No Covil do Horror Ancestral

Por Cayman Moreira.
Uma aventura de Conan, criado por Robert E. Howard, com a participação de Sonja, a guerreira de cabelos de fogo.



REGIÃO DA STYGIA. Era Hiboriana.
I - KHAFIRI
Durante quase dois dias, os quatro mercenários estígios a seguiram, desde os limites de Sukhmet, através da rota das caravanas, cautelosamente, pela jóia valiosa que Ranseneb, o líder deles, disse que ela carregava em seu alforje de sela. Mas, de fato, eles não precisavam saber que os objetivos de Ranseneb eram bem mais pessoais. E esses objetivos tinham tudo a ver com a sua almejada posse pessoal da bela amazona solitária, que eles perseguiam agora, e que ele sequer pensava em jóia alguma – coisa que nem existia, na verdade. A cobiça e a ganância eram a mola de impulso que conduzia os comparsas, mesmo tendo visto o que aquela guerreira de alto e bem talhado porte físico e cabelos de fogo tinha feito com vários desordeiros em uma taverna nos arredores de Sukhmet. A despeito de usar uma espada formidável, seus punhos e suas belas e formosas pernas mostraram que ela era algo a se enfrentar com extrema cautela, em uma luta. Mas eles se achavam experimentados como guerreiros de aluguel, e em nada se comparavam aos vagabundos que tentaram molestá-la naquele antro de degenerados. E talvez a recompensa fosse até maior, quando a alcançassem, além do tesouro que ela carregava, incluindo aquele corpo estonteante. E também não importava a direção na qual ela ia, exatamente para a região das pirâmides assombradas, um lugar temido e evitado desde priscas eras, o qual também os deixava temerosos, mas a ansiedade pelo prêmio era maior que o medo.
A paisagem da rota das caravanas era um misto de estepe e desertificação, com a possibilidade de algum poço ou lago em alguma espécie de oásis, no caminho. Desde tempos imemoriais, os viajantes passavam por aqui, vindos da distante Thuran, na montanhosa região de Taia indo para Sukhmet ou Kheshatta.
Conduzindo seu cavalo em galope brando, Sonja, a hirkaniana de cabelos de fogo já conhecia aquela trilha, pois já havia passado ali, viajando pelos confins da Stygia. Ela bem sabia que estava sendo seguida, ou talvez fosse mera coincidência que tivesse percebido, um dia atrás, os cavaleiros que vinham na mesma direção que ia agora. Se fosse por algo que carregava consigo, teriam uma decepção, porque ela nada tinha de valor extremo e, algo que valesse, ainda iria conseguir, quando chegasse à região das pirâmides assombradas. De qualquer forma, a hirkaniana esperaria para comprovar a verdadeira razão em um certo lugar uma milha à frente, quando parasse para dar água ao animal e onde ela mesma descansaria um pouco.
A tarde estava seguindo seu curso agora, com o sol descendo pouco a pouco no poente, e os cavaleiros sabiam que ela teria que parar de qualquer forma. E tal aconteceria em algum ponto à frente, talvez no poço de Khafiri, onde havia uma solitária parada das caravanas à sombra de algumas árvores e uma pequena colina. E Ranseneb mal podia esperar para que anoitecesse e ele pusesse as mãos ávidas naquela fêmea sem igual. Sim, porque na escuridão, as habilidades e possibilidades de defesa de qualquer um, por mais que seja um lutador tenaz, se limitam. E eles eram quatro e talvez, com o sacrifício de um ou dois de seus companheiros ele lograsse seu obscuro êxito. Khufu, o mercenário que veio em galope ao lado de Ranseneb apontou para frente.
- Veja, logo chegaremos ao Khafiri. Será que ela vai parar ali?
Ranseneb sorriu matreiramente.
- Ainda que ela não quisesse, Khufu. Já está há quase um dia sem um completo descanso e seu cavalo precisa beber.
Khufu concordou, embora uma coisa ainda perturbasse sua cabeça e isso ele jamais deixaria que seus companheiros percebessem por pura vergonha: o medo supersticioso, bastante comum entre os estígios que não pertenciam a nenhuma elite tradicional.
- Ranseneb, por que você acha que ela está indo na direção das pirâmides assombradas? – Perguntou ele. O outro lhe dirigiu um breve olhar sombrio, para depois concentrar sua atenção no galope pelo caminho à frente. Ele mesmo tinha dúvidas quanto à razão itinerária da mulher, mas as velhas lendas sobre as temíveis pirâmides não tinham qualquer influência naquilo que o obcecava, no presente momento.
- Não me interessa, Khufu, o motivo dela. E não vejo motivo para receio em ir para lá. E pelo que está por vir, talvez tudo acabe em Khafiri, não?
Khufu nada disse em resposta, mas as palavras finais de seu líder trouxeram-lhe algum conforto, mesclado com a possibilidade de ter algo a mais em sua bolsa vazia.
Após algum tempo de cavalgada incessante, os homens puderam divisar à frente a uma certa distância na planície que os rodeava, a pequena elevação que marcava a localização de Khafiri. Já há algum tempo, não viam vestígio de Sonja no percurso, a não ser pelas marcas deixadas por sua montaria no solo. O sol estava se pondo muito depressa e Ranseneb fez sinal para que eles reduzissem sua galopada um pouco, para não dar sinal de sua presença iminente. E, indo a uma direção contrária ao centro da área, para o leste, eles seguiram com intenção de possivelmente contornar a pequena colina que cercava o lugar, para ter um ponto melhor de observação e emboscada.
Sonja havia chegado ao ponto de parada das caravanas. O Khafiri era mesmo um pequeno oásis, salpicado de pequenas lajes cobertas de areia branca, vegetação rasteira e arbustos que desciam da pequena colina que o cercava quase como uma meia lua e as tamareiras, palmeiras de crescimento rápido que forneciam sombra e frutos, cujas raízes eram capazes de extrair água do lençol freático. Bem ao centro do Khafiri, havia um poço largo bem rudimentar, cuja mureta de pedras era guarnecida por colunas de alvenaria; e, atravessada sobre elas, havia uma trave de tronco de palmeira, com uma roldana contendo uma grossa corda em cuja ponta havia um balde de madeira pendurado. A hirkaniana havia amarrado a rédea do animal no galho de uma diminuta árvore e estava agora tirando água do poço para si mesma e para o cavalo. Seus olhos faiscavam com o peculiar brilho selvagem, quando ela ficava em alerta, enquanto perscrutava em redor de si, estudando o ambiente. O cheiro característico de terra fresca, oriundo da vegetação e da água, a reconfortava, após horas de cavalgada necessitando de descanso. O sol se punha totalmente. Um tom carmesim pintava a paisagem e se escondia atrás dos montes distantes, para além dali. Outra parada similar agora, somente após a região das pirâmides e a localização ainda era indeterminada. O olhar de Sonja se concentrava agora na água contida no balde de madeira que ela levava para dar de beber ao cavalo e ao mesmo tempo na vigilância ao redor. Tudo indicava que ela estava sozinha, pelo menos naquele instante. Mas não era bem assim.
Um par de olhos astutos e selvagens a observava desde sua chegada. A visão daquela bela mulher, trajando uma pequena cota de malha metálica feita de botões prateados que cobria apenas a parte dos seios, uma espécie de tanga feita do mesmo material, botas de couro marrom que iam até a linha dos joelhos, um cinto guarnecido por uma espada embainhada e um pequeno sabre preso à coxa direita, tudo isso era por demais excitante.
A figura oculta também já havia constatado um certo movimento no alto da colina, à sua esquerda. Os quatro mercenários também haviam chegado e estavam pacientemente postados lá em cima, ocultos pela vegetação e algumas rochas. O personagem que observava a guerreira ao mesmo que seus perseguidores, tinha um brilho divertido no olhar. Seria interessante ver o que aconteceria dentro em pouco, como ele previa, quando o grupo lá em cima resolvesse descer e tentar uma aproximação. E ele não interferiria claro. A menos que fosse realmente necessário. Não com relação a ela.
Ranseneb olhava ansioso, para a bela mulher lá embaixo. Tão perto e tão longe. Mas não seria por muito tempo. Já havia traçado a estratégia certa para atacar e dominar. Usaria seus homens como uma espécie de escudo, em uma só manobra e quando ela estivesse bastante imbuída em sua defesa contra eles, bem, ele então a pegaria desprevenida. Se tivesse que feri-la antes, mas não de morte, que assim fosse. Ele a possuiria de qualquer jeito. A obsessão animalesca o dominava por completo, agora. Ele sequer se dava conta que seus olhos estavam arregalados e os lábios estavam brilhantes de saliva, e que Khufu e seus companheiros haviam notado isso.
Após encher seu odre de couro com água e beber um pouco, Sonja tirou uma coberta grossa que trazia presa à sela e a estirou ao pé de uma tamareira num trecho inclinado do solo, deitando-se ali, mas com olhar ainda em alerta e a mão posta sobre o cabo da espada. Uma pequena brisa acariciava seu corpo e o único som ambiental vinha de algum pássaro nômade, tão viajor quanto os tradicionais caravaneiros, postado no topo de alguma daquelas palmeiras. Tudo que ela faria agora era descansar e esperar. Sem dormir, por enquanto, embora que a noite já estivesse quase assumindo sua vigília. E, menos de meia hora depois, tudo começou a acontecer. O estranho oculto percebeu que algumas sombras começavam a descer a colina silenciosamente. Suas silhuetas escuras recortavam-se contra alguns trechos de areia branca na descida. Eram três deles. Mas ele sabia que havia mais um acima, pelo movimento mal disfarçado, no topo. Khufu e seus dois companheiros desciam cautelosamente a colina, separados pelos lados, formando um cerco. Já tinham feito um estudo da situação e sabiam como chegar furtivamente onde Sonja estava, aparentemente alheia à sua presença ou mesmo adormecida. E ao mesmo tempo que os três alcançavam a base da colina e sacavam suas espadas, Ranseneb começou a descer também, com sua própria lâmina em punho. Devagar e procurando pisar apenas na areia, evitando qualquer vestígio de vegetação ressequida para não fazer barulho, os três avançaram para o vulto à frente, deitado aos pés da árvore, guiados pela claridade natural do solo, em seu lusco-fusco. Atrás dele, vinha Ranseneb, dominado pela excitação e com os olhos brilhando, varando a escuridão quase total. Khufu foi o primeiro a chegar junto à silhueta sombria no chão. E seus companheiros chegaram junto a ele, cercando a figura imóvel. Khufu bruscamente puxou a coberta que protegia o corpo imóvel. E a surpresa foi total. No lugar da mulher, havia apenas um monte de areia simulando um volume em forma de corpo, junto com dois alforjes de sela. Era possível, mesmo sob o manto da noite, agora, ver as expressões aturdidas de cada um dos três, entre si. E mesmo Ranseneb, que se aproximava devagar, estranhou a imobilidade dos três à sua frente, parados feitos estátuas sem movimento algum. Então, uma sombra que surgiu de repente de um dos lados, vinda de trás de um arbusto, próximo da palmeira portando algo que emitia um leve brilho, abateu-se sobre os mercenários.
Um grito de dor, seguido do som de lâminas entrechocando-se entre vociferações e palavrões, encheu a noite. Outro grito de desespero mortal, e Ranseneb tomou a decisão de tentar escapar àquilo indo justamente na direção do lugar de onde aquela sombra letal saíra, para atacar por trás. Enquanto isso, durante o combate na noite, Khufu ainda estava cruzando sua espada com um inimigo protegido pela sombra, que havia dado cabo de um de seus companheiros e ferira o outro, que ainda tentava reagir mesmo assim. Num lance, foi possível identificar, durante a luta, o olhar enfurecido da figura que os atacara tão selvagemente. A face da mulher estava marcada pela fúria, envolta em nesgas de luz e sombra em movimento, dentro da noite. E, num golpe fatal, a perna direita da guerreira, com um chute lateral, atingiu o pescoço do mercenário já ferido, que tentava dar o troco com sua espada, pondo fim à sua existência. Ao escutar o som de algo se partindo no impacto do chute, Khufu entrou em desespero e ainda brandindo a lâmina, girou a cabeça em todas as direções, esperando ver Ranseneb vir ajudá-lo, mas tudo que havia em redor eram apenas sombras e nada mais. A mulher avançava para ele, girando sua mortífera espada com incrível habilidade e murmurando entredentes palavrões na língua da terra natal dela, a longínqua Hirkânia, terra onde Khufu jamais poria os pés. Uma sequência de golpes pesados e cortantes foi a resposta dele, enquanto gritava por Ranseneb. A mulher defendia com facilidade e ria do seu desespero covarde. Durante toda uma vida mercenária, ele sempre teve um medo contido e normal, durante uma luta ou batalha coletiva, mas nunca como agora, diante da possibilidade de morrer e logo nas mãos de uma mulher que mais parecia uma entidade saída de um dos sete infernos, uma maldita filha de Derketa!
Enquanto isso, Ranseneb estava vindo por trás de Sonja na escuridão, tão furtivo quanto uma serpente traiçoeira. E tinha um sorriso nos lábios, tencionando atingir violentamente a guerreira com seu punho, para desacordá-la e atingir seu mórbido propósito. Neste exato momento, ela havia atingido o ombro esquerdo de Khufu com um golpe de espada e ele gritou de dor, enquanto via a sombra que surgia por trás dela. O cheiro de sangue enchia a noite, e Khufu ainda tentou uma última reação com a espada num golpe diagonal que poderia ter cortado Sonja ao meio do ombro esquerdo ao flanco direito, se ela não tivesse se desviado, agachando-se e enfiando a espada no estômago do mercenário que morreu com um grito abafado, arregalando os olhos de dor e pavor.
O homem caiu de joelhos e dobrou-se para frente, a seus pés, e ela estacou, fitando o morto, quando Ranseneb já erguia a mão fechada sobre o punho de sua espada para golpeá-la na nuca. Ele conseguiria seu intento, caso algo feito uma garra de ferro não tivesse agarrado seu pescoço por trás. O chão desapareceu debaixo de sob seus pés enquanto ele subia no ar, grunhindo sufocado pela dor e pela surpresa, largando a espada. Era como se uma serpente do templo de Set estivesse erguendo-o com a boca, para quebrar-lhe o pescoço e depois devorá-lo. Seria uma delas, de fato? Pensou ele, horrorizado. Atrás dele, uma voz poderosa que nada tinha a ver com um sibilar de serpente se fez ouvir, enquanto ele se debatia.
- Eu observei tudo até agora sem interferir, mas devo dizer que seu ato me fez mudar de idéia. Tente de novo, sem agir como um macaco covarde!
E a garra tenaz atirou Ranseneb no chão com violência. Ao ouvir os estertores e grunhidos desesperados atrás de si, Sonja havia se voltado com a espada pronta para agir. O que viu foi um homem rastejando no solo segurando a nuca, dolorosamente e um gigante sorridente à sua frente, com um brilho de aço nos olhos que, mesmo naquela obscuridade, era possível enxergar. Sim, ela conhecia bem aquele sorriso cínico e aqueles olhos selvagens. Ele abriu os braços e falou:
- Eu bem que quis evitar, mas não pude ficar parado vendo o que este macaco estígio e careca ia fazer, minha bela dos cabelos de fogo. Dê aqui um abraço. Senti saudades.
- Conan da Ciméria – Sonja baixou a espada, mas não estava sorrindo com aquela saudação. – Devo agradecer por meter-se mais uma vez numa briga que não era sua? Tudo bem, fico na dívida. Eu não fazia mesmo idéia de havia mais um deles escondido.
- E pode ter certeza que cobrarei – falou Conan sorrindo e gesticulando com o indicador para ela, e em seguida apontando para o homem que agora estava sentado no chão, ainda passando a mão atrás do pescoço. Seus olhos brilhavam de ódio e medo.
- E quem eram eles, e quem é este macaco estígio?
Sonja deu um passo à frente na direção de Ranseneb e este recuou um pouco, arrastando-se no chão. A hirkaniana brandia a espada apontando-a para ele.
- O que queriam comigo? Eu não sei se os conheço de nenhum lugar. O que fiz a vocês?
- Eu vi o que você fez naquela taverna em Sukhmet... – falou ele, encarando-a firmemente – e eu queria...
- Queria o quê? Eu não carrego nada de valor comigo a não ser... – ela ficou em dúvida. Aquele pedaço de pano com um sinistro desenho, contendo marcas significativas que ela escondia no alforje da sela, não era do conhecimento de ninguém, e quem o fornecera estava morto agora.
- Eu sei que você nada tinha de valor, que pudesse ser tomado de alguma forma.
Ranseneb disse isso num sorriso nervoso, com o canto da boca tremendo.
- Eles – e dirigiu o olhar em volta, para os cadáveres espalhados – é que acreditaram que você tinha uma jóia de valor incalculável, um olho de serpente feito de rubi, roubado do palácio de Set.
- E de onde eles tiraram essa idéia imbecil? – vociferou ela.
Ranseneb limitou-se a encarar o cimério, e depois dirigiu um olhar atrevido para ela, erguendo-se devagar. A guerreira ficou de prontidão e o cimério ficou também cauteloso, embora aquele homem não significasse nenhum perigo.
- Dê-me uma chance com uma espada e eu direi a razão disso tudo.
Ao ouvir isso, Sonja recuou um pouco e gesticulou com a espada, permitindo que ele apanhasse a lâmina que quisesse. Devagar com um certo receio, Ranseneb caminhou até o cadáver de Khufu e tirou-lhe a espada da mão. Não quis perder tempo procurando a sua própria, porque seria perda de tempo e não faria diferença nenhuma, naquela circunstância. Sonja limitou-se a observar seus movimentos com tranqüilidade. Conan, de braços cruzados, sorria divertido e disse:
- Acho melhor você desembuchar logo, antes que não possa dizer mais nada.
Ranseneb olhou para o bárbaro e para Sonja, e ergueu a espada, fazendo uma manobra de corte no ar antes de tudo. Recuou alguns passos e apontou a espada para a hirkaniana, vociferando num misto de fúria e medo.
- Eu os convenci a me acompanhar por causa de uma mentira. Tudo que eu queria era possuir você, mulher! Quando vi sua luta na taverna, nada mais me interessava! E, se eu tiver que morrer por isso, tentarei levar você comigo, aqui e agora! – E dizendo isso, avançou fazendo floreios com a arma, na direção dela.                            
A primeira investida de Ranseneb foi evitada com uma esquiva ágil, e Sonja aplicou um chute na lateral de seu corpo, atirando-o contra o tronco de uma das palmeiras. O estígio voltou-se com os olhos injetados de raiva e frustração, diante daquela humilhação e preparou-se para mais um ataque desesperado. A guerreira apenas ficou em posição de defesa, sorrindo com os dentes à mostra, feito uma tigresa das estepes, quando brinca com a presa antes do golpe fatal.
- Você tem duas escolhas, estígio – falou ela –: sair daqui com vida, levando sua frustração masculina, ou ir para o inferno com ela! Escolha! Posso poupar sua vida por pena de você, apenas.
Conan não estava mais sorrindo e observava com curiosidade a expressão animalesca do estígio diante da situação. Se havia algo que lhe causava repugnância era a raça dele, composta de bruxos e párias metidos a lordes. O mercenário dirigiu-lhe um olhar carregado de decepção, por estar diante dele, um bárbaro selvagem assistindo à sua humilhação perante uma mulher que ele planejava ter; porém, a alternativa agora era partir com seu fracasso ou morrer com ele. E num ato de total loucura, arregalou os olhos e gritou, erguendo a espada e saltando para cima da hirkaniana.
- POR ANPHU E O PAI SET!!! VOCÊ VEM COMIGO!
Sonja desviou o golpe fatal com a espada e girou habilmente o corpo, cortando o pescoço do estígio, enquanto o corpo deste era impulsionado para a frente, durante seu ataque insano. A cabeça de Ranseneb caiu um pouco além de onde Conan estava parado. Seus olhos estavam arregalados ainda, fitando o vazio, para além das fronteiras dos domínios de Derketa, a deusa da morte, venerada por muitos na Stygia e na distante Keshan. O corpo ainda se mexia convulsionado pelo sangue que esguichava na área do golpe.
Sonja fitava o cadáver friamente e rasgou um pedaço das vestes dele, usando o pano para limpar a lâmina mortífera, depositando-a em seguida na bainha. Neste instante, Conan soltou uma risada breve. A guerreira o encarou sombriamente.
- Qual foi a graça agora, cimério? Ver mais um “macaco estígio” morrer estupidamente, como este?
O bárbaro aproximou-se dela ainda sorrindo. E pôs uma mão musculosa e calosa no ombro dela.
- Os apaixonados têm direito a um desejo final e você não foi correta com este. E eu não o culpo por ter ficado cego depois de ver você...
Sonja sacudiu irritada a cabeleira ruiva e retirou bruscamente a mão dele de seu ombro, afastando-se até a palmeira onde havia deixado a coberta e seus alforjes, e então parou, voltando-se para ele.
- Diga-me, Conan, o que realmente estava fazendo por aqui? Será mesmo coincidência você ter aparecido neste lugar?
O cimério caminhou um pouco em volta, espezinhando de leve a areia e dirigiu-lhe um olhar malicioso, pondo o dedo indicador sobre os lábios antes de falar.
- Eles – e gesticulou, indicando os mortos em volta – podem ter acreditado em uma mentira. Mas... eu tenho certeza de uma verdade.
Sonja ficou parada durante alguns segundos de pleno silêncio olhando para ele, que se limitou a encarar a ruiva marotamente com as mãos nos quadris, à espera da reação dela, diante daquelas palavras. Então, ela aproximou-se do bárbaro, encostando o dedo no tórax volumoso e cheio de cicatrizes e pequenas marcas de sua passagem guerreira através do continente hiboriano. E ela esboçou um sorriso, desta vez.
- Você pode ter nascido bárbaro, cimério, mas nunca foi uma mula estúpida. Disso eu já sei, desde que o conheço. Então, o que tem em mente?
- O que nós temos em mente seria o correto, mulher.
- Não sei bem ao que se refere, Conan, mas seria melhor irmos direto ao ponto.
- Digamos que você não carregasse nenhum tesouro de fato, mas que o macaco estígio em seu devaneio imbecil e mentiroso tenha por fim, adivinhado algo inconscientemente...
Sonja sondava o brilho de esperteza explícito nos olhos do cimério – algo que lembrava um lobo matreiro, em cuja mente não havia um laivo de dúvida sequer, quanto a um certo objetivo. Deu as costas para ele e começou a andar devagar, em torno.
- Digamos – continuou Conan – que um certo desenho estampado em um fragmento de tecido tenha nos trazido até aqui.
A guerreira parou de caminhar e nada disse, apenas cruzando os braços na altura dos seios e limitando-se a encará-lo, esperando que ele continuasse. O bárbaro aproximou-se dela e estendeu a mão até seus cabelos de fogo, tocando-o de leve, algo que ela não impediu.
- E para encerrar a minha parte, digamos que você precisa de mim na hora certa, junto com esse “material” conseguido há alguns dias com um certo ladrão shemita, antes de passar por Sukhmet. É sua vez de falar, mulher.
Suavemente, a guerreira tocou a mão do cimério e a tirou de seus cabelos, enquanto ela mesma, com certa ironia, acariciava o rosto dele, passando um dedo de leve, sobre a pequena cicatriz que passava sobre o alto de seu nariz. Ela sorria enquanto falava.
- E do que estamos falando mesmo, cimério e o quê isso me custará?
- O nome Ahlmar'at Aleankhabut significa algo para você, hirkaniana?
- Ainda não... mas acho que logo saberei o que significa e o quanto custará... não é?
Conan afastou-se dela e caminhou até o local onde seus alforjes estavam, junto com a coberta. Ao perceber isso, a reação de Sonja foi de pôr a mão sobre o cabo da espada. O bárbaro abaixou-se para apanhar os alforjes e então ela caminhou até ele, já quase desembainhando a lâmina. O cimério voltou-se com a coberta e os alforjes nas mãos, e sorriu ao constatar sua preocupação.
- Calma menina, estou apenas ajudando-a com seus pertences. Posso não ser um cavalheiro empetecado da corte zíngara, mas tenho meus momentos...
- Conheço bem suas maneiras de cavalheiro – ela falou, tirando as coisas de suas mãos. – Agora, seria melhor sair de perto destes caras. O lugar já está começando a cheirar mal.
- Este arremedo de oásis não é tão grande, mas podemos passar o resto da noite um pouco à frente... enquanto conversamos mais sobre o que temos em mente, certo?
A ruiva sorriu enigmaticamente e caminhou até onde seu cavalo estava, pondo lá os alforjes e a coberta, puxando-o pelas rédeas, indo em direção ao outro lado do Khafiri, exatamente onde Conan havia deixado sua própria montaria que ficara pastando sobre uma camada de relva na qual se alimentava. Acenderam uma pequena fogueira, e Conan dividiu com ela um pouco do vinho que ele carregava em um odre de couro, bem apropriado para espantar o frio da noite que se adensava. A calmaria só era quebrada por suas próprias palavras e o barulho ocasional dos insetos que habitavam a vegetação. O céu estava coberto de estrelas que, em alguns pontos, pareciam diamantes transformados em fragmentos de pó brilhante, espalhado numa abóbada negra.
FIM DA PRIMEIRA PARTE

II – O TRÁGICO DESTINO DE HAMADHI, A PRINCESA ESTÍGIA.
A fogueira lançava reflexos alaranjados na face da hirkaniana, que fitava o semblante sombrio do cimério sentado defronte a ela, também acentuado pelos efeitos daquele mesmo lume, enquanto ele contava como ficou sabendo da empreitada da guerreira, indo para as pirâmides assombradas.
- ... E então eu ouvi a conversa dos dois bandidos shemitas, comparsas daquele ladrão que te passou a informação sobre uma certa câmara oculta, com tesouros valiosos nas pirâmides assombradas. Estávamos jogando em uma taverna arruinada em Harakht, no lado estígio do rio Styx, localidade por onde você passou também e era seguida por eles.
Ela nada disse, limitando-se a tomar mais um gole do vinho do cimério.
- Como vê – continuou ele –, eu descobri tudo por acaso, incluindo a traição dos dois com seu companheiro, que o passaram na espada, antes de ele conseguir fugir ferido e te encontrar moribundo em um beco e entregar a informação, assim como a chave da busca. Vocês eram observados nesse momento e os dois comparsas não te atacaram por receio puro, pois te conheciam de algum lugar.
Sonja espreguiçou-se com um sorriso enigmático e Conan silenciou, esperando a reação dela às suas palavras. E ela retrocedeu mentalmente sobre os acontecimentos de há dias, quando se envolvera em tudo aquilo.
- O ladrão veio a mim também por acaso, cimério. Ele estava arrastando-se ao longo do beco, vindo em minha direção. Eu até achava que era um ardil para me atacar, e fiquei em alerta. Ao aproximar-me cautelosamente, a poucos passos dele, o homem caiu pesadamente com um urro de dor, comprimindo o estômago. Ele não tinha nenhum ferimento no corpo, mas seu rosto estava inchado e cheio de manchas arroxeadas, que davam pra perceber mesmo na obscuridade do lugar. O homem ergueu o rosto para mim e disse: “Derketa!... Não a imaginava tão bela! Leve-me, leve-me com você!”.
Ao ouvir isso, o bárbaro sacudiu a cabeça para trás e gargalhou, apontando para ela em seguida, percebendo sua expressão. Sonja fez uma careta de desagrado para ele, reconhecendo que este trecho da narração foi mesmo patético, ainda mais com o humor sarcástico do cimério, sempre à mostra.
- Você adora ser parvo às vezes, Conan! Se quiser que eu continue, pare com esta palhaçada!
- Sim, senhora, minha bela Derketa – ele disse, sufocando o riso, pondo as mãos na boca. – Perdoe-me, mas não pude me conter. Por Crom, continue!
Sonja fez uma pequena pausa, encarando-o de cara amarrada, e continuou sua narrativa, enquanto pegava um dos seus alforjes, abrindo-o.
- Eu calculei que o sofrimento daquele homem era marcado pelo sintoma de evidente envenenamento e ele desesperadamente tentava abrir uma pequena bolsa atada ao seu cinto, próxima de um longo punhal embainhado que ele carregava. Eu abri a bolsa para ele e, além de algumas moedas, havia um pedaço de pano amarrotado o qual eu examinei e vi uma gravura esquisita, com algumas marcas, furos redondos em alguns pontos dela.
E tirou de dentro do alforje um pedaço de pano amarrotado, o qual estendeu, entregando ao cimério. Conan pegou o farrapo de tecido e aproximou-o da fogueira, para entender melhor o que significava aquela imagem. À luz do fogo, a imagem era clara e evidente para o cimério, que arregalou selvagemente seus olhos azuis de aço. Porque ele já conhecia aqueles traços estranhos que compunham uma gravura hieroglífica, representando algo como duas colunas contendo ao centro delas, uma figura híbrida, com aspecto humanóide e aracnídeo, ao mesmo tempo. Os traços da imagem eram escuros e haviam mesmo alguns furos arredondados no pano. Quatro deles, sendo três espalhados fora da área das colunas e um, o maior deles, abaixo da figura central.
- Shebaki Alankhabut... – murmurou o cimério, enquanto fitava as chamas, como se vislumbrasse ali algo muito distante, em sua mente selvagem. Sonja franziu a testa diante da expressão dele e daquelas palavras estranhas, embora fossem no idioma Estígio.
- Você sabe o que isto significa, não é? Reconhece esta imagem de algum lugar, pelo que posso ver.
E dizendo isso, ela aproximou-se de Conan, olhando para a imagem em suas mãos, e ao mesmo tempo, para o semblante atônito e distante do bárbaro, algo que excitou sua curiosidade e intuição femininas. Tirou o pedaço de tecido das mãos dele e passou a mão ternamente em seu rosto, virando-o para encará-la, com um sorriso esperto.
- Acho que precisa me contar algo mais; aliás, tudo o que sabe sobre esta imagem, Conan. Ambos podemos dividir essa história... como nos velhos tempos, certo?
O cimério olhou para ela com um súbito calor no peito, e sentiu um desejo enorme de beijar aquela boca bela e provocante que sorria para ele como uma loba astuta, mas algumas investidas infrutíferas do passado vieram-lhe à mente e ele preferiu priorizar o possível projeto de caça ao butim que ambos teriam pela frente. Mas antes, ele precisava dividir com ela uma história antiga, que um velho guerreiro kushita havia lhe contado, quando ele ainda era chamado de Amra, na Costa Negra, um tempo cuja lembrança ainda lhe trazia crises de melancolia, devido a um desfecho trágico do seu passado.
- Já ouviu falar da lenda de Hamadhi, Sonja? Uma das histórias que o povo estígio faz questão de negar? – Ela fez que não, com a cabeça, e esticou-se sobre o cobertor no solo que cobria sua sela, recostando-se nela. O cimério olhava para as chamas enquanto iniciava sua narrativa.
- Jabatha, um velho guerreiro kushita, a quem eu conheci há algum tempo, contou-me uma história acontecida na segunda dinastia estígia, milhares de anos atrás. Um relato que se tornou motivo de assombração e pesadelo para os seguidores do Deus-Serpente Set. Consta que havia uma intriga pelo poder entre duas famílias antigas da casta estígia, que não conseguiu evitar que dois de seus filhos se envolvessem na velha fatalidade do amor proibido, essa baboseira de povos civilizados. Keniamun, jovem nobre de uma das famílias, secretamente mantinha um romance com a princesa Hamadhi, filha do rei daquela época, Sobek. O rei não tinha outro herdeiro para o trono, a não ser ela, e fez um voto para o templo de Set, pondo-a sobre a guarda e a tutela do sumo-sacerdote, Ghemnon, o negro. Era chamado assim, porque carregava sobre seus ombros o peso da escuridão característica da magia negra estígia e o rei confiava nele, apoiando-se nas trevas do oculto para sua casta jamais perder o poder. Ghemnon aproveitou para iniciar a garota nas artes negras do templo, tornando-a uma Shebaki, que significa ser uma espécie de sacerdotisa-guardiã do templo. No entanto, o destino aproximou-a de Keniamun e ambos apaixonaram-se perdidamente. Ghemnon descobriu tudo em pouco tempo e preveniu-a da desgraça que se abateria sobre ambos, principalmente com ela, que fizera um pacto de sangue com o próprio Deus-Serpente num ritual onde o monstruoso deus apareceu em pessoa. A jovem desesperou-se e contou tudo ao amado, que, levado por um impulso imaturo natural de sua juventude, convidou-a para fugir e ainda tentou matar Ghemnon, fracassando em seu intento e pagando com a própria alma, pois o demoníaco sacerdote usou sua magia trevosa para transformá-lo em um monstro meio homem e meio serpente, um ser semelhante a uma antiga raça que aqui existiu há tempos imemoriais, os filhos da abominável entidade Echidnah. O amaldiçoado jovem desapareceu em meio às tumbas antigas das pirâmides assombradas, e tornou-se uma das figuras lendárias e espectrais dali, de acordo com os relatos do povo estígio, que evita falar muito nisso até hoje. A princesa Hamadhi, que nada sabia do acontecido, ficou transtornada pelo desaparecimento dele e resolveu falar com seu pai, contando toda a história do amor entre ela e o rapaz, e ainda acusando-o de haver descoberto tudo e ter dado sumiço nele, através do velho Ghemnon, de quem ela também desconfiava. Na verdade, uma de suas acompanhantes no palácio disse a ela que havia visto Keniamun entrando furtivamente no templo de Set em uma noite há dias, portando algo que parecia ser uma grande lâmina. Esta mesma acompanhante era a única que sabia do romance da princesa com o jovem. Para piorar as coisas, o rei mandou que a filha fosse enclausurada no templo, e a família de Keniamun pediu uma audiência com o rei, comunicando o desaparecimento do rapaz. Durante o evento que se seguiu, houve uma violenta discussão causada pelas velhas diferenças entre as famílias, algo que veio à tona com acusações sobre o que poderia ter acontecido ao jovem, e o rei mandou prender todos em um antro de onde ninguém jamais voltou: o templo maldito de Esphynx, um lugar ermo não muito distante de Luxur, consagrado a um deus animalesco com uma característica humana que teria caminhado aqui numa era de caos antes do primeiro homem, junto com outras criaturas semelhantes. E este foi o fim da casta nobre da família de Keniamun.
O bárbaro fez uma pausa, pegando o odre de vinho, tomando um gole e oferecendo-o à guerreira que aceitou, bebendo um pouco, também.
- E a princesa? – perguntou ela. – O que aconteceu a ela, confinada ao templo?
Conan reclinou-se sobre sua própria sela, posta sobre um montículo de areia e vegetação atrás de si e continuou, fitando a imensidão do céu estrelado.
- Dizem que a princesa ficou isolada no templo e recusou-se a participar dos costumeiros rituais que ali aconteciam. Ghemnon a vigiava o tempo quase todo e passou a nutrir uma certa atração pela jovem. O velho feiticeiro já havia levado para seus aposentos escuros várias mulheres, sendo ou não parte do templo de Set; mas a bela Hamadhi era algo diferente. Ele jamais quis ter permanentemente nenhuma delas, e chegara mesmo a dar cabo de algumas mulheres após usá-las e seviciá-las. Porém, com a princesa sob sua guarda, algo inusitado surgiu em seus sentimentos. Pois bem, Hamadhi sentiu algo estranho em seu comportamento e ficou em alerta. Existem vários objetos de culto estígio que, no mínimo, podem ser considerados reprováveis e mesmo repugnantes para as pessoas de outras raças. Há entidades da escuridão, animais, plantas e até insetos. Sabe-se que o templo de Set guarda tesouros, ofertados pelos reis estígios desde há muito, e os Olhos de Set são um deles. Trata-se de duas grandes gemas de uma espécie de pedra desconhecida similar ao rubi em formato de olhos, engastadas em duas elipses de ouro e esmeralda. E a área onde essa preciosidade está é guarnecida por uma criatura repugnante, que até mesmo uma víbora gigante evitaria. O bicho parece ser uma aranha gigante, que Jabatha disse ter visto quando esteve no lugar tentando saquear qualquer coisa, junto com dois ladrões de Darfar; e os mesmos tiveram um destino pavoroso. Foi nessa época que ele soube da história que eu estou contando. Temerosa de alguma atitude profana da parte de Ghemnon, a princesa tentou fazer chegar ao pai uma mensagem contendo seus temores, mas foi inútil, pois o velho bruxo interceptou a mesma, aniquilando seu portador e mostrando a ela o quanto seria desagradável para ela e o reino outra tentativa daquele tipo. O desespero e ódio, bem como a repugnância para com o sacerdote, enraizaram-se no coração de Hamadhi, que tomou uma trágica decisão ao ler um velho papiro, escondido numa parede de um aposento vizinho ao local onde ficam os Olhos de Set. O que ali estava escrito era inconcebível, pois mostrava um ritual de possessão de uma criatura infernal, a entidade Alankhabut, um espectro horripilante com traços aracnídeos. E sem mais esperanças, além da perda irreparável de seu amor, a princesa decidiu enveredar por aquele caminho aparentemente sem volta. O que dizia no papiro falava de um rito negro de comunhão com a entidade, através de sangue, veneno e palavras mágicas escritas em uma língua antiqüíssima. Somente o conhecimento que havia adquirido com o sumo-sacerdote possibilitaram-lhe a tradução e compreensão daquilo. E, em uma noite, quando a lua estava em seu apogeu, Hamadhi concretizou seu plano fatal. Mas não sem o testemunho da própria garota que lhe servia de companhia no templo, pois foi ela que guardou para si o conhecimento de todos esses acontecimentos, narrando depois, quase sob tortura, para o Rei Sobek. Naquela noite, a princesa fingiu permanecer em seus aposentos no templo, sob a vigília inexorável de Ghemnon, mas saiu de lá através de uma passagem secreta que ela havia descoberto há vários dias, atrás da alcova onde ficava seu pequeno leito. Em meio à escuridão, ela conseguiu chegar ao compartimento que dava para a câmara onde ficavam os Olhos de Set. Hamadhi mandou que a jovem acompanhante a deixasse e a liberou de sua função, mas a moça recusou-se, por ser por demais fiel a ela e temer por si mesma, pois fora o rei em pessoa que lhe ordenou que fosse a sombra da princesa, onde quer que ela estivesse. Chegando ao ambiente, as duas constataram que havia ali uma atmosfera lúgubre e pesada, onde havia um cheiro repugnante e agridoce. Em um canto mais escuro, longe de uma espécie de altar onde ficavam as jóias, elas puderam observar vestígios de ossadas humanas, trituradas e espalhadas, e estremeceram enquanto davam-se as mãos, na semi-escuridão cortada apenas por dois grandes archotes postados em cada canto das paredes que cercavam o altar. E então, de algum ponto acima de suas cabeças, partiu um barulho semelhante a um chiado, seguindo de uma espécie de guincho pavoroso e uma coisa escura e grande caiu em sua frente, entre elas e o altar. A coisa, mesmo sob a luz dos archotes, tinha um tom negro em suas formas que logo deram a perceber a figura horripilante de uma aranha gigantesca, bem maior que um cão de bom tamanho. A coisa guinchava e suas oito patas moviam-se nervosamente, preparando-se para o ataque. Na cabeça grotesca do monstro, viam-se oito pontos brilhantes como rubis na escuridão, seus olhos, assim como um terrível par de pontiagudas quelíceras. A garota que acompanhava Hamadhi largou-lhe a mão e abriu a boca para gritar, mas a princesa, quase tão aterrorizada quanto ela, tapou sua boca com violência, ao mesmo tempo em que, com voz trêmula, murmurava as primeiras palavras do rito, conforme estava descrito no papiro. A criatura à sua frente avançou um pouco, guinchando, mas estacou, quando ela elevou a voz, repetindo as palavras. Não tivera interesse em saber como aquilo tivera origem em eras remotas, pois o funcionamento da magia negra inserida ali era tudo que importava. Afrouxou o aperto que fazia na boca da garota em choque e ordenou-lhe que ficasse parada e que podia virar o rosto, se quisesse. À frente delas, o gigantesco aracnídeo apenas se movia de leve e emitia um chiado e ela afastou-se da garota, tirando de dentro de suas vestes, desnudando-se em seguida, uma pequena adaga ricamente trabalhada, postando a lâmina com seu gume afiado diretamente entre seus seios. A assombrada acompanhante virara o rosto para não encarar a criatura, mas acabou cedendo à curiosidade, espantando-se ao ver a princesa completamente nua, com a adaga na mão e falando numa língua totalmente incompreensível, aparentemente sem medo da imagem de pesadelo vivo à sua frente. Hamadhi deu um passo à frente, na direção do monstro e então, ainda repetindo as palavras do ritual, parecia estar em transe, quando passou o fio da lâmina no próprio peito, entre os seios, aparentemente sem nenhuma dor. O sangue correu até seu umbigo e a aranha gigante emitiu um guincho apavorante que gelou o sangue da jovem acompanhante que assistia àquilo paralisada e muda de terror, agora. O que aconteceu depois foi algo concebível apenas em um pesadelo de uma mente doentia, mas infelizmente era real. A criatura avançou para a jovem nua à sua frente, que continuava a repetir as palavras com mais intensidade, abraçando-a com duas repugnantes patas dianteiras, emitindo um guincho agudo. A garota sequer soltou um gemido, quando as quelíceras do aracnídeo envolveram seu pescoço, sufocando sua voz, enquanto ainda proferia o estranho encantamento. Neste instante, a pobre testemunha soltou um grito de horror, diante daquela cena hedionda. Alguns instantes depois, a criatura largou Hamadhi que, aos olhos de sua desafortunada companheira, parecia estar diferente. A aranha retrocedeu e ficou parada, entre a princesa e o altar com as jóias, e de repente dobrou-se nas patas enormes, arriando no chão sem fazer nenhum barulho. Ao mesmo tempo, Hamadhi virou-se para sua companheira e ela soltou outro grito, apontando para a princesa. A nudez de Hamadhi acentuava ainda mais o que acontecera com sua pele, que parecia ter ficado mais pálida, sob a luz bruxuleante dos archotes. Ela aproximou-se devagar da moça e ela percebeu que sua pele tinha um certo brilho pálido com manchas escuras e cônicas na área do ventre e seus cabelos estavam mais escuros, mais negros em contraste com a face coberta de palidez, e havia uma mudança em seus olhos. Eles eram agora duas brasas de vermelho-amarelado sem íris, cercados por pálpebras escuras, encimadas por sobrancelhas espessas e arqueadas. Nada havia ali que dissesse que aquela figura, que agora erguia as mãos com dedos em forma de garras com unhas negras e aduncas, tivesse sido a princesa estígia Hamadhi, momentos antes. O terror estampado no rosto da garota, que testemunhara todo aquele evento funesto, parecia confundir a criatura à sua frente, a qual inclinava a cabeça de lado como se quisesse entender a razão de seu medo extremo. Abriu a boca de lábios escuros que emoldurava dentes afiados, de onde saiu um som grotesco, inumano, o que fez com que a jovem já quase enlouquecida disparasse em fuga na direção de onde vieram e depois, para a saída do templo, procurando na noite um refúgio seguro, longe daquele lugar maldito. E durante aquela mesma noite, sucederam-se fatos que ficaram durante muito tempo marcados na memória da velha Stygia. O bruxo Ghemnon recebeu em seus aposentos a visita da morte, que veio buscá-lo de uma forma que lhe arrancou gritos de pavor e desespero que acordaram todo o templo e suas imediações, mas ninguém ousou sair para ver o que era, até o amanhecer, quando o encontraram despido em sua alcova, onde ele se recolhia à noite, com a pele toda arroxeada e profundas marcas violáceas e sangrentas em seu peito e no pescoço. Sua face expressava um horror indizível, traduzido pelos olhos arregalados e a boca escancarada, de onde saía uma gosma escura e fétida. Os outros sacerdotes ainda tiveram a desconcertante surpresa de encontrar a aranha, a monstruosa guardiã na câmara, morta, embora nada tivesse sido tocado no ambiente. E logo teriam que arranjar outra para substituí-la na região de Kush. E o rei Sobek foi comunicado que, nos aposentos da princesa no templo, seu corpo nu foi encontrado sem vida, com as características anormais que a jovem acompanhante, desaparecida por alguns dias e que depois retornara para o palácio, testemunhara. Apesar de o rei ter tentado esconder alguns detalhes daquele desfecho bizarro naquela noite, os boatos espalharam-se por toda Luxur contendo versões ainda piores que a realidade, que já era inacreditável em qualquer circunstância. Com pressa para que tudo caísse logo no esquecimento entre a corte e o povo, o rei ordenou que removessem o cadáver da filha naquele mesmo dia, para a região lúgubre das pirâmides assombradas, mais precisamente para a pirâmide arruinada de Dhakshur, cuja construção jamais fora concluída e que abrigava sacerdotes de uma seita antiga que viviam no mais completo isolamento. A princesa não foi exatamente mumificada, tendo apenas seu corpo envolto em bandagens para esconder a estranha e inexplicável aparência que havia assumido. Mas vieram relatos estranhos trazidos pelos viajores que passavam pela região alguns dias após, sobre acontecimentos assombrosos na área de Dhakshur, nos quais constava até mesmo o abandono dos citados sacerdotes que viviam lá. E os boatos começaram e duraram anos, e até séculos, sobre uma assombração monstruosa que se instalara na pirâmide arruinada, poucos dias após o que se passara no templo de Set.
Conan parou de falar e estava imóvel, ainda fitando o céu noturno. Sonja ainda esperava que ele dissesse algo mais, de tão absorvida que estava naquela história sinistra.
- Então, isso explica um pouco o sentido da figura neste pedaço de pano... – disse ela, manuseando o farrapo de tecido. – mas, afinal, o que tem de valor para nós, ou qualquer outra pessoa, naquele lugar?
- Os Olhos de Set, que são procurados há milhares de anos – respondeu o cimério. – O rei Sobek mandou que fechassem a câmara no templo, mesmo com a relutância dos sacerdotes remanescentes, e ordenou que levassem as jóias com ela, para Dhakshur. Aquelas jóias têm um valor incalculável, e qualquer mercador, ou mesmo um rei, pagaria um valor sem igual por elas.
- Eu pensei que a tais jóias ainda estavam no templo, e que o kushita que te contou tudo isso tivesse ido lá para roubá-las também.
- Ele também pensava a mesma coisa, mas como se sabe, lá existem outras coisas interessantes para serem adquiridas; as ricas oferendas dos reis e rainhas da Stygia, ao longo do tempo.
- E sobre a tal assombração de Dhakshur? O que você acha? – perguntou ela, arqueando as sobrancelhas ruivas.
Conan olhou para ela esboçando um sorriso e disse:
- Acho que você ainda é muito menina, e se impressiona com contos de assombração; portanto, dê-me este troço que eu seguirei sozinho ao amanhecer.
A hirkaniana fechou a cara e vociferou, empurrando a coxa dele com um pé:
- Para o inferno, cimério maldito! Pode até ir sozinho, mas a chave para o butim fica comigo! E nunca me trate como uma menina idiota!
Conan deu uma gargalhada, e ela acalmou-se e pôs a rir-se também.
- Pois vamos dormir, mulher, porque temos um longo caminho à frente ao amanhecer e, por Crom, já está começando a chegar o frio do deserto. Seria bom que nós... – e ele deixou que ela entendesse a mensagem.
- Se está pensando em dividir meu cobertor comigo, pode esquecer, cimério. Conheço muito bem suas velhas intenções. A menos que... meu sabre fique encostado em suas costelas...
Conan moveu o corpo aproximando-se dela, mas sem sorrir desta vez.
- Posso suportar a pressão de um sabre por uma noite, ruiva. Sem problemas.
A fogueira já começava a perder seu foco de lume e ambos prepararam-se para conciliar o sono, envoltos pelo resto da noite e o frio do deserto.

FIM DA SEGUNDA PARTE

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