; homens freqüentemente vistos em sua companhia – pequenos e repulsivamente escuros, com olhos vermelhos e oblíquos, e dentes pontiagudos como os de ratos. Eles não falaram. Erguendo o corpo, levaram-no dali.

Pondo o assunto de lado com um abanar da mão, Xaltotun se sentou diante da mesa de marfim, ao redor da qual se sentavam os reis pálidos.

- Por que estão em conclave? – ele exigiu saber.

- Os aquilonianos se revoltaram no oeste. – respondeu Amalric, se recuperando do pavoroso choque que a morte de Orastes lhe havia causado – Os idiotas acreditam que Conan está vivo e se aproximando à frente de um exército poitainiano, para reclamar seu reino. Se ele tivesse reaparecido imediatamente após Valkia, ou se um rumor sobre ele estar vivo houvesse circulado, as províncias centrais não teriam se revoltado sob a liderança dele, pois temeriam seus poderes. Mas eles ficaram tão desesperados sob o mau governo de Valerius, que estão prontos para seguir qualquer homem que possa uni-los contra nós, e preferem a morte rápida à tortura e à contínua miséria.

“Claro que a história demorou teimosamente na terra, de que Conan não foi realmente morto no Valkia, mas só recentemente o povo a aceitou. Mas Pallantides voltou de seu exílio em Ophir, jurando que o rei estava doente em sua tenda naquele dia, e que um soldado vestia a armadura dele; e um escudeiro, que só recentemente se recuperou de um golpe de maça recebido no Valkia, confirma sua história – ou pretende confirmar.

“Uma velha, com um lobo de estimação, tem perambulado por toda a terra, proclamando que o Rei Conan vive, e retornará algum dia para reclamar a coroa. E, por último, os malditos sacerdotes de Asura cantam a mesma canção. Afirmam que a notícia que chegou a eles, por meios misteriosos, é a de que Conan está retornando para reconquistar seu território. Não consigo capturá-la nem a eles. Isto é claro, é um truque de Trocero. Meus espiões me contam que há evidências incontestáveis de que os poitainianos estão se reunindo para invadir a Aquilônia. Acredito que Trocero apresentará algum simulador, afirmando que ele é o Rei Conan”.

Tarascus riu, mas não havia convicção em sua risada. Ele sentiu furtivamente uma cicatriz sob a jaqueta sem mangas, e se lembrou de corvos que grasnavam na trilha de um fugitivo; lembrou-se do corpo de seu escudeiro, Arideus, trazido de volta das montanhas da fronteira, horrivelmente mutilado, seus horrorizados soldados disseram, por um grande lobo cinza. Mas ele também se lembrou de uma jóia vermelha, roubada de um cofre dourado enquanto um feiticeiro dormia, e não disse nada.

E Valerius se lembrou de um nobre moribundo, que ofegava uma história de medo, e se lembrou de quatro khitaianos que desapareceram nos labirintos do sul, e nunca mais retornaram. Mas ele segurou a língua, pois o ódio e a suspeita de seus aliados lhe corroíam como um verme, e ele não desejava mais de que ver ambos os rebeldes e nemédios serem trancados no aperto da morte.

Mas Amalric exclamou:

- É um absurdo sonhar que Conan vive!

Como resposta, Xaltotun lançou um rolo de pergaminho sobre a mesa.

Amalric o pegou e olhou ferozmente. De seus lábios, explodiu um grito furioso e incoerente. Ele leu:

“Para Xaltotun, grande faquir da Nemédia: Cão de Acheron, estou retornando ao meu reino, e pretendo pendurar seu couro numa sarça.
CONAN”
.

- Uma falsificação! – exclamou Amalric.

Xaltotun negou com a cabeça:

- É legítima. Eu comparei com a assinatura nos documentos reais nas bibliotecas da corte. Ninguém conseguiria imitar aquele vigoroso rabisco.

- Então, se Conan está vivo – murmurou Amalric –, esta revolta não será como as outras, pois ele é o único homem vivo que pode unir os aquilonianos. Mas – ele protestou –, este não é como Conan. Por que ele iria nos pôr em guarda com sua bazófia? É de se pensar que ele atacaria sem avisar, à moda dos bárbaros.

- Nós já fomos avisados. – lembrou Xaltotun – Nossos espiões já falaram de preparativos para a guerra em Poitain. Ele não cruzaria as montanhas sem o nosso conhecimento; por isso, ele nos enviou seu desafio de forma característica.

- Por que para você? – indagou Valerius – Por que não para mim, ou para Tarascus?

Xaltotun lançou seu olhar impenetrável sobre o rei.

- Conan é mais sábio do que você. – ele finalmente disse – Ele já sabe o que vocês, reis, ainda têm que saber... que não é Tarascus, nem Valerius, nem Amalric, mas Xaltotun quem é o verdadeiro senhor das nações ocidentais.

Eles não responderam; ficaram olhando-o fixamente, atacados por uma entorpecente percepção da verdade de sua afirmação.

- Não há outra estrada para mim, exceto a trilha imperial. – disse Xaltotun – Mas, primeiro, devemos esmagar Conan. Não sei como ele escapou de mim em Belverus, pois o conhecimento do que aconteceu, enquanto eu estava no sono do lótus negro, me é negado. Mas ele está no sul, formando um exército. É seu último e desesperado golpe, possibilitado apenas pelo desespero do povo que sofreu sob Valerius. Deixem que eles se revoltem. Tenho todos eles na palma de minha mão. Esperaremos até ele avançar contra nós, e então o esmagaremos de uma vez por todas.

“Então, esmagaremos Poitain, Gunderlândia e os estúpidos bossonianos. Depois deles, Ophir, Argos, Zingara, Koth – todas as nações do mundo serão unidas num vasto império. Vocês governarão como meus sátrapas, e como meus capitães, serão maiores do que os reis de hoje. Sou inconquistável, pois o Coração de Ahriman está escondido onde nenhum homem poderá usá-lo contra mim novamente”.

Tarascus desviou o olhar, temendo que Xaltotun lesse seus pensamentos. Ele sabia que o feiticeiro não havia olhado para dentro do cofre dourado, com suas serpentes esculpidas que pareciam dormir, desde que colocara o Coração ali dentro. Por mais estranho que parecesse, Xaltotun não sabia que o Coração havia sido roubado; a estranha jóia estava além ou do outro lado do anel de sua negra sabedoria; seus talentos sobrenaturais não o avisaram de que o cofre estava vazio. Tarascus não acreditava que Xaltotun conhecesse a total extensão das revelações de Orastes, pois o pythoniano não havia mencionado a restauração de Acheron, mas apenas a construção de um novo império terrestre. Tarascus não acreditava que Xaltotun fosse sequer completamente certo de seu poder; se eles precisavam da ajuda dele em suas ambições, ele também precisava da deles. A magia dependia – até certo ponto, afinal de contas – de golpes de espada e de lanças. O rei percebeu o significado disso no olhar furtivo de Amalric; que o feiticeiro use suas artes para ajudá-los a derrotarem seu inimigo mais perigoso. Haveria tempo suficiente para se voltarem contra ele. Ainda poderia haver um meio de trapacear este poder negro que eles haviam despertado.


21) Tambores de Perigo

A CONFIRMAÇÃO DA guerra veio quando o exército de Poitain, com um efetivo de 10.000 homens, marchou através dos desfiladeiros meridionais, com estandartes ondulantes e o tremeluzir do aço. E, à frente dele, os espiões juravam, cavalgava uma figura gigante em armadura negra, com o leão real da Aquilônia trabalhado a ouro sobre o peito da rica túnica de seda, sobre a armadura. Conan estava vivo! O rei estava vivo! Agora não havia dúvidas disso nas mentes dos homens, fossem eles amigos ou inimigos.

Com as notícias da invasão vinda do sul, também chegou uma notícia, trazida por velozes mensageiros que cavalgavam penosamente, de que uma hoste de gunderlandeses estava se dirigindo para o sul, reforçada pelos barões do noroeste e os bossonianos do norte. Tarascus marchava com 31.000 homens para Galparan, no rio Shirki, o qual os gunderlandeses deveriam cruzar para atacarem as cidades ainda dominadas pelos nemédios. O Shirki era um rio veloz e turbulento, que corria para o sudeste através de desfiladeiros e profundos vales rochosos, e havia poucos lugares onde um exército pudesse atravessar naquela época do ano, quando a correnteza estava quase no volume máximo com o derretimento das neves. Toda a região a leste do Shirki estava nas mãos dos nemédios, e era lógico admitir que os gunderlandeses tentariam cruzá-lo, ou para Galparan, ou para Tanasul, que ficava ao sul de Galparan. Reforços da Nemédia eram diariamente esperados, até chegar a notícia de que o rei de Ophir estava fazendo manifestações hostis na fronteira sul da Nemédia; e dispensar mais algumas tropas seria expor a Nemédia ao risco de uma incursão vinda do sul.

Amalric e Valerius saíram de Tarantia com 25 mil homens, deixando uma guarnição suficientemente grande para desencorajar revoltas nas cidades durante sua ausência. Eles ansiavam encontrar e esmagar Conan, antes que as forças rebeldes do reino pudessem se juntar a ele.

O rei e seus poitainianos haviam cruzado as montanhas, mas não houve nenhum verdadeiro colidir de armas, nenhum ataque a cidades ou fortalezas. Conan havia aparecido e desaparecido. Aparentemente, ele havia virado na direção oeste, através da região selvagem, pouco povoada e montanhosa, e adentrado as fronteiras bossonianas e recrutado novatos no caminho. Amalric e Valerius, com seu exército – nemédios, renegados aquilonianos e mercenários ferozes –, se moviam pela terra em raiva frustrada, procurando por um inimigo que não aparecia.

Amalric achou impossível obter mais do que vagas notícias indefinidas sobre os movimentos de Conan. Os grupos de batedores saíam a cavalo e nunca retornavam, e não era incomum achar um espião crucificado num carvalho. O campo estava em movimento e golpeando, enquanto camponeses atacavam – selvagem, mortal e secretamente. Tudo o que Amalric sabia com exatidão era que uma grande força, de gunderlandeses e bossonianos setentrionais, estava em algum lugar ao norte dele, além do Shirki, e que Conan, com uma força menor de poitainianos e bossonianos meridionais, estava em algum lugar ao sudoeste dali.

Começou a temer que, se ele e Valerius avançassem mais para dentro da região selvagem, Conan pudesse iludi-los completamente, marchar ao redor deles e invadir as províncias centrais atrás deles. Amalric recuou do vale do Shirki e acampou numa planície, a um dia de cavalgada de Tanasul. Aguardaram lá. Tarascus manteve sua posição em Galparan, pois temia que as manobras de Conan tivessem a intenção de arrastá-lo para o sul, e assim deixarem os gunderlandeses adentrarem o reino na travessia norte.

Xaltotun compareceu ao acampamento de Amalric, em sua carruagem puxada pelos cavalos sobrenaturais que nunca se cansavam, e adentrou a tenda de Amalric, onde o barão conferenciava com Valerius sobre um mapa estirado numa mesa de acampamento, feita de marfim.

Xaltotun amassou este mapa e o lançou para o lado.

- Aquilo que seus batedores não conseguem descobrir para você – ele disse –, meus espiões me contam, embora as informações sejam confusas e imperfeitas, como se forças invisíveis estivessem trabalhando contra mim.

“Conan está avançando pelo rio Shirki com 10 mil poitainianos, 3 mil bossonianos do sul, e barões do oeste e sul com os seguidores até o número de 5 mil. Um exército, de 30 mil gunderlandeses e bossonianos do norte, marcha para o sul para se juntar a ele. Eles haviam mantido contato através de comunicações secretas usadas pelos malditos sacerdotes de Asura, os quais parecem estar se opondo a mim, e aos quais darei de comida a uma serpente quando a batalha terminar – eu juro por Set!

“Ambos os exércitos são liderados para a travessia em Tanasul, mas não acredito que os gunderlandeses cruzarão o rio. Creio que Conan o atravessará e se juntará a eles”.

- Por que Conan cruzaria o rio?

- Porque é vantagem para ele adiar a batalha. Quanto mais ele esperar, mais forte ficará, e mais precária será nossa posição. As colinas do outro lado do rio estão apinhadas de pessoas ardentemente leais à causa dele... homens arruinados, refugiados, fugitivos da crueldade de Valerius. Homens de todo o reino estão se apressando para juntar-se ao exército dele, sozinhos e aos grupos. Diariamente, grupos de nossos exércitos são emboscados e despedaçados pelos camponeses. Revoltas crescem nas províncias centrais, e logo irão estourar em rebelião aberta. As guarnições que deixamos não são suficientes, e não podemos esperar por reforços da Nemédia, por enquanto. Eu vejo a mão de Pallantides nesse conflito na fronteira ophiriana. Ele tem parentes em Ophir.

“Se não pegarmos e esmagarmos logo Conan, as províncias se revoltarão atrás de nós. Teremos que voltar a Tarantia, para defendermos aquilo que tomamos; e teremos que abrir caminho à força através de um país em rebelião, com toda a força de Conan atrás de nós, e então agüentar o cerco na própria cidade, com inimigos tanto dentro quanto fora dela. Não, não podemos esperar. Temos que destruir Conan, antes que seu exército fique grande demais e antes que as províncias centrais se revoltem. Com sua cabeça pendurada no alto do portão em Tarantia, vocês verão o quão rapidamente a rebelião se desmantelará”.

- Por que não põe um feitiço no exército dele, para matar a todos? – perguntou Valerius, meio zombeteiro.

Xaltotun fitou o aquiloniano, como se lesse a total extensão da loucura zombeteira que se escondia naqueles olhos indóceis.

- Não se preocupe. – ele finalmente disse – Minhas artes irão finalmente esmagar Conan, como um lagarto sob o calcanhar. Mas até mesmo a feitiçaria é ajudada por lanças e espadas.

- Se ele cruzar o rio e manter sua posição nas Colinas Goralianas, será difícil desalojá-lo. – disse Almaric – Mas se o pegarmos no vale, deste lado do rio, poderemos derrotá-lo. Conan está a que distância de Tanasul?

- Na velocidade em que ele está marchando, poderá alcançar a travessia amanhã à noite. Seus homens são vigorosos, e ele os está guiando duramente. Ele deve chegar lá pelo menos um dia antes dos gunderlandeses.

- Ótimo! – Amalric bateu na mesa com o punho fechado – Posso alcançar Tanasul antes dele. Mandarei um cavaleiro para Tarascus, ordenando que ele me siga até Tanasul. Quando ele chegar, teremos impedido Conan de cruzar o rio e destruído-o. Então, nossa força combinada pode cruzar o rio e cuidar dos gunderlandeses.

Xaltotun sacudiu impacientemente a cabeça:

- Um ótimo plano se estivéssemos lidando com qualquer um, exceto Conan. Mas seus 24 mil homens não são suficientes para destruir os 18 mil dele, antes que os gunderlandeses venham. Eles lutarão com o desespero de panteras feridas. E imagine se os gunderlandeses chegarem enquanto os exércitos estiverem engalfinhados em batalha? Seremos pegos entre dois fogos, e destruídos antes que Tarascus possa chegar. Ele alcançará Tanasul tarde demais para lhe ajudar.

- O que faremos, então? – indagou Amalric.

- Avance, com toda a sua tropa, contra Conan. – respondeu o homem de Acheron – Mande um cavaleiro, ordenando a Tarascus que se junte a nós aqui. Esperaremos a chegada dele. Então marcharemos juntos até Tanasul.

- Mas, enquanto esperamos – protestou Amalric –, Conan cruzará o rio e se juntará aos gunderlandeses.

- Conan não cruzará o rio. – respondeu Xaltotun.

Amalric ergueu bruscamente a cabeça, e encarou aqueles misteriosos olhos escuros:

- O que quer dizer?

- Suponha que houvesse chuvas torrenciais bem ao norte, na nascente do Shirki. Suponha que o rio ficasse numa inundação, a qual tornasse a travessia para Tanasul impossível. Desse modo, não poderíamos trazer toda a nossa tropa sem pressa, pegar Conan neste lado do rio e destruí-lo, e então, quando a enchente diminuir, o que eu acho que aconteceria no dia seguinte, não poderíamos cruzar o rio e destruir os gunderlandeses? Deste modo, poderíamos usar toda nossa força contra cada uma daquelas tropas, uma após a outra.

Valerius riu, como sempre ria diante da perspectiva da ruína, fosse de um amigo ou de um inimigo, e passou a mão inquieta pelas rebeldes mechas loiras. Amalric encarou o homem de Acheron, numa mistura de medo e admiração.

- Se pegarmos Conan no vale do Shirki, com as cadeias de colinas à sua direita e o rio em enchente à sua esquerda – ele admitiu –, sem toda a tropa, podemos aniquilá-lo. Você acha... tem certeza... você acredita que essas chuvas cairão?

- Vou para minha tenda. – respondeu Xaltotun, se levantando – A feitiçaria não é realizada pelo giro de uma vara de condão. Mande um cavaleiro para Tarascus. E não deixe ninguém se aproximar de minha tenda.

A última ordem era desnecessária. Nenhum homem naquele exército poderia ser subornado a aproximar-se daquela negra e misteriosa tenda de seda, cuja entrada estava sempre fechada. Ninguém, exceto Xaltotun, entrava nela, embora vozes fossem freqüentemente ouvidas saindo de lá; suas paredes às vezes ondulavam sem vento, e uma música sobrenatural saía dela. Às vezes, nas profundezas da meia-noite, suas paredes de seda eram iluminadas por chamas vermelhas que palpitavam lá dentro, delineando silhuetas disformes que passavam de um lado a outro.

Deitado em sua própria tenda naquela noite, Amalric ouviu o ribombar constante de um tambor na tenda de Xaltotun; ele ribombava constantemente, e ocasionalmente o nemédio era capaz de jurar que uma voz grave e coaxante se misturava ao pulsar do tambor. E ele estremeceu, pois sabia que aquela voz não era a de Xaltotun. O tambor continuava sussurrando e murmurando como um profundo trovão, ouvido à distância no horizonte setentrional. Em todas as outras partes do céu, as grandes estrelas brilhavam brancas. Mas o relâmpago distante palpitava incessantemente, como o brilho escarlate da luz de uma fogueira numa minúscula espada curva.

Ao pôr-do-sol do dia seguinte, Tarascus avançou com seu exército, empoeirado e cansado da dura marcha, os homens a pé horas atrás dos cavaleiros. Eles acamparam na planície próxima ao acampamento de Amalric e, ao amanhecer, os exércitos combinados se moveram para oeste.

À frente deles, vagava um grupo de batedores, e Amalric lhes aguardava impaciente, para retornarem e falarem dos poitainianos emboscados juntos a uma furiosa enchente. Mas, quando os batedores encontraram a coluna, foi com a notícia de que Conan havia cruzado o rio!

- O quê? – exclamou Amalric – Ele atravessou antes da enchente?

- Não houve enchente. – responderam os batedores, embaraçados – No final da noite passada, ele avançou impetuosamente até Tanasul, com seu exército.

- Não houve enchente? – exclamou Xaltotun, surpreendido pela primeira vez no conhecimento de Amalric – Impossível! Houve chuvas vigorosas sobre as nascentes do Shirki, na noite passada e na anterior!

- Deve ter havido, excelência. – respondeu o batedor – De fato, a água estava lamacenta, e o povo de Tanasul disse que o rio subiu talvez uns 30 centímetros ontem; mas aquilo não foi suficiente para impedir a travessia de Conan.

A feitiçaria de Xaltotun havia falhado! O pensamento martelou no cérebro de Amalric. Seu horror por este estranho homem saído do passado havia crescido firmemente, desde aquela noite em Belverus, quando ele havia visto uma múmia marrom e enrugada inchar e se transformar num homem vivo. E a morte de Orastes havia transformado o horror latente em medo ativo. Em seu coração, havia uma convicção medonha de que aquele homem – ou demônio – era invencível. Mas agora, ele tinha uma prova inegável de seu fracasso.

Mas, mesmo o mais poderoso dos feiticeiros pode falhar ocasionalmente, pensou o barão. Seja como for, ele não ousou se opor ao homem de Acheron... ainda. Orastes estava morto, se contorcendo só Mitra sabia em qual inferno sem nome; e Amalric sabia que sua espada dificilmente triunfaria, onde a sabedoria negra do sacerdote renegado falhara. Qual horrível abominação Xaltotun planejava, só o imprevisível futuro sabia. Conan e seu exército eram uma ameaça presente, contra a qual a feitiçaria de Xaltotun seria necessária, antes que o jogo estivesse completamente terminado.

Eles chegaram a Tanasul, uma pequena povoação fortificada, onde um baixio de rochas formava uma ponte natural de um lado a outro do rio, sempre transitável, exceto nas épocas de maior enchente. Batedores trouxeram as notícias de que Conan havia mantido sua posição nas Colinas Goralianas, as quais começavam a se erguer umas poucas milhas além do rio. E, logo antes do pôr-do-sol, os gunderlandeses haviam chegado ao acampamento dele.

Amalric olhou para Xaltotun – inescrutável e estranho à luz das tochas chamejantes. A noite havia caído.

- E agora? Sua magia falhou. Conan nos confronta com um exército quase tão forte quanto o nosso, e ele tem a vantagem da posição. Temos de escolher entre dois males: acampar aqui e esperar o ataque dele, ou nos precipitarmos de volta a Tarantia e aguardar reforços.

- Estaremos arruinados se esperarmos. – respondeu Xaltotun – Atravesse o rio e acampe na planície. Atacaremos ao amanhecer.

- Mas a posição dele é muito forte! – exclamou Amalric.

- Idiota! – uma rajada de cólera rompeu o verniz da calma do feiticeiro – Já se esqueceu do Valkia? Porque algum obscuro princípio elemental evitou a enchente, você me julga indefeso? Eu esperava que suas lanças exterminassem nossos inimigos; mas não tema: minha feitiçaria esmagará o exército dele. Ele nunca mais verá outro pôr-do-sol. Atravesse o rio!

Eles atravessaram sob a luz das tochas. Os cascos dos cavalos tilintavam na ponte pedregosa e chapinharam pelos baixios. O brilho das tochas, nos escudos e nas placas peitorais, se refletia vermelho na água escura. A ponte rochosa era larga onde eles atravessavam, mas mesmo assim era mais de meia-noite, antes que o exército pudesse acampar na planície do outro lado. Acima deles, podiam ver fogueiras cintilando vermelhas à distância. Conan estava encurralado nas Colinas Goralianas, as quais haviam servido, mais de uma vez no passado, como último local de resistência de um rei aquiloniano. Amalric deixou sua tenda e caminhou inquieto pelo acampamento.

Uma incandescência sobrenatural palpitava na tenda de Xaltotun, e de tempos em tempos, um grito demoníaco açoitava o silêncio, e havia um baixo murmúrio sinistro de um tambor que sussurrava mais do que ribombava.

Amalric, com seus instintos aguçados pela noite e circunstâncias, sentia que Xaltotun era enfrentado por mais do que forças físicas. Dúvidas, sobre o poder do feiticeiro, o acometiam. Ele olhou para as fogueiras lá em cima dele, e seu rosto ficou sombrio. Ele e seu exército estavam bem no centro de uma região hostil. Lá no alto, por entre aquelas colinas, se escondiam milhares de figuras lupinas, de cujos corações e almas toda emoção e esperança haviam sido assoladas, exceto por um ódio desvairado por seus conquistadores e um desejo louco por vingança. Derrota significava aniquilação, retirada através de uma terra apinhada de inimigos loucos por sangue. E, na manhã seguinte, ele deveria lançar seu exército contra o lutador mais feroz das nações ocidentais, e sua horda desesperada. Se Xaltotun falhasse daquela vez...

Meia-dúzia de homens armados saíram das sombras. A luz das fogueiras brilhava em suas placas peitorais e nas cristas de seus capacetes. No meio deles, eles meio conduziam, meio arrastavam uma figura magra em roupas esfarrapadas. Fazendo saudação, eles falaram:

- Milorde, este homem veio até as sentinelas e disse que desejava falar com o Rei Valerius. É um aquiloniano.

Ele mais parecia um lobo – um lobo cicatrizado por armadilhas. Velhos ferimentos, que somente grilhões fazem, apareciam em seus pulsos e tornozelos. Uma grande cicatriz, a marca de um ferro quente, lhe desfigurava o rosto. Seus olhos miravam através do emaranhado de seu cabelo desgrenhado, quando ele meio se agachou diante do barão.

- Quem é você, cão imundo? – exigiu o nemédio.

- Chamam-me Tibérias. – respondeu o homem, e seus dentes crepitaram num espasmo involuntário – Vim lhe contar como pegar Conan numa armadilha.

- Um traidor, hein? – roncou o barão.

- Dizem que você tem ouro. – vociferou o homem, tremendo sob os farrapos – Dê-me um pouco! Dê-me ouro, e eu lhe mostrarei como derrotar o rei! – Seus olhos vidraram e se arregalaram, e suas mãos, estiradas e erguidas, estavam estendidas como garras palpitantes.

Amalric encolheu os ombros em aversão. Mas nenhuma ferramenta era desprezível demais para ele usar.

- Se você diz a verdade, terá mais ouro do que puder carregar. – ele disse – Se você for um mentiroso e um espião, vou lhe crucificar de cabeça para baixo. Tragam-no.

Na tenda de Valerius, o barão apontou o homem que se agachava trêmulo diante deles, enroscando os farrapos ao redor de si.

- Ele diz que conhece uma forma de nos ajudar na manhã seguinte. Precisamos de ajuda, caso o plano de Xaltotun não seja melhor do que provou ser até agora. Prossiga, cão.

O corpo do homem se contorceu em estranhas convulsões. As palavras saíam atropeladamente:

- Conan está acampado à frente do Vale dos Leões. Ele tem a forma de um leque, com colinas íngremes em ambos os lados. Se quiser atacá-lo amanhã, terá de marchar diretamente pelo vale. Você não consegue galgar as colinas em nenhum lado. Mas, se o Rei Valerius dignar-se a aceitar meu serviço, eu o guiarei através das colinas e mostrarei como atacar o Rei Conan por trás. Mas para termos sucesso, devemos começar logo. São muitas horas de cavalgada, pois é necessário avançar milhas a oeste, depois milhas para norte, e em seguida virar para leste, e então adentrar o Vale dos Leões por trás, como os gunderlandeses fizeram.

Amalric hesitava, puxando o queixo com força. Naqueles tempos caóticos, não era raro encontrar homens querendo vender suas almas por umas poucas peças de ouro.

- Se me guiar errado, morrerá. – disse Valerius – Está consciente disso, não está?

O homem tremeu, mas seus olhos não titubearam:

- Se eu lhe trair, me mate!

- Conan não dividiria seu exército. – refletiu Amalric – Ele precisará de todos os seus homens para repelir nosso ataque. Ele não pode dispensar ninguém para ficar de tocaia nas colinas. Além disso, este sujeito sabe que sua pele depende dele lhe guiar como prometeu. Um cão como ele iria se sacrificar? Bobagem! Não, Valerius, eu acredito que este homem seja honesto.

- Ou um ladrão pior que a maioria, por trair seu libertador. – riu Valerius – Muito bem. Seguirei o cão. Quantos homens você pode me arranjar?

- Cinco mil seriam suficientes. – respondeu Amalric – Um ataque-surpresa por trás deles os deixará confusos, e isso será o bastante. Esperarei seu ataque por volta do meio-dia.

- Você irá saber quando eu atacar. – respondeu Valerius.

Quando Amalric retornou à sua tenda, ele notou, com satisfação, que Xaltotun ainda estava em seu pavilhão, a julgar pelos gritos de gelar o sangue, que saíam estremecendo em direção ao ar da noite, de tempos em tempos. Quando, logo depois, ouviu o tilintar de aço e o retinir de freios de cavalo, na escuridão lá fora, ele sorriu sombriamente. Valerius já havia quase lhe servido aos propósitos. O barão sabia que Conan era como um leão ferido, que rasga e dilacera mesmo em suas convulsões de morte. Quando Valerius atacasse por trás, os golpes desesperados do cimério poderiam muito bem varrer seu rival da existência, antes que ele próprio morresse. Tanto melhor. Amalric sentiu que poderia muito bem dispensar Valerius, uma vez que este houvesse preparado o caminho para uma vitória nemédia.

Os 5 mil homens que acompanhavam Valerius eram, em sua maioria, endurecidos renegados aquilonianos. Sob a quieta luz das estrelas, eles saíam do acampamento adormecido, seguindo a direção oeste das grandes massas negras que se erguiam contra as estrelas diante deles. Valerius cavalgava à frente deles e, ao seu lado, cavalgava Tibérias, com uma tira de couro amarrada no pulso e segura por um soldado fortemente armado, o qual cavalgava no seu outro lado. Outros se mantinham bem próximos, atrás dele, com as espadas desembainhadas.

- Se nos trair, morrerá instantaneamente. – salientou Valerius – Não conheço todos os caminhos destas colinas, mas conheço o bastante sobre a configuração geral da região para saber as direções que devemos tomar para chegarmos atrás do Vale dos Leões. Cuidado para não nos desencaminhar.

O homem inclinou rapidamente a cabeça e seus dentes bateram, quando ele loquazmente assegurou lealdade ao seu captor, olhando estupidamente para a bandeira que pairava sobre ele: a serpente dourada da velha dinastia.

Ladeando as extremidades das colinas que fechavam o Vale dos Leões, eles fizeram uma ampla curva para o oeste. Após uma hora de cavalgada, eles viraram para o norte, avançando com esforço através de colinas selvagens e ásperas, seguindo trilhas obscuras e caminhos tortuosos. O nascer do sol os encontrou a algumas milhas ao noroeste da posição de Conan, e lá o guia virou para leste e os conduziu através de uma confusão de labirintos e penhascos. Valerius acenou com a cabeça, julgando sua posição pelos vários picos que se erguiam sobre os outros. Ele havia mantido seu senso de orientação, e sabia que ainda estavam indo na direção certa.

Mas agora, sem aviso, uma lanosa massa cinza desceu do norte aos vagalhões, cobrindo as inclinações e se espalhando pelos vales. Ela apagou o sol; o mundo se tornou um cego vazio cinza, no qual a visibilidade se limitava a uns poucos metros. Mais adiante, veio uma vacilante confusão cega. Valerius praguejou. Não conseguia mais ver os picos que haviam lhe servido como guias. Ele dependeria totalmente do guia traidor. A serpente dourada descaiu no ar sem vento.

Em seguida, o próprio Tibérias parecia confuso; ele parou e olhou incerto ao redor.

- Está perdido, cão? – indagou Valerius asperamente.

- Ouça!

Em algum lugar à frente deles, teve início uma fraca vibração, o retumbar rítmico de um tambor.

- O tambor de Conan! – exclamou o aquiloniano.

- Se estamos suficientemente próximos para ouvirmos o tambor – disse Valerius –, por que não escutamos os gritos e o estrondo de armas? A batalha certamente começou.

- Os desfiladeiros e ventos pregam estranhas peças. – respondeu Tibérias, os dentes batendo com a febre que é comum a muitos dos homens que passaram muito tempo em úmidos calabouços subterrâneos – Ouça! Estão lutando no fundo da vale! – gritou Tibérias – O tambor está tocando nas alturas. Vamos depressa!

Ele avançou diretamente na direção do som do tambor distante, como quem finalmente sabe onde está andando. Valerius seguiu, amaldiçoando a névoa. Então, lhe ocorreu que ela poderia ocultar seu avanço. Conan não conseguiria vê-lo chegar. Ele poderia atacar o cimério pelas costas, antes que o sol do meio-dia dissipasse as brumas.

Naquele momento, ele não poderia dizer o que havia em ambos os lados – penhascos, matagais ou desfiladeiros. O tambor pulsava incessantemente, ficando mais alto à medida que avançavam, mas não ouviam mais a batalha. Valerius não tinha idéia da direção para onde eram guiados. Ele se sobressaltou, quando viu paredes cinzas e rochosas avultarem através da fumaça ascendente em ambos os lados, e percebeu que estava cavalgando através de um desfiladeiro estreito. Mas o guia não demonstrou sinal de nervosismo, e Valerius soltou um suspiro de alívio quando as paredes se alargaram e ficaram invisíveis na bruma. Estavam dentro do desfiladeiro; se alguma armadilha houvesse sido planejada, ela teria sido feita naquela passagem.

Mas agora Tibérias parava novamente. O tambor estava batendo mais alto, e Valerius não conseguia determinar de qual direção o som chegava. Num momento, parecia estar à sua frente; em outro, atrás; em outro, de um lado ou de outro. Valerius olhou impacientemente ao redor, montado em seu cavalo de guerra, com pequenos feixes de névoa se encaracolando ao seu redor, e o orvalho lhe brilhando na armadura. Atrás dele, as longas fileiras de cavaleiros vestidos em aço desapareciam cada vez mais, como fantasmas na bruma.

- Por que está demorando, cão? – ele exigiu.

O homem parecia estar escutando o tambor fantasmagórico. Lentamente, ele se endireitou na sela, virou a cabeça e encarou Valerius; e o sorriso em seus lábios era terrível de se ver.

- A bruma está se dissipando, Valerius. – ele disse, num novo tom de voz – Veja!

O tambor estava mudo. A névoa estava desaparecendo. Primeiro, as cristas dos penhascos ficaram visíveis sobre as nuvens cinzas – altas e espectrais. As névoas ficaram cada vez mais baixas, encolhendo e sumindo. Valerius mudou subitamente de posição sobre os estribos, com um grito que foi ecoado pelos cavaleiros atrás dele. Os penhascos se erguiam em todos os lados deles. Não estavam num vale largo e aberto, como haviam imaginado. Estavam num desfiladeiro sem saída, murado por penhascos perpendiculares, com dezenas de metros de altura. A única entrada ou saída era a estreita garganta pela qual haviam cavalgado.

- Cão! – Valerius golpeou Tibérias em cheio na boca, com o encouraçado punho fechado – Que truque do demônio é este?

Tibérias cuspiu um punhado de sangue e se sacudiu numa risada medonha:

- Um truque que livrará o mundo de um bruto. Veja, cão!

Valerius gritou novamente, mais de fúria que de medo. O desfiladeiro estava bloqueado por um selvagem e terrível grupo de homens, que permaneciam mudos como imagens: homens esfarrapados, de cabelos desgrenhados e com lanças nas mãos – centenas deles. E, no alto dos penhascos, apareceram outros rostos: milhares de rostos – selvagens, magros e ferozes, marcados por fogo, aço e fome.

- Um truque de Conan! – rugiu Valerius.

- Conan nada sabe disso. – riu Tibérias – Foi o plano de homens alquebrados, de homens aos quais você arruinou e transformou em animais. Amalric estava certo. Conan não dividiu o exército dele. Somos a turba que o seguiu, os lobos que se escondiam nestas colinas, os homens sem lar e sem esperança. Este plano foi nosso, e os sacerdotes de Asura nos ajudaram com a névoa. Olhe para eles, Valerius! Cada um carrega a marca de sua mão, no corpo ou no coração!

“Olhe para mim! Você não me conhece; conhece, com esta cicatriz que seu carrasco fez em mim? Você já me conheceu. Outrora fui lorde de Amilius, o homem cujos filhos você assassinou e cuja filha seus mercenários violentaram e mataram. Você disse que eu não me sacrificaria para lhe pôr numa armadilha? Deuses todo-poderosos, se eu tivesse mil vidas, eu daria todas elas para comprar sua condenação!

“E eu a comprei! Olhe para os homens a quem você arruinou, homem morto que outrora fingiu ser rei! A hora deles chegou! Este desfiladeiro é sua tumba. Tente galgar os penhascos: são íngremes, são altos. Tente abrir seu caminho pelo desfiladeiro: lanças lhe barrarão o caminho, matacões lhe esmagarão, vindos de cima! Cão! Estarei à sua espera no inferno!”.

Lançando a cabeça para trás, ele riu até as rochas vibrarem. Valerius se inclinou da sela e deu um golpe para baixo com sua espada, decepando-lhe a omoplata e o peito. Tibérias caiu ao solo, ainda rindo de forma medonha num gorgolejo de sangue jorrando.

Os tambores haviam voltado a tocar, rodeando o desfiladeiro com um trovejar gutural; grandes blocos de pedra caíram esmagando; acima dos gritos dos moribundos, as flechas cantaram desde os penhascos em nuvens cegantes.


22) A Estrada para Acheron

A AURORA MAL clareava o leste, quando Amalric deteve seus exércitos na boca do Vale dos Leões. Este vale estava flanqueado por colinas baixas e onduladas, porém íngremes, e o solo se lançava para o alto numa série de terraços irregulares e naturais. No mais alto destes terraços, o exército de Conan mantinha sua posição, aguardando o ataque. O exército que se juntara ao dele, marchando desde a Gunderlândia, não era composto só de lanceiros. Com eles, haviam chegado 7 mil arqueiros bossonianos, e 4 mil barões e seus ajudantes do norte e oeste, engrossando as fileiras de seus soldados de cavalaria.

Os piqueiros estavam parados numa formação compacta e cuneiforme, na frente estreita do vale. Havia 19 mil deles, quase todos gunderlandeses, embora uns 4 mil fossem aquilonianos das outras províncias. Estavam flanqueados, a ambos os lados, por 5 mil arqueiros bossonianos. Atrás das fileiras dos piqueiros, os cavaleiros permaneciam imóveis sobre os corcéis, lanças erguidas: dez mil cavaleiros de Poitain, 9 mil aquilonianos, barões e seus ajudantes.

Era uma posição forte. Seus flancos não podiam ser atingidos, pois isso significava galgar as colinas íngremes e arborizadas debaixo das flechas e espadas dos bossonianos. Seu acampamento estava logo atrás dele, num vale estreito e com paredes íngremes, o qual, na verdade, era meramente uma continuação do Vale dos Leões, erguendo-se a um nível mais alto. Ele não temia ser surpreendido pela retaguarda, pois as colinas atrás dele estavam cheias de refugiados e homens arruinados, cuja lealdade a ele estava além de qualquer questionamento.

Mas, se sua posição era difícil de ser abalada, era igualmente difícil de se escapar. Era tanto uma armadilha quanto uma fortaleza para os defensores; uma última e desesperada resistência de homens que não esperavam sobreviver, a menos que saíssem vitoriosos. A única via possível de retirada era através do estreito vale à sua retaguarda.

Xaltotun galgou um morro, no lado esquerdo do vale, próximo à entrada larga. Esta colina era mais alta que as outras, e era conhecida como o Altar do Rei, por um motivo há muito esquecido. Somente Xaltotun sabia, e sua memória remontava a três mil anos.

Ele não estava só. Seus dois amigos íntimos – silenciosos, peludos, furtivos e escuros – estavam com ele, e carregavam uma jovem garota aquiloniana, de mãos e pés amarrados. Eles a colocaram sobre uma antiga pedra, a qual se parecia curiosamente com um altar e coroava o cume da colina. Ela havia permanecido lá por longos séculos, desgastada pelos elementos, até muitos acharem que não passava de uma rocha natural de formato curioso. Mas o que ela era, e por que estava ali, Xaltotun há muito se lembrava. Os amigos se afastaram, com suas costas arqueadas como gnomos silenciosos, e Xaltotun ficou sozinho ao lado do altar de pedra, sua barba escura soprada pelo vento, olhando para o vale lá embaixo.

Ele conseguia ver claramente atrás, até o serpenteante Shirki, e adiante para dentro das colinas além da cabeça do vale. Conseguia ver a brilhante cunha de aço, parada na frente dos terraços; as borguinhotas (*) dos arqueiros brilhando por entre as rochas e moitas; os silenciosos cavaleiros, imóveis em seus corcéis, seus pendões pairando acima de seus elmos, suas lanças se erguendo como um matagal eriçado.

Olhando para outra direção, ele pôde ver as fileiras longas e compactas dos nemédios, movendo-se em séries de aço brilhante para dentro da entrada do vale. Atrás deles, as tendas coloridas dos lordes e cavaleiros, e as tendas pardacentas dos soldados comuns, se estendiam até quase o rio.

Como um rio de aço derretido, o exército nemédio fluía para dentro do vale, com o grande dragão escarlate ondulando acima de si. Primeiro, marchavam os arqueiros, em fileiras alinhadas, as balestras meio erguidas, flechas encaixadas e dedos nos gatilhos. Atrás deles, vinham os piqueiros, e atrás destes últimos, a verdadeira força daquele exército: os cavaleiros montados, com suas bandeiras desenroladas ao vento, suas lanças erguidas, conduzindo seus grandes corcéis para diante, como se cavalgassem para um banquete.

E, lá no alto das inclinações, o exército menor da Aquilônia permanecia em silêncio sombrio.

Havia 30 mil cavaleiros nemédios e, como em muitas nações hiborianas, a cavalaria era a espada do exército. Os homens a pé eram usados apenas para abrir o caminho para um ataque dos cavaleiros em armadura. Havia 22 mil destes – piqueiros e arqueiros.

Os arqueiros começaram a atirar à medida que avançavam, sem desfazer as filas, lançando suas rixas com um zumbido e uma ponta afiada. Mas as setas não alcançavam o alvo, ou ricocheteavam nos escudos dos gunderlandeses, sem ferir ninguém. E, antes que os atiradores de balestras pudessem chegar a uma distância que lhes permitisse matar, as flechas dos bossonianos, voando em arcos, lançavam destruição em suas fileiras.

Um pouco disto, uma tentativa fútil diante da troca de tiros, e os arqueiros nemédios começaram a recuar desordenadamente. Suas armaduras eram leves e suas armas não eram páreo para os longos arcos bossonianos. Os arqueiros do oeste estavam protegidos por moitas e rochas. Além disso, os nemédios a pé não tinham o mesmo moral dos homens a cavalo, pois sabiam que estavam sendo usados meramente para abrir caminho para os cavaleiros.

Os atiradores de balestras recuaram e, entre suas linhas abertas, os piqueiros avançaram. Estes eram, em grande parte, mercenários, e seus chefes não tinham remorso em sacrificá-los. Eram destinados a mascararem o avanço dos cavaleiros, até que estes últimos ficassem próximos o bastante para golpearem. Assim, enquanto os balestreiros lançavam suas setas de ambos os flancos a longa distância, os piqueiros marchavam ao alcance da destruição que vinha do alto, e os cavaleiros avançavam atrás deles.

Quando os piqueiros começaram a hesitar diante da selvagem saraivada que assobiava entre eles desde o alto das inclinações, um clarim foi soprado, seus grupos foram divididos à direita e esquerda, e os cavaleiros em cota-de-malha galoparam entre eles.

Eles correram para dentro de uma nuvem de morte aguilhoante. As setas, de mais de 90 cm de comprimento, encontravam todas as fendas em suas armaduras e nas proteções dos corcéis. Cavalos, que se arrastavam para o alto dos terraços cobertos de capim, empinavam e mergulhavam para trás, levando seus montadores consigo. Figuras vestidas em aço alastravam as inclinações. O ataque recuou como uma maré vazante.

De volta ao vale, Amalric remodelou suas fileiras. Tarascus lutava com a espada desembainhada sob o dragão escarlate, mas era o barão de Tor quem comandava aquele dia. Amalric praguejou ao olhar para a floresta de pontas de lanças, visível acima e além dos capacetes dos gunderlandeses. Ele esperava que sua retirada levasse os cavaleiros a saírem num ataque, inclinação abaixo, atrás dele, para serem transpassados em ambos os flancos por seus arqueiros e serem submersos pelo grande número de seus cavaleiros. Mas eles não se moviam. Auxiliares de campo traziam peles com água do rio. Cavaleiros tiravam seus elmos e molhavam suas cabeças suadas. Os feridos nas inclinações gritavam em vão por água. Na parte mais alta do vale, fontes de água abasteciam os defensores. Eles não sentiam sede naquele dia quente de primavera.

No Altar do Rei, ao lado da antiga pedra esculpida, Xaltotun observava a maré de aço recuar e avançar. Os cavaleiros avançavam, com suas plumas ondulantes e lanças a mergulharem. Através de uma nuvem sibilante de flechas, eles avançaram com dificuldade, para se quebrarem como uma onda trovejante na parede eriçada de lanças e escudos. Machados se ergueram e caíram acima dos elmos emplumados, e lanças foram arremetidas para cima, derrubando cavalos e cavaleiros. O orgulho dos gunderlandeses não era menos feroz que o dos cavaleiros. Eles não eram lanceiros feitos para serem sacrificados pela glória de homens melhores. Eram a melhor infantaria do mundo, com uma tradição que lhes deixava com o moral inabalável. Os reis da Aquilônia há muito conheciam o valor da infantaria inquebrável. Eles mantinham sua formação inabalada; sobre suas fileiras brilhantes, ondulava a grande bandeira do leão, e na extremidade da cunha, uma figura gigante em armadura negra rugia e golpeava como um furacão, com um machado cadente que partia tanto aço quanto ossos.

Os nemédios lutavam tão nobremente quanto suas tradições de alta coragem exigiam. Mas eles não conseguiam quebrar a cunha de ferro; e, das pequenas colinas cobertas por florestas, no outro lado, flechas lhes varriam impiedosamente as fileiras compactas. Seus próprios arqueiros eram inúteis; seus piqueiros, incapazes de galgar as alturas para se engalfinharem com os bossonianos. Lenta, teimosa e sombriamente, os cavaleiros soturnos recuaram, a julgar por suas selas vazias. Acima deles, os gunderlandeses não lançavam clamores de triunfo. Aproximaram as fileiras, fechando as lacunas feitas pelos que caíram mortos. O suor lhes caía nos olhos, sob seus chapéus de aços. Eles seguraram firmemente as lanças e esperaram, seus corações ferozes inflando com o orgulho de que um rei deveria lutar a pé com eles. Atrás deles, os cavaleiros aquilonianos não se moviam. Estavam montados em seus corcéis e sombriamente imóveis.

Um cavaleiro esporeou um cavalo suado para cima da colina chamada O Altar do Rei, e mirou Xaltotun com olhos amargos.

- Amalric me mandou dizer que é hora de usar sua magia, feiticeiro. – ele disse – Estamos morrendo como moscas, lá embaixo. Não conseguimos romper as fileiras inimigas.

Xaltotun parecia se expandir, ficar alto, temível e terrível.

- Volte para Amalric. – ele disse – Diga a ele para reorganizar suas fileiras para um ataque, mas que aguarde meu sinal. Antes desse sinal, ele verá uma cena da qual se lembrará até morrer!

O cavaleiro fez um gesto de saudação, como se forçado contra sua vontade, e desceu trovejando pela colina, numa velocidade vertiginosa.

Xaltotun se erguia ao lado do escuro altar de pedra, e olhou de um lado a outro do vale, para os mortos e feridos nos terraços, para a tropa sombria e manchada de sangue no topo das inclinações, e para as fileiras empoeiradas e blindadas que se reagrupavam no vale lá embaixo. Ele ergueu o olhar para o céu, e desceu o olhar para a esguia figura branca na pedra escura. E, erguendo uma adaga entalhada com hieróglifos arcaicos, entoou uma invocação antiqüíssima:

- Set, deus das trevas, lorde escamoso das sombras; pelo sangue de uma virgem e pelo símbolo sétuplo, eu chamo pelos seus filhos sob a terra negra! Filhos das profundezas, sob a terra vermelha, sob a terra negra, despertai e sacudam suas cabeleiras terríveis! Façam as colinas tremerem e as pedras desabarem sobre meus inimigos! Façam o céu escurecer acima deles, e a terra perder a firmeza sob seus pés! Que um vento, da profunda terra negra, se erga e enrosque sob os pés deles, e os enegreça e murche...

Ele parou bruscamente, com a adaga erguida. Naquele tenso silêncio, o rugido das hordas se erguia sob ele, trazido pelo vento.

Do outro lado do altar, havia um homem usando escuro robe com capuz, cuja touca escurecia pálidas feições delicadas e olhos escuros, calmos e meditativos.

- Cão de Asura! – sussurrou Xaltotun, com uma voz que parecia o sibilar de uma serpente enfurecida – Você é louco, a ponto de ir em busca de sua condenação? Hei, Baal! Chiron!

- Chame novamente, cão de Acheron! – o outro disse e riu – Convoque-os em voz alta. Eles não ouvirão, a menos que seus gritos ecoem no inferno.

De um matagal na beirada da elevação, saiu uma sombria mulher idosa, em roupas de camponesa, o cabelo esvoaçando sobre os ombros e um grande lobo cinza seguindo-lhe pelos calcanhares.

- Bruxa, sacerdote e lobo. – murmurou Xaltotun sombriamente, e riu – Idiotas, lançando sua pantomima de charlatão contra minhas artes! Com um abanar de minha mão, eu posso tirá-los de meu caminho!

- Suas artes são palhas ao vento, cão de Python. – respondeu o asurano – Você já se perguntou por que o Shirki não transbordou para capturar Conan na outra margem? Quando vi o relâmpago na noite, imaginei que fosse plano seu, e meus encantamentos dispersaram as nuvens que você convocou, antes que elas pudessem despejar suas torrentes. Você nem sequer soube que sua feitiçaria de fazer chover havia falhado.

- Você mente! – gritou Xaltotun, mas a confiança em sua voz estava abalada – Eu havia sentido o impacto de uma poderosa feitiçaria contra a minha... mas nenhum homem na terra poderia desfazer a magia da chuva, uma vez que ela houvesse sido feita, a não ser que ele possuísse o próprio coração da feitiçaria.

- Mas a inundação que você planejou não chegou a acontecer. – respondeu o sacerdote – Olhe para seus aliados no vale, pythoniano! Você os guiou para a matança! Eles estão pegos nas presas da armadilha, e você não pode ajudá-los. Veja!

Ele apontou. Da garganta estreita do vale mais alto, atrás dos bossonianos, vinha um cavaleiro a toda velocidade, rodopiando, ao redor da cabeça, algo que reluzia ao sol. De forma arrojada, ele desceu correndo as inclinações, através das fileiras dos gunderlandeses, os quais lançaram um rugido do fundo de suas gargantas e bateram ruidosamente suas lanças e escudos, como o trovão nas colinas. Nos terraços entre os exércitos, o cavalo encharcado de suor empinava e saltava, e seu feroz montador gritava e brandia a coisa em suas mãos, como um desvairado. Era o resto rasgado de uma bandeira escarlate, e o sol lançava raios ofuscantes nas escamas douradas de uma serpente que nela se contorcia.

- Valerius está morto! – gritou Hadrathus de forma ressonante – Uma névoa e um tambor o atraíram para sua condenação. Eu atraí aquela névoa, cão de Python, e eu a dispersei! Eu, com uma magia que é maior que a sua!

- O que importa? – rugiu Xaltotun, com um olhar terrível, os olhos resplandecentes e o rosto convulsionado – Valerius era um tolo. Não preciso dele. Posso esmagar Conan sem ajuda humana!

- Por que você demorou? – zombou Hadrathus – Por que permitiu que tantos dos seus aliados caíssem, perfurados por flechas e lanças?

- Porque o sangue ajuda a grande feitiçaria! – trovejou Xaltotun, numa voz que fez as rochas estremecerem. Uma auréola sinistra se movia ao redor de sua majestosa cabeça – Porque nenhum mago desperdiça sua força descuidadamente. Porque quero conservar meus poderes para grandes dias que virão, do que em empregá-los numa briga em região montanhosa. Mas agora, por Set, eu os libertarei ao máximo! Observe, cão de Asura, falso sacerdote de um deus antiquado, e veja uma cena que lhe destruirá eternamente a razão!

Hadrathus lançou a cabeça para trás, e o inferno estava em sua risada.

- Veja, cão negro de Python!

Sua mão saiu do manto, segurando algo que ardia e incandescia ao sol, mudando a luz para um pulsante brilho dourado, no qual a pele de Xaltotun parecia ser a de um cadáver.

Xaltotun gritou, como se tivesse sido esfaqueado:

- O Coração! O Coração de Ahriman!

- Sim! O único poder maior que o seu!

Xaltotun parecia enrugar e envelhecer. Súbito, sua barba estava raiada de branco e seus cabelos manchados de cinza.

- O Coração! – ele murmurou – Você o roubou! Cão! Ladrão!

- Não eu. Foi uma longa jornada até o sul. Mas agora ele está em minhas mãos, e suas artes negras não são páreo para ele. Assim como ele lhe ressuscitou, do mesmo modo lhe lançará de volta à noite de dentro da qual ele lhe tirou. Você descerá a estrada escura para Acheron, que é a estrada do silêncio e da noite. O império obscuro e não-renascido continuará sendo uma lenda e uma negra memória. Conan reinará novamente. E o Coração de Ahriman voltará para dentro da caverna sob o templo de Mitra, para brilhar como um símbolo do poder da Aquilônia durante mil anos!

Xaltotun soltou um grito inumano e correu ao redor do altar, com a adaga erguida; mas, de algum lugar – talvez do céu, ou da grande jóia que brilhava na mão de Hadrathus –, saiu um jato de cegante luz azul. Ele atingiu em cheio o peito de Xaltotun, e as colinas ecoaram o choque. O mago de Acheron caiu, como se atingido por um relâmpago, e, antes de tocar o chão, estava assustadoramente mudado. Ao lado do altar de pedra, não jazia um cadáver recém-abatido, mas uma múmia enrugada; uma carcaça marrom, seca e irreconhecível, esparramada entre bandagens bolorentas.

Sombriamente, a velha Zelata olhou para baixo.

- Ele não era um homem vivo. – ela disse – O Coração o emprestou um falso aspecto de vida, que enganou até mesmo a ele próprio. Eu nunca o vi como outra coisa além de uma múmia.

Hadrathus se inclinou para desamarrar a garota desmaiada sobre o altar, quando, de entre as árvores, saiu uma estranha aparição: a carruagem de Xaltotun, puxada pelos cavalos sobrenaturais. Silenciosamente, eles avançaram até o altar e pararam, com a roda da carruagem quase tocando a coisa marrom e definhada sobre a grama. Hadrathus ergueu o corpo do feiticeiro e o colocou na carruagem. E, sem hesitação, os misteriosos corcéis giraram e se afastaram para o sul, descendo a colina. Hadrathus, Zelata e o lobo cinza observaram-nos partir – para a longa estrada até Acheron, a qual está além da compreensão dos homens.

Lá embaixo, no vale, Amalric se enrijeceu em sua sela, quando viu aquele cavaleiro selvagem curveteando e dando meia volta sobre as inclinações, enquanto brandia aquela ensangüentada bandeira de serpente. Então, algum instinto o fez girar bruscamente a cabeça, em direção à colina conhecida como O Altar do Rei. E seus lábios se abriram. Todos os homens no vale viram aquilo – uma seta curva de luz ofuscante, que se erguia do cume da colina, borrifando fogo dourado. Bem acima dos exércitos, ela explodiu num brilho cegante que, por um momento, empalideceu o sol.

- Aquilo não é o sinal de Xaltotun! – rugiu o barão.

- Não! – gritou Tarascus – É um sinal para os aquilonianos! Olhe!

Acima deles, as fileiras imóveis estavam finalmente em movimento, e um rugido profundo e gutural trovejou de um lado a outro do vale.

- Xaltotun falhou conosco! – berrou furiosamente Amalric – Valerius falhou conosco! Fomos guiados para dentro de uma armadilha! Mitra amaldiçoe Xaltotun, que nos trouxe para cá! Soe o toque de retirada!

- Tarde demais! – gritou Tarascus – Veja!

Lá no alto das inclinações, a floresta de lanças mergulhava e apontava. As fileiras dos gunderlandeses rolavam de volta à direita e esquerda, como uma cortina divisória. E, com um trovejar semelhante ao soar crescente de um furacão, os cavaleiros da Aquilônia desceram violentamente pelas inclinações.

A impetuosidade daquele ataque foi irresistível. Flechas, lançadas pelos balestreiros desmoralizados, lhes resvalavam nos escudos e nos elmos inclinados. Com as plumas e flâmulas esvoaçando atrás deles, e suas lanças abaixadas, eles arrasaram as linhas ondulantes de piqueiros e rugiram inclinação abaixo como uma onda.

Amalric gritou uma ordem para atacar, e os nemédios, com desesperada coragem, apressaram seus cavalos para as inclinações. Eles ainda sobrepujavam os atacantes em número.

Mas eles eram homens cansados sobre cavalos exaustos, atacando colina acima. Os cavaleiros que avançavam não tinham dado um único golpe naquele dia. Seus cavalos estavam descansados. Eles vinham colina abaixo, descendo como um raio. E, como um raio, eles golpearam as fileiras dos nemédios, que avançavam com dificuldade – golpearam-nas, dividiram-nas, rasgaram-nas e arremessaram os remanescentes, de ponta-cabeça, inclinação abaixo.

Atrás deles, a pé, vieram os gunderlandeses sedentos de sangue, e os bossonianos se aglomeravam ao pé das colinas, atirando, enquanto caminhavam, em cada inimigo que ainda se movesse.

A maré da batalha descia pelas inclinações, e os atordoados nemédios eram arrastados na crista da onda. Seus arqueiros haviam largado suas balestras e estavam fugindo. Aqueles piqueiros que haviam sobrevivido ao ataque destruidor dos cavaleiros, foram despedaçados pelos impiedosos gunderlandeses.

Numa selvagem confusão, a batalha assolou através da boca larga do vale e para a planície além. Os guerreiros apinhavam toda a planície, fugindo e perseguindo, destroçados em combates singulares, sob passos pesados, cavaleiros a despedaçarem sobre cavalos que empinavam e giravam. Mas os nemédios foram esmagados e despedaçados, incapazes de se reorganizarem para criar uma resistência. Eles fugiram às centenas, cavalgando a toda velocidade em direção ao rio. Muitos o alcançavam, atravessavam correndo e cavalgavam para leste. O campo estava bem atrás deles; o povo os caçava como lobos. Poucos chegaram a alcançar Tarantia.

A derrota final não chegou antes da queda de Amalric. O barão, se esforçando em vão para reagrupar seus homens, cavalgou diretamente para o agrupamento de cavaleiros que seguiam o gigante em armadura negra, cujo manto tinha o desenho do leão real, e sobre cuja cabeça flutuava a bandeira dourada do leão real, e sobre cuja cabeça flutuava a bandeira dourada do leupamento de cavaleiros que seguiam o gigante em armadura negra, o, com o leopardo escarlate de Poitain ao lado dela. Um guerreiro gigante em armadura reluzente inclinou sua lança e avançou para atacar o lorde de Tor. Eles se encontraram como um trovão. A lança do nemédio atingiu o elmo do rival, quebrou trancas e rebites e arrancou o capacete, revelando o rosto de Pallantides. Mas a ponta da lança do aquiloniano atravessou escudo e placa peitoral, até perfurar o coração do barão.

Um rugido se ergueu, quando Amalric foi arremessado de sua sela, quebrando a lança que o espetou, e os nemédios recuaram como uma barreira que explode sob o impacto da onda de uma maré. Cavalgaram em direção ao rio, num pânico cego que varreu a planície como um furacão. A hora do Dragão havia ido embora.

Tarascus não fugiu. Amalric estava morto, o porta-bandeira assassinado e o estandarte real nemédio pisoteado no sangue e na poeira. A maioria dos cavaleiros estava fugindo, e os aquilonianos cavalgavam atrás deles; Tarascus sabia que o dia estava perdido, mas, com um punhado de seguidores fiéis, ele rugiu através da confusão, consciente de um único desejo: encontrar Conan, o cimério. E ele finalmente o encontrou.

Formações haviam sido completamente destruídas, bandos bem consolidados quebrados em pedaços e destroçados. A cimeira do capacete de Trocero brilhava numa parte da planície, assim como as de Prospero, Pallantides e outros. Conan estava só. Os seguidores de Tarascus haviam caído um por um. Os dois reis se encontraram homem a homem.

Enquanto cavalgavam um na direção do outro, o cavalo de Tarascus relinchou e caiu sob ele. Conan pulou de seu próprio corcel e correu até ele, enquanto o rei da Nemédia se desembaraçava e levantava. O aço brilhou cegamente ao sol, se entrechocou com um som alto, e faíscas azuis voaram; então, com um clangor de armadura, Tarascus caiu estirado na terra sob um golpe trovejante da espada larga de Conan.

O cimério pôs um pé encouraçado no peito de seu inimigo, e ergueu a espada. Perdera o elmo; ele lançou a cabeleira negra para trás, e seus olhos azuis arderam com a velha chama deles.

- Você se rende?

- Vai me poupar? – indagou o nemédio.

- Sim. Mais do que você faria comigo, seu cão. Pouparei você e todos os homens que largarem as armas. Embora eu devesse partir sua cabeça, como a um ladrão infernal. – acrescentou o cimério.

Tarascus virou o pescoço e olhou para a planície. Os remanescentes do exército nemédio corriam através da ponte de pedra, com multidões de aquilonianos vitoriosos em seus calcanhares, golpeando com a fúria da vingança saciada. Bossonianos e gunderlandeses se aglomeravam no acampamento de seus inimigos, rasgando-lhes as tendas em pedaços, à procura de saque; agarrando prisioneiros, arrombando a bagagem e derrubando os vagões.

Tarascus praguejou ardentemente, e então encolheu os ombros tão bem quanto pôde, dadas as circunstâncias.

- Muito bem. Não tenho escolha. Quais as suas exigências?

- Devolva-me todas as suas posses atuais na Aquilônia. Ordene às suas tropas que se retirem, desarmadas, dos castelos e cidades que ocupam, e retire seus exércitos infernais da Aquilônia o mais rápido possível. Além disso, devolva todos os aquilonianos que foram vendidos como escravos, e pague uma indenização que será estipulada mais tarde, quando o estrago que sua ocupação do país causou for adequadamente calculado. Você permanecerá como refém até que estes termos sejam cumpridos.

- Muito bem. – resignou-se Tarascus – Devolverei todos os castelos e cidades agora ocupados por minhas tropas, sem resistência, e todas as outras coisas serão feitas. Qual o resgate pela minha vida?

Conan riu e tirou o pé do peito encouraçado de seu inimigo, agarrou-lhe o ombro e o ergueu de pé. Começou a falar, e logo se virou para ver Hadrathus se aproximando. O sacerdote estava tão calmo e senhor de si como sempre, abrindo seu caminho entre fileiras de mortos e cavalos.

Conan limpou, com a mão ensangüentada, o pó manchado de suor em sua testa. Ele havia lutado durante o dia todo, primeiro a pé com os piqueiros, e depois a cavalo, liderando o ataque. Seu manto desaparecera, sua armadura estava salpicada de sangue e amassada por golpes de espada, maça e machado. Ele avultava gigantescamente contra um fundo de sangue e matança, como algum sombrio herói pagão de mitologia.

- Muito bom, Hadrathus! – ele disse borrascosamente – Por Crom, estou feliz de ver seu sinal! Meus cavaleiros estavam quase loucos de impaciência, e não agüentavam ficar parados, longe dos golpes de espada. Eu não ia conseguir segurá-los por muito mais tempo. Onde está o feiticeiro?

- Ele desceu pela obscura estrada para Acheron. – respondeu Hadrathus – E eu... eu vou para Tarantia. Meu trabalho está feito aqui, e eu tenho uma tarefa a fazer no templo de Mitra. Todo o nosso trabalho está feito aqui. Neste campo, nós salvamos a Aquilônia... e mais do que a Aquilônia. Sua cavalgada até a capital será uma procissão triunfal, através de um reino louco de alegria. Toda a Aquilônia estará aplaudindo o retorno de seu rei. E assim, até nos reencontrarmos no grande salão real... adeus!

Conan se erguia silenciosamente, olhando o sacerdote partir. De vários lugares do campo, cavaleiros corriam em sua direção. Ele viu Pallantides, Prospero, Servius Galannus – suas armaduras salpicadas de vermelho. O trovejar da batalha estava dando lugar a um rugido de triunfo e aclamação. Todos os olhos, ardentes pela luta e brilhantes de alegria, estavam voltados para a grande figura negra do rei; braços encouraçados brandiram espadas manchadas de vermelho. Uma confusa torrente de som se ergueu, profunda e trovejante como o mar se quebrando na praia:

- Salve Conan, rei da Aquilônia!

Tarascus falou:

- Você ainda não disse qual o meu resgate.

Conan riu e enfiou a espada de volta na bainha. Ele flexionou os braços poderosos e correu os dedos ensangüentados pelas espessas madeixas negras, como se sentindo nelas sua coroa readquirida:

- Há uma jovem no seu harém, chamada Zenóbia.

- Ora, sim; existe.

- Muito bem. – o rei sorriu, como se diante de uma lembrança extremamente agradável – Ela será o resgate, e mais nada. Irei até Belverus em busca dela, como prometido. Ela era uma escrava na Nemédia, mas farei dela rainha da Aquilônia!


FIM





(*) – Borguinhota: Tipo de capacete (Nota do Tradutor).




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão e Fernando Neeser de Aragão.

Fontes: http://en.wikisource.org/wiki/The_Hour_of_the_Dragon e http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2002%20-%20The%20Bloody%20Crown%20of%20Conan%20-%20FF.txt

Compartilhar