Lissa de Gazal

(por Robert E. Howard e Fernando N. de Aragão)



Três homens se acocoravam ao lado de um poço d’água, sob o céu do pôr-do-sol, que pintava o deserto de marrom-escuro e vermelho. Um deles era branco, e seu nome era Amalric, filho de um nobre da casa de Valerus, do oeste da Aquilônia; os outros dois eram ghanatas – uma raça negra, misturada com sangue shemita –, e seus farrapos mal escondiam suas magras e vigorosas formas negras. Chamavam-se Gobir e Saidu; pareciam abutres, ao se agacharem próximos ao poço d’água.

Perto dali, um camelo ruminava ruidosamente, e um par de cavalos cansados passava o focinho em vão pela areia nua. Os homens mastigavam ruidosa e sombriamente as tâmaras secas, os negros concentrados apenas no trabalho de seus maxilares e o branco olhando ocasionalmente para o inerte céu vermelho, ou para o outro lado da monotonia horizontal onde as sombras se aglomeravam e aprofundavam. Foi o primeiro a ver o cavaleiro, que se aproximava e puxava as rédeas, com um movimento brusco que fez a montaria empinar.

O montador era um gigante, cuja pele mais escura que a dos outros dois, assim como seus lábios grossos e nariz largo, mostrava um sangue negro em abundância vastamente predominante. Suas largas calças de seda, franzidas ao redor dos tornozelos nus, eram seguras por um largo cinto, enrolado várias vezes ao redor de sua enorme barriga; aquele cinto também segurava uma cimitarra de ponta flamejante, a qual poucos homens conseguiriam empunhar com apenas uma mão. Com aquela cimitarra, o homem era famoso em qualquer lugar por onde cavalgassem os filhos de pele escura do deserto. Era Tilutan, o orgulho de Ghanata.

Atravessada na parte frontal da sela, jazia uma forma inerte, ou melhor, pendia. O ar assobiou por entre os dentes dos ghanatas, ao vislumbrarem os membros brancos. Era uma jovem branca que pendia na frente da sela, o rosto para baixo, seu cabelo solto caído sobre o estribo, numa ondulada cascata negra. O negro sorriu largamente, num reluzir de dentes brancos, e a lançou negligentemente sobre a areia, onde ela jazeu frouxa e inconsciente. Instintivamente, Gobir e Saidu se voltaram para Amalric, e Tilutan o observou de sua sela. Três negros contra um branco. A entrada de uma mulher branca em cena produziu uma mudança sutil na atmosfera.

Amalric era o único que aparentava indiferença à tensão. Lançou para trás as rebeldes mechas loiras e olhou de forma indiferente para a figura inerte da garota. Se houve um brilho momentâneo em seus olhos cinzas, os outros não perceberam.

Tilutan desceu de sua sela, lançando com desdém as rédeas para Amalric.

- Cuide de meu cavalo – disse ele. – Por Jhil, não encontrei o raro antílope do deserto, mas achei esta pequena potranca. Ela estava cambaleando pelas areias, e caiu no momento em que eu me aproximava. Acho que desmaiou de cansaço e sede. Afastem-se daí, seus chacais, e me deixem dar uma bebida a ela.

O enorme negro a estirou próxima ao poço, e começou lavando-lhe o rosto e pulsos, e deixando caírem uns poucos pingos entre os lábios ressecados dela. Ela logo gemeu e se mexeu vagamente.

Gobir e Saidu se agacharam com as mãos nos joelhos, olhando fixamente para ela, por sobre o ombro robusto de Tilutan. Amalric ficou um pouco afastado deles, seu interesse parecendo apenas casual.

- Ela está voltando a si – anunciou Gobir.

Saidu não disse nada, mas lambeu os lábios de forma involuntária e animal.

O olhar de Amalric viajou impessoalmente sobre a forma caída, desde as sandálias dilaceradas até a coroa solta de lustrosos cabelos negros. A única roupa dela era um vestido, amarrado à cintura. Este deixava nus os braços, pescoço e parte dos seios; e a saia terminava vários centímetros acima dos joelhos.

Nas partes à mostra, o olhar dos ghanatas descansava com intensidade devoradora, percebendo os detalhes suaves – infantis em sua branca delicadeza, embora arredondados em florescente feminilidade adulta.

Amalric encolheu os ombros.

- Quem é depois de Tilutan? – ele perguntou despreocupadamente.

Um par de cabeças magras se virou em direção a ele, olhos injetados em sangue reviraram diante da pergunta, e em seguida os negros se viraram e encararam um ao outro. Uma súbita rivalidade crepitou eletricamente entre os dois.

- Não briguem – argumentou Amalric. – Joguem os dados.

Sua mão saiu de dentro de sua túnica gasta, e ele deixou cair um par de dados diante deles. Uma mão em forma de garra os segurou.

- Sim! – concordou Gobir. – Jogaremos... depois de Tilutan, o vencedor!

Amalric lançou um olhar em direção ao gigante negro, que ainda se curvava sobre sua cativa, revivendo-lhe o corpo exausto. Enquanto ele olhava, as longas pálpebras dela se abriram: intensos olhos violetas miraram para cima, perplexos, diretamente no rosto cobiçoso do negro. Uma explosiva exclamação de prazer escapou dos lábios grossos de Tilutan. Puxando fortemente um cantil do cinto, ele o pôs nos lábios dela. Ela bebeu o vinho mecanicamente. Amalric evitou o olhar errante dela; um branco e três negros – todos tão fortes quanto ele.

Gobir e Saidu se curvaram sobre os dados; Saidu os colocou na palma em forma de concha, soprou neles para ter sorte, sacudiu e lançou. Duas cabeças de abutre se inclinaram sobre os cubos que giravam na luz fosca.

E Amalric puxou e atacou num só movimento. A lâmina atravessou um pescoço grosso, cortando a traquéia, e Gobir caiu sobre os dados, esguichando sangue, sua cabeça pendurada numa tira.

Simultaneamente, Saidu, com a rapidez desesperada de um homem do deserto, se ergueu de um pulo e investiu ferozmente em direção à cabeça do matador. Amalric mal teve tempo para deter o ataque com a espada erguida.

A cimitarra sibilante bateu a lâmina reta contra a cabeça do branco, fazendo-o cambalear. Amalric largou a espada e lançou ambos os braços ao redor de Saidu, puxando-o para uma luta engalfinhada, onde sua cimitarra era inútil. Sob os farrapos do homem do deserto, a estrutura magra e forte era como cordas de aço.

Tilutan, percebendo instantaneamente o que acontecia, havia deixado a garota cair e se levantou com um rugido. Correu em direção aos dois que se engalfinhavam, como um touro atacando, sua grande cimitarra lhe brilhando na mão. Amalric o viu chegando, e sua pele gelou. Saidu se torcia e puxava, dificultado pela cimitarra, à qual ainda tentava inutilmente usar contra seu antagonista. Os pés deles se torciam e batiam na areia, seus corpos posicionados um contra o outro. Amalric arremeteu o calcanhar calçado em sandália contra o desnudo peito do pé do ghanata, sentindo-lhe os ossos quebrarem. Saidu uivou e pulou convulsivamente, e Amalric lhe ajudou o pulo com um desesperado impulso de si mesmo. Cambaleavam feito bêbados no momento em que Tilutan atacou com um impulso giratório de seus ombros largos. Amalric sentiu o aço lhe raspar sob parte do braço, e entrar ruidosa e profundamente no corpo de Saidu. O ghanata deu um grito de agonia, e seu estremecimento convulsivo o soltou do aperto de Amalric. Tilutan urrou uma praga furiosa e, soltando seu aço com um puxão violento, lançou o homem moribundo para um lado; mas, antes que pudesse atacar de novo, Amalric, com a pele arrepiada de medo pela grande lâmina curva, havia se engalfinhado com ele.

O desespero caiu sobre ele, ao sentir a força do negro. Tilutan era mais sábio que Saidu. Deixou cair a grande cimitarra e, com um bramido, agarrou o pescoço de Amalric com ambas as mãos. Os grandes dedos negros apertavam como ferro, e Amalric, se esforçando em vão para se livrar do aperto deles, foi levado para baixo, com o grande peso do ghanata apertando-o contra o solo. O homem menor foi sacudido como um rato nas presas de um cão. Sua cabeça foi batida selvagemente contra a terra arenosa. Como numa névoa vermelha, ele viu o rosto feroz do negro, os lábios grossos contorcidos para trás num sorriso bestial de ódio e os dentes brilhando. Um rosnado bestial lhe saiu violentamente da grossa garganta negra.

- Você a quer, seu cão branco! – vociferou o ghanata, louco de fúria e desejo. – Arrrrghhh! Vou quebrar suas costas! Vou arrancar seu pescoço! Eu... minha cimitarra! Vou decepar sua cabeça e fazer a mulher beijá-la!

Após um último empurrão feroz da cabeça de Amalric contra a acumulada areia dura, Tilutan meio o levantou e arremessou violentamente para baixo num excesso de fúria bestial. Erguendo-se, o negro correu, se curvando feito um macaco, e pegou sua cimitarra onde ela jazia como uma larga lua crescente de aço na areia. Gritando em feroz exultação, ele se virou e atacou novamente, brandindo a lâmina no alto. Amalric se ergueu vagarosamente para enfrentá-lo – atordoado, abalado e nauseado, devido à brutalidade a que fora submetido.

O cinto de Tilutan havia se desenrolado na luta, e agora uma das extremidades balançava ao redor de seus pés. Ele tropeçou e caiu de ponta-cabeça, abrindo os braços para se livrar. A cimitarra lhe voou da mão        .

Amalric, galvanizado, apanhou a cimitarra e deu um passo cambaleante para a frente. O deserto boiava obscuramente aos seus olhos. Na penumbra à sua frente, ele viu o rosto de Tilutan subitamente pálido. A boca larga se escancarou, a parte branca dos olhos se revirou. O negro se congelou sobre um joelho e uma mão, como se incapaz de outro movimento. Em seguida, a cimitarra caiu, dividindo a redonda cabeça raspada até o queixo, onde seu movimento descendente foi detido por uma repugnante sacudidela. Amalric teve uma vaga impressão de um rosto negro – dividido por uma linha vermelha que se alargava – se desvanecendo nas sombras que aumentavam; então, as trevas rapidamente tomaram conta dele.


Algo suave e refrescante tocava o rosto de Amalric com bondosa persistência. Ele tateou às cegas, e sua mão se fechou em algo morno, firme e elástico. Em seguida, sua visão clareou, e ele olhou para um delicado rosto oval, emoldurado em brilhante cabelo negro. Como se num transe, ele contemplou mudo, se demorando avidamente em cada detalhe dos lábios cheios e vermelhos, intensos olhos violetas e pescoço alvo como alabastro. Com um sobressalto, ele percebeu que a visão falava numa suave voz melodiosa. As palavras eram estranhas, embora tivessem uma ilusória familiaridade. Uma pequena mão branca, segurando um gotejante pedaço de seda, lhe alisava gentilmente a latejante cabeça e o rosto. Ele se sentou, atordoado.

Era noite sob os céus salpicados de estrelas. O camelo ainda ruminava, e um cavalo relinchava inquieto. Não muito longe, jazia uma negra figura volumosa, com a cabeça dividida numa horrível poça de sangue e miolos. Amalric olhou para a garota, que se ajoelhava ao seu lado e falava em sua suave língua desconhecida. Quando as névoas se clarearam em seu cérebro, ele começou a entendê-la. Tentando recordar de línguas meio esquecidas, que havia aprendido e falado no passado, ele se lembrou de uma linguagem usada por uma classe de eruditos numa província meridional de Koth.

- Quem é você, garota? – ele indagou, prendendo-lhe uma das pequenas mãos nos próprios dedos endurecidos.

- Sou Lissa – O nome foi falado quase sugerindo uma balbuciação. Era como a ondulação de um pequeno curso d’água – Estou feliz por você estar consciente. Temia que não estivesse vivo.

- Mais um pouco, e eu não estaria. – ele murmurou, olhando para o vulto medonho que havia sido Tilutan. Ela empalideceu, e se recusou a seguir-lhe o olhar. Sua mão tremeu e, na proximidade em que estavam, Amalric achou que poderia lhe sentir o rápido palpitar do coração.

- Foi horrível – ela gaguejou. – Parecia um pesadelo. Ódio... golpes... e sangue...

- Poderia ter sido pior – ele resmungou.

Ela parecia sensível a cada mudança de flexão de voz ou humor. Sua mão livre se moveu furtiva e timidamente até o braço dele.

- Eu não quis lhe ofender. Foi muito corajoso de sua parte arriscar sua vida por uma estranha. Você é nobre como os cavaleiros sobre os quais já li.

Ele dirigiu um rápido olhar para ela. Os grandes olhos claros encontraram os dele, refletindo apenas o pensamento que ela havia expressado. Ele começou a falar, e em seguida mudou de idéia e disse outra coisa:

- O que está fazendo no deserto?

- Eu vim de Gazal – ela respondeu. – Eu... eu fugia. Já não conseguia agüentar mais. Mas fazia calor, e eu estava só e cansada, e só via areia, areia... e o chamejante céu azul. As areias queimavam meus pés, e minhas sandálias se gastaram rapidamente. Eu estava com muita sede, e meu cantil logo se esvaziou. E então, eu quis retornar a Gazal, mas uma direção parecia igual a outra. Não sabia que caminho seguir. Estava terrivelmente assustada, e comecei a correr na direção onde eu achei que ficava Gazal. Não lembro de muita coisa depois disso; corri até não conseguir mais, e devo ter desmaiado na areia em brasa por algum tempo. Lembro de ter me levantado e cambaleado; e, finalmente, ouvi alguém gritando e vi um homem negro num cavalo negro, cavalgando em minha direção, e depois perdi a consciência até acordar e me encontrar deitada com a cabeça no colo daquele homem, enquanto ele me dava vinho para beber. Depois, houve gritos e luta... – ela estremeceu. – Quando tudo acabou, me arrastei até onde você jazia como um homem morto, e tentei lhe trazer de volta à...

- Por quê? – ele indagou.

Ela parecia embaraçada.

- Por quê? – ela disse, meio sem jeito. – Ora, você estava ferido... e... bem, é o que qualquer um faria. Além disso, percebi que você estava lutando para me proteger destes negros. O povo de Gazal sempre disse que os negros eram perversos e maltratavam os indefesos.

- Essa característica não é exclusiva dos negros – murmurou Amalric. – Onde fica esta Gazal?

- Não deve estar longe – ela respondeu. – Caminhei um dia inteiro... depois, não lembro por quanta distância o negro me carregou, depois de me encontrar. Mas ele deve ter me encontrado quase ao pôr-do-sol, de modo que não deve ter vindo de muito longe.

- Em qual direção? – ele indagou.

- Não sei. Viajei para leste, quando deixei a cidade.

- Cidade? – ele resmungou. – A um dia de viagem daqui? Achei que só houvesse deserto por mil milhas.

- Gazal fica no deserto – ela respondeu. – Está entre as palmeiras de um oásis.

Colocando-a de lado, ele ficou de pé, praguejando suavemente enquanto passava os dedos no pescoço, cuja pele estava contundida e rasgada. Depois, examinou os três negros e não encontrou vida em nenhum. Em seguida, os arrastou, um a um, a uma distância curta para o deserto. Em algum lugar, os chacais começaram a ganir. De volta ao poço d’água, onde a garota se acocorava pacientemente, ele praguejou ao encontrar apenas o garanhão negro de Tilutan e o camelo. Os outros cavalos haviam arrebentado suas rédeas e fugido durante a luta.

Amalric se dirigiu à garota e lhe ofereceu um punhado de tâmaras secas. Ela as mordiscou ansiosamente, enquanto o outro se sentava e a observava, com os punhos no queixo e uma impaciência crescente lhe palpitando nas veias.

- Por que fugiu? – ele perguntou abruptamente. – Você é uma escrava?

- Não temos escravos em Gazal – ela respondeu. – Ah, eu estava cansada... muito cansada da eterna monotonia. Eu desejava ver alguma coisa do mundo externo. Diga-me, de qual terra você vem?

- Nasci nas colinas ocidentais da Aquilônia – ele respondeu.

Ela bateu palmas, como uma criança encantada:

- Eu sei onde é! Já vi nos mapas. É o país mais ocidental dos hiborianos, e seu rei é Epeus, o Espadachim!

Amalric ficou nitidamente chocado. Sua cabeça se levantou bruscamente e ele olhou fixamente para sua bela companhia.

- Epeus? Ora, Epeus está morto há 900 anos. O nome do rei é Vilerus.

- Ah, claro – ela disse, um tanto embaraçada. – Sou tola. Claro que Epeus foi rei há nove séculos atrás, como você diz. Mas me conte... conte-me tudo sobre o mundo!

- Bem, é um pedido grande – ele respondeu, perplexo. – Você nunca viajou?

- Esta é a primeira vez que saí dos muros de Gazal – ela declarou.

O olhar dele estava fixo na curva dos seios brancos dela. Ele não estava interessado nas aventuras dela no momento, e Gazal, por ele, podia ir ao Inferno. Ele começou a falar, e logo mudou de idéia e a agarrou rudemente nos braços, os músculos retesados para a luta que ele esperava. Mas não encontrou resistência. Seu suave corpo dócil estava sobre os joelhos dele, e ela olhava para ele um pouco surpresa, mas sem medo nem perplexidade. Era como uma criança, se entregando a um novo tipo de brincadeira. Alguma coisa no olhar dela o deixou embaraçado. Se ela tivesse gritado, chorado, lutado ou sorrido astutamente, ele saberia como lidar com ela.

- Em nome de Mitra, quem é você, garota? – ele perguntou asperamente. – Você não está afetada pelo sol, nem brincando comigo. Sua fala mostra que você não é uma moça ignorante do campo. Contudo, você parece não conhecer nada do mundo e de suas maneiras.

- Sou uma filha de Gazal – ela respondeu, sem saber o que fazer. – Se você visse Gazal, talvez entendesse.

Ele a ergueu e se sentou sobre a areia. Levantando-se, ele trouxe um manto de sela e o estirou para ela.

- Durma, Lissa – disse ele, com a voz áspera devido a emoções conflitantes. A inocência dela envergonhou o feroz e jovem soldado da fortuna, e ele renunciou à intenção de violentá-la. Ela achou que ele tivesse lutado contra os companheiros somente para salvá-la, e ele não a desiludiu. – Amanhã, pretendo conhecer Gazal.


Ao amanhecer, partiram na direção oeste. Amalric havia colocado Lissa sobre o camelo, mostrando a ela como manter o equilíbrio. Ela se agarrava à sela com ambas as mãos, mostrando não ter qualquer conhecimento sobre camelos, o que também surpreendeu o jovem aquiloniano. Criada no deserto, a jovem nunca antes havia montado um camelo, e, até a noite anterior, nunca havia montado ou sido carregada num cavalo. Amalric havia feito um tipo de manto para ela, e ela o vestiu sem questionar, nem perguntar de onde vinha, aceitando-o como aceitava todas as coisas que ele fazia para ela – com gratidão, mas cegamente, sem perguntar o motivo. Amalric não contou a ela que a seda, que a protegia do sol, outrora havia coberto a pele negra de seu raptor.

- Sei que a Aquilônia fica longe deste deserto – disse ela. – A Stygia fica no meio, assim como as Terras de Shem e outros países. Como veio parar aqui, tão longe de sua terra natal?

Ele cavalgou em silêncio por um espaço de tempo, sua mão na corda que guiava o camelo.

- Argos e Stygia estavam em guerra – ele disse abruptamente. – Koth se envolveu. Os kothianos insistiram numa invasão simultânea à Stygia. Argos recrutou um exército de mercenários, os quais entraram em navios e navegaram ao longo da costa. Ao mesmo tempo, um exército kothiano invadiria a Stygia por terra. Eu fazia parte daquele exército mercenário. Encontramos a frota stígia e a derrotamos, mandando-a de volta para dentro de Khemi. Iríamos desembarcar, saquear a cidade e avançar ao longo do curso do Styx, mas nosso almirante era cauteloso. Nosso líder era o Príncipe Zapayo da Kova, um zíngaro. Navegamos para o sul, até alcançarmos as selvas das costas de Kush. Desembarcamos lá, e os navios ancoraram, enquanto o exército avançava para leste, ao longo da fronteira stígia, queimando e saqueando à medida que avançávamos. Nossa intenção era virar para o norte, num determinado ponto, e atacar dentro do coração da Stygia, para formarmos uma junção com o exército kothiano, o qual estava presumivelmente avançando do norte. Então, chegou a notícia de que fomos traídos. Koth havia feito as pazes em separado com os stígios. Um exército stígio estava avançando em direção ao sul para nos deter, enquanto outro havia nos removido da costa.

“Desesperado, o Príncipe Zapayo concebeu a louca idéia de marcharmos para leste, na esperança de contornarmos a fronteira stígia e finalmente chegarmos às terras de Shem Oriental. Mas o exército do norte nos alcançou. Giramos e lutamos. Guerreamos o dia inteiro, e os mandamos de volta ao acampamento deles. Mas no dia seguinte, o exército que nos perseguia veio do oeste e, pego entre as hostes, nosso exército deixou de existir. Estávamos destroçados, aniquilados, destruídos. Poucos conseguiram fugir. Mas quando caiu a noite, escapei com meu companheiro, um cimério chamado Conan... um homem feroz, com a força de um touro.

“Cavalgamos para o sul, em direção ao deserto, pois não havia outra direção pela qual pudéssemos ir. Conan havia estado antes nesta parte do mundo, e ele acreditava que tínhamos uma chance de sobreviver. Bem ao sul, encontramos um oásis, mas cavaleiros stígios nos perseguiram, e fugimos novamente, de oásis em oásis, fugindo, passando fome e sede, até nos encontrarmos numa terra estéril e desconhecida, de areia resplandecente e seca. Cavalgamos até nossos cavalos cambalearem e ficarmos a meio caminho do delírio. Então, numa noite, vimos fogueiras e nos aproximamos delas, nos aventurando desesperadamente na possibilidade de fazermos amizade com eles. Assim que ficamos ao alcance, uma chuva de flechas nos recebeu. O cavalo de Conan foi atingido e empinou, derrubando seu montador. O pescoço dele deve ter se quebrado feito um graveto, pois ele não se mexeu mais. Fugi na escuridão, de alguma forma, embora meu cavalo tenha morrido sob mim. Tive apenas um vislumbre dos atacantes: homens altos, magros e marrons, usando estranhas roupas bárbaras.

“Aventurei-me a pé pelo deserto, e terminei na companhia daqueles três abutres que você viu ontem. Eram chacais... ghanatas, membros de uma tribo de salteadores, de sangue misturado: negro e sabe Mitra quais outros. A única razão pela qual não me mataram foi porque eu não tinha nada que eles quisessem. Por um mês, fiquei perambulando e roubando com eles, pois não havia mais nada que eu pudesse fazer”.

- Eu não sabia que era assim – ela murmurou timidamente. – Disseram que havia guerras e crueldade no mundo lá fora, mas parecia como um sonho e muito distante. Mas, ao lhe ouvir falar de traição e batalha, parece quase como se a estivesse vendo.

- Nunca algum inimigo ataca Gazal? – ele indagou.

Ela sacudiu a cabeça:

- Os homens cavalgam longe de Gazal. Algumas vezes, já vi pontos negros se moverem em fileiras ao longo dos horizontes, e os idosos disseram serem exércitos indo para a guerra; mas eles nunca se aproximam de Gazal.

Amalric sentiu um vago desconforto se mexer nele. Este deserto, aparentemente vazio e sem vida, continha apesar disso algumas das tribos mais ferozes da terra – os ghanatas, que perambulavam bem a leste; os mascarados tibus, os quais ele acreditava morarem mais ao sul; e, em algum lugar no distante sudoeste, ficava o semi-lendário império de Tombalku, governado por uma raça selvagem e bárbara. Era estranho uma cidade, no meio desta terra selvagem, ser deixada tão completamente só, a ponto de um dos seus habitantes não saber sequer o que significa guerra.

Quando ele virou o olhar para outro lugar, estranhos pensamentos o acometeram. Estaria a garota afetada pelo sol? Era ela um demônio em forma de mulher, saído do deserto para atraí-lo até alguma misteriosa perdição? Um olhar para ela, que se agarrava feito uma criança à alta crista da sela do camelo, foi suficiente para dissipar estes pensamentos. Logo, a dúvida o acometeu novamente. Estaria ele enfeitiçado? Teria ela lançado algum encanto sobre ele?

Avançaram constantemente para oeste, parando apenas para mordiscar tâmaras e beber água ao meio-dia. Amalric montou um frágil abrigo, com sua espada e bainha, e com os cobertores da sela, para protegê-la do sol escaldante. Cansada e enrijecida pelo caminhar do camelo, que se sacudia e curvava, ela teve que ser descida nos braços dele. Ao sentir novamente a doçura voluptuosa do corpo macio dela, ele sentiu um quente palpitar de paixão queimando-o todo, e ficou momentaneamente imóvel, intoxicado com a proximidade dela, antes de deitá-la sob a sombra da tenda improvisada.

Ele sentiu um toque de quase raiva, diante do olhar puro com o qual ela encontrou o seu, e diante da docilidade como ela entregava o corpo jovem às mãos dele. Era como se ela desconhecesse as coisas que poderiam machucá-la; sua confiança inocente o envergonhava e punha uma fúria indefesa dentro dele.

Enquanto comiam, ele não sentia o sabor das tâmaras que mastigava ruidosamente; seus olhos queimavam sobre ela, sorvendo avidamente cada detalhe de sua esbelta forma jovem. Ela parecia tão inconsciente das intenções dele quanto uma criança.

Quando a ergueu para colocá-la novamente sobre o camelo, e os braços dela lhe envolveram instintivamente o pescoço, ele estremeceu. Mas ergueu-a sobre a montaria dela, e retomaram a viagem.


Faltava pouco para o pôr-do-sol, quando Lissa apontou e gritou:

- Veja! As torres de Gazal!

Na orla do deserto, ele as viu – pináculos e minaretes, se erguendo num agrupamento verde-jade contra o céu azul. Se não fosse pela garota, ele acharia que a cidade-fantasma era uma miragem. Olhou curioso para Lissa: ela não mostrava sinais de alegria ansiosa em seu retorno ao lar. Ela suspirou, e seus ombros esguios pareciam cair.

À medida que se aproximavam, os detalhes foram ficando mais claros. Das areias do deserto, se erguia perpendicularmente o muro que cercava as torres. E Amalric viu que o muro estava desagregado em vários lugares. As torres também, ele viu, estavam bastante desmanteladas. Os tetos estavam caídos, as ameias quebradas apresentavam fendas, os pináculos se inclinavam como bêbados. O pânico tomou conta dele: seria esta uma cidade de mortos, para a qual cavalgava, guiado por uma vampira? Um rápido olhar para a jovem o tranqüilizou. Nenhum demônio poderia se esconder naquela aparência divinamente moldada. Ela o olhou com um estranho questionamento melancólico nos olhos intensos, se voltou indecisa em direção ao deserto e, em seguida, suspirando profundamente, virou o rosto em direção à cidade, como se agarrada por um desespero sutil e fatalista.

Nesse momento, através das fendas, Amalric viu formas se movendo dentro da cidade. Ninguém os chamou de longe, quando cavalgaram através de uma larga brecha na parede e adentraram uma rua ampla. De perto, delineada no sol que se punha, a decadência era bem mais visível. O capim crescia exuberante nas ruas, atravessando calçamentos despedaçados; o capim crescia exuberante nas pequenas praças públicas. Ruas e pátios eram igualmente alastrados com o entulho de alvenaria e pedras caídas.

Domos se erguiam, rachados e desbotados. Portadas se escancaravam, desprovidas de portas. Em toda a parte, a ruína havia colocado a mão. Então, Amalric viu um pináculo intacto: uma brilhante e vermelha torre cilíndrica, a qual se erguia no extremo sudeste da cidade. Ela brilhava por entre as ruínas.

Amalric a apontou.

- Por que aquela torre é menos arruinada que as outras? – ele perguntou.

Lissa ficou pálida; tremeu e pegou convulsivamente a mão dele.

- Não fale nela! – ela sussurrou. – Não olhe para ela... nem ao menos pense nela!

Amalric franziu a testa; a indescritível inferência das palavras dela mudou, de alguma forma, o aspecto da torre misteriosa. Agora ela parecia uma cabeça de serpente, se erguendo entre a ruína e a desolação.

O jovem aquiloniano olhou desconfiado ao redor. Apesar de tudo, ele não tinha garantia de que o povo de Gazal fosse recebê-lo de maneira amigável. Ele viu pessoas se movendo sem pressa ao redor das ruas. Pararam e olharam para ele e, por algum motivo, sua pele se arrepiou. Eram homens e mulheres de feições benévolas, e seus olhares eram suaves. Mas o interesse deles parecia muito leve – muito vago e impessoal. Não fizeram nenhum movimento para se aproximarem ou falarem com ele. Parecia ser a coisa mais comum do mundo um cavaleiro armado entrar na cidade deles, vindo do deserto – embora Amalric soubesse que não era o caso, e a forma despreocupada, como o povo de Gazal o recebeu, lhe causou um leve desconforto no peito.

Lissa falou com eles, apontando para Amalric, cuja mão ela ergueu, como uma criança afetuosa:

- Este é Amalric da Aquilônia, que me salvou do povo negro e me trouxe para casa.

Um murmúrio gentil de boas-vindas se ergueu das pessoas, e muitas delas se aproximaram para estenderem as mãos. Amalric achou que nunca tinha visto tais rostos, vagos e benévolos; seus olhos eram suaves e calmos, sem medo nem espanto. Todavia, não eram os olhos de bois estúpidos; eram mais os olhos de pessoas envolvidas em sonhos.

O olhar fixo deles lhe dava uma sensação de irrealidade; ele mal sabia o que lhes dizer. Seu pensamento era ocupado pela estranheza de tudo; estas pessoas silenciosas e tranqüilas, em suas túnicas de seda e sandálias macias, se movendo vagamente e sem rumo por entre as ruínas descoloridas. Um paraíso ilusório de lótus? De alguma forma, o pensamento naquela sinistra torre vermelha tocou uma nota dissonante.

Um dos homens, de rosto suave e sem rugas, mas de cabelos prateados, dizia:

- Aquilônia? Houve uma invasão... nós soubemos... o Rei Bragorus da Nemédia... como foi a guerra?

- Ele foi rechaçado – respondeu Amalric brevemente, resistindo a um estremecimento. Novecentos anos haviam se passado desde que Bragorus liderara seus lanceiros pelas fronteiras da Aquilônia.

Seu indagador não insistiu mais; as pessoas se dispersaram, e Lissa lhe puxou a mão.

Ele se voltou e deleitou os olhos sobre ela; seu suave corpo firme lhe ancorava as suposições errantes. Ela não era sonho; era real. Seu corpo era doce e palpável como creme e mel.

- Venha, vamos descansar e comer.

- E quanto ao povo? – ele hesitou. – Não vai contar a eles sobre suas experiências?

- Eles não dariam atenção, exceto por uns poucos minutos – ela respondeu. – Ouviriam um pouco, e depois se dispersariam. Mal sabem que eu havia partido. Venha!

Amalric levou o camelo para dentro de um pátio murado, onde o capim crescia alto e a água vazava, de uma fonte quebrada para dentro de um cocho de mármore. Ele os amarrou lá, e depois seguiu Lissa. Tomando-lhe a mão, ela o levou para o outro lado do pátio, para dentro de uma porta arcada. A noite havia caído.

No espaço aberto sobre o pátio, as estrelas se agrupavam, destacando os pináculos denteados. Lissa seguiu através de uma série de aposentos escuros, com a firmeza da longa prática. Amalric tateava atrás dela, guiado pela mão pequena dela na sua. Ele não achou aquela aventura agradável.

O cheiro de pó e decadência pairava nas trevas espessas. Sob seus pés, ele sentia, às vezes, ladrilhos quebrados e tapetes estragados. Sua mão livre tocava os arcos corroídos dos vãos das portas. Em seguida, as estrelas luziram através de um teto quebrado, mostrando a eles um escuro corredor sinuoso, com tapeçarias podres penduradas neles. Farfalhavam num vento fraco, e o barulho delas era como o sussurro de bruxas, fazendo mexer o cabelo próximo ao couro cabeludo dele.

Então, eles adentraram um aposento, fracamente iluminado pelo brilho das estrelas que fluía pelas janelas abertas, e Lissa soltou-lhe a mão, remexeu por um instante em algo e produziu algum tipo de luz fraca. Era uma redoma de vidro, que brilhava com uma radiação dourada. Ela a colocou sobre uma mesa de mármore, e fez sinal para que Amalric se reclinasse num leito abundantemente alastrado com sedas. Tateando dentro de alguma reentrância obscura, ela exibiu uma vasilha dourada de vinho, e outras que continham uma comida desconhecida a Amalric. Havia tâmaras; as outras, pálidas e insípidas, ele não reconheceu. O vinho lhe era agradável ao paladar, mas não mais forte que água suja.

Sentada num assento de mármore em frente ao dele, Lissa mordiscou graciosamente.

- Que tipo de lugar é este? – ele indagou. – Você parece com esta gente... e, no entanto, é estranhamente diferente.

- Dizem que sou como nossos ancestrais – respondeu Lissa. – Há muito tempo, eles adentraram o deserto e construíram esta cidade sobre um grande oásis, o qual, na verdade, era apenas uma série de mananciais. A pedra foi tirada das ruínas de uma cidade bem mais velha... somente a torre vermelha... – a voz dela diminuiu, e ela olhou nervosamente para as janelas emolduradas pelas estrelas. – Somente a torre vermelha se erguia lá. Estava vazia... na época.

“Nossos ancestrais, que eram chamados gazalis, outrora moraram no sul de Koth. Eram conhecidos por sua sabedoria erudita. Mas procuraram reviver o culto a Mitra, ao qual os kothianos haviam há muito abandonado, e o rei os expulsou de seu país. Vieram para o sul, muitos deles... sacerdotes, eruditos, professores, cientistas... com seus escravos shemitas.

“Construíram Gazal no deserto; mas os escravos se revoltaram assim que a cidade ficou pronta e, ao fugirem, se misturaram com as tribos selvagens do deserto. Eles não eram maltratados... uma palavra chegou até eles na noite... uma palavra que os fez fugirem loucamente, da cidade para dentro do deserto.

“Meu povo morava aqui, aprendendo a fazer sua comida e bebida com o material que tinham à mão. Seu aprendizado era uma maravilha. Quando os escravos fugiram, levaram consigo todos os camelos, cavalos e jumentos da cidade. Não havia comunicação com o mundo externo. Há aposentos inteiros em Gazal, cheios de mapas, livros e crônicas, mas todos têm pelo menos 900 anos; pois foi há 900 anos que meu povo fugiu de Koth. Desde então, nenhum homem do mundo externo pôs o pé dentro de Gazal. E o povo está desaparecendo aos poucos. Ficaram tão sonhadores e introspectivos, que não têm paixões nem ambições humanas. A cidade cai em ruínas, e ninguém move a mão para consertá-la. O horror...”. Ela ficou sufocada e estremeceu. “Quando o horror veio sobre eles, não conseguiram fugir nem lutar”.

- O que quer dizer? – ele sussurrou, com um vento frio lhe soprando a espinha. O sussurro das tapeçarias podres, pelos negros corredores sem nome, incitou um vago medo em sua alma.

Ela sacudiu a cabeça, se ergueu, contornou a mesa de mármore e pôs as mãos sobre os ombros dele. Os olhos dela estavam úmidos e brilhavam de horror, e com um desesperado anseio que prendeu a atenção dele.

Instintivamente, o braço dele envolveu a forma flexível dela, e ele a sentiu tremer.

- Abrace-me! – ela implorou. – Tenho medo! Oh, sempre sonhei com um homem como você. Não sou como meu povo; são homens mortos, caminhando por ruas esquecidas; mas eu estou viva. Tenho calor e sensações. Tenho fome, sede e anseio pela vida. Não consigo suportar as ruas silenciosas, os salões arruinados e o povo vago de Gazal, apesar de nunca ter conhecido outra coisa. É por isso que fugi... eu anseio pela vida...

Ela soluçava incontrolavelmente nos braços dele. Seu cabelo lhe caía no rosto; seu aroma o estonteava. O corpo firme dela se espremia contra o dele. Estava deitada sobre os joelhos dele, os braços fechados ao redor do pescoço dele. Puxando-a para seu peito, ele apertou-lhe os lábios com os dele. Olhos, lábios, bochechas, cabelo, pescoço, seios... ele os inundou com beijos quentes, até os soluços dela se transformarem em arquejos ofegantes. A paixão dele não era a violência de um violador. A paixão, que dormia nela, acordou numa onda irresistível. A incandescente bola de ouro, derrubada pelos dedos tateantes dele, caiu ao chão e foi apagada. Somente o brilho das estrelas luzia através das janelas.


Deitada nos braços de Amalric, sobre o leito amontoado de sedas, Lissa abriu o coração e sussurrou seus sonhos, esperanças e aspirações – infantis, patéticas, terríveis.

- Vou tirá-la daqui – ele murmurou. – Amanhã. Você está certa. Gazal é uma cidade de mortos; vamos procurar vida e o mundo externo. É violento, rude e cruel; mas é melhor que esta morte viva...

A noite foi quebrada por um grito estremecedor de agonia, horror e desespero. Seu timbre fez o suor brotar frio na pele de Amalric. Ergueu-se de um pulo do leito, mas Lissa se agarrou desesperadamente a ele.

- Não, não! – ela implorou, num sussurro desvairado. – Não vá! Fique!

- Mas está havendo um assassinato! – ele exclamou, procurando pela espada. Os gritos pareciam vir de um pátio externo. Misturado a eles, havia um som indescritivelmente dilacerante. Ficaram mais altos e agudos, insuportáveis em sua agonia desesperada, e em seguida desfaleceram num longo soluço estremecedor.

- Já ouvi homens morrerem torturados, gritando daquele jeito! – murmurou Amalric, tremendo de horror. – Que trabalho diabólico é este?

Lissa tremia violentamente, num frenesi de terror. Ele sentia a batida feroz do coração dela.

- É o Horror do qual falei! – ela sussurrou. – O Horror que mora na torre vermelha. Há muito tempo ele chegou... alguns dizem que morou lá em anos perdidos, e retornou após a construção de Gazal. Devora seres humanos. Morcegos voam da torre ao anoitecer, e retornam antes do amanhecer. O que é, ninguém sabe, uma vez que ninguém o viu e viveu para contar. É um deus ou um demônio. Foi por isso que os escravos fugiram; e é por isso que o povo do deserto evita Gazal. Muitos de nós fomos parar dentro de sua terrível barriga. Por fim, todos nós estaremos perdidos, e ele governará uma cidade vazia, como dizem que ele governou sobre as ruínas das quais Gazal foi erguida.

- Por que o povo ficou para ser devorado? – ele indagou.

- Não sei... – ela choramingou. – Eles sonham...

- Hipnose – murmurou Amalric –; hipnose unida com decadência. Eu vi nos olhos deles. Este demônio os hipnotizou. Mitra, que segredo repugnante!

Lissa pressionou-lhe o rosto no peito e se agarrou a ele.

- Mas o que vamos fazer? – ele perguntou inquieto.

- Não há nada a fazer – ela sussurrou. – Sua espada seria ineficaz. Talvez ele não nos venha fazer mal. Já levou uma vítima esta noite. Devemos esperar como ovelhas no matadouro.

- Maldito seja eu, se o fizer! – Amalric exclamou, galvanizado. – Não vamos esperar o amanhecer. Partiremos esta noite. Faça uma trouxa de comida e bebida. Vou buscar o cavalo e o camelo, e trazê-los até o pátio externo. Me espere aqui!

Uma vez que o monstro desconhecido já havia atacado, Amalric achou seguro deixar a garota só por alguns minutos. Mas sua pele se arrepiava, enquanto descia tateando o corredor sinuoso, através dos negros aposentos onde as tapeçarias balouçantes sussurravam. Ele encontrou os animais nervosamente juntos, no pátio onde os havia deixado. O garanhão relinchava ansiosamente e se aninhou a ele, como que sentindo perigo na noite morta.

Ele pôs as selas e rédeas, e apressadamente os guiou, através da estreita abertura, até a rua. Poucos minutos depois, ele estava no pátio estrelado. E, ao alcançá-lo, foi eletrificado por um medonho grito agudo, que ressoou de forma estremecedora no ar. Vinha do aposento onde ele havia deixado Lissa.

Ele respondeu àquele grito lastimoso com um brado selvagem; puxando a espada, ele correu para o outro lado do pátio e se arremessou pela janela. A bola dourada estava brilhando novamente, entalhando sombras negras nos cantos esquivos. As sedas se espalhavam pelo chão. O assento de mármore estava derrubado.

Mas o aposento estava vazio.

Uma fraqueza doentia dominou Amalric, e ele cambaleou contra a mesa de mármore, a luz fosca ondulando vertiginosamente diante de seus olhos. Em seguida, foi arrebatado por uma fúria insana. A torre vermelha! Era para lá que o demônio carregaria sua vítima!

Ele disparou de volta, através do pátio, procurou as ruas e correu em direção à torre, que brilhava com uma luz profana sob as estrelas. As ruas não corriam retas. Ele cortou caminho através de silenciosas construções negras, e atravessou pátios cuja grama exuberante ondulava ao vento noturno. À sua frente, agrupada ao redor da torre rubra, se erguia uma pilha de ruínas, onde a decadência havia devorado mais selvagemente que no resto da cidade. Aparentemente ninguém vivia por entre elas. Cambaleavam e tombavam, uma massa desagregada de alvenaria trêmula, com a torre vermelha se erguendo entre elas, feito uma venenosa flor vermelha, das crípticas ruínas das casas.

Para alcançar a torre, ele seria forçado a atravessar as ruínas. Indiferente ao perigo, ele mergulhou na massa negra, apalpando em busca de uma porta. Encontrou uma e entrou, estocando a espada à sua frente.

Então, ele viu um panorama como os homens às vezes vêem em sonhos fantásticos. Bem distante, à sua frente, se estendia um longo corredor, visível numa fraca incandescência ímpia, suas paredes negras com estranhas tapeçarias horrorizantes. Lá embaixo, ele viu uma figura que desaparecia – uma figura branca, nua, curvada e cambaleante, arrastando algo cujo aspecto o fez transpirar de horror. Em seguida, a aparição sumiu de sua vista, e com ela desapareceu o brilho medonho. Amalric ficou na escuridão silenciosa, sem ver nem ouvir nada; apenas pensando na curvada figura branca que arrastava um humano inerte por um longo corredor negro.

Enquanto tateava adiante, uma vaga lembrança se agitou em seu cérebro... a lembrança de uma história medonha, murmurada a ele sobre uma fogueira moribunda, na diabólica cabana, amontoada de caveiras, de um bruxo negro... a história de um deus que vivia numa casa rubra, numa cidade em ruínas, e que era adorado por cultos sombrios em selvas negras e ao longo de rios sombrios e escuros. E lá também se agitou, em sua mente, um encantamento sussurrado em seu ouvido em tons atemorizantes e estremecedores, enquanto a noite havia prendido seu fôlego, os leões haviam parado de rugir ao longo do rio, e as próprias folhas das palmeiras haviam parado de roçar umas nas outras.

“Ollam-onga”, sussurrava um vento negro que descia o corredor escuro. “Ollam-onga”, sussurrava o pó que rangia sob seus pés furtivos. O suor continuou em sua pele e a espada lhe tremeu na mão. Ele andava furtivamente através da casa de um deus, e o medo o agarrou com sua mão ossuda. A casa do deus... todo o horror da frase lhe enchia o pensamento. Todos os medos ancestrais, e os medos que se estendiam além dos antepassados e da primordial memória racial, se aglomeraram sobre ele: horror cósmico e inumano lhe causou náuseas. Sua frágil humanidade o oprimia em sua percepção, enquanto ele seguia através da casa de escuridão que era a casa de um deus.

Ao seu redor, tremeluzia uma incandescência tão fraca que mal se percebia; ele sabia que estava se aproximando da própria torre. Mais um instante, e ele tateava seu caminho através de uma porta arcada e andava aos tropeções sobre degraus estranhamente espaçados. Ele seguiu sobre eles e, à medida que subia, aquela fúria cega, que é a última defesa da humanidade contra o diabolismo e todas as forças hostis do universo, se lançaram sobre ele, e ele esqueceu seu medo. Queimando em terrível impaciência, ele subia cada vez mais, através da espessa escuridão perversa, até adentrar uma câmara iluminada por um brilho sobrenatural.

E, diante dele, havia uma alva figura nua. Amalric parou, com a língua pregada ao céu da boca. Era, segundo todas as probabilidades, um homem branco e nu que o fitava, com os braços fortes cruzados num peito de alabastro. As feições eram clássicas, habilmente esculpidas e com mais do que beleza humana. Mas os olhos dele eram bolas de fogo luminoso, tais como nunca miraram de qualquer cabeça humana. Naqueles olhos, Amalric vislumbrou os fogos congelados dos infernos supremos, tocados por sombras medonhas.

Em seguida, diante dele, a forma começou a ficar com um contorno vago... a tremular. Com um esforço terrível, o aquiloniano arrebentou as amarras do silêncio, e falou um encantamento misterioso e terrível. E, quando as palavras assustadoras cortaram o silêncio, o gigante branco parou... congelado. Novamente, o seu contorno se sobressaiu de forma clara e pronunciada sobre o fundo dourado.

- Agora morra, maldito! – gritou Amalric, histérico. – Eu lhe prendi à sua forma humana! O feiticeiro negro falou a verdade! Ele me deu as palavras-chave! Morra, Ollam-onga... até você quebrar o encantamento, se banqueteando com meu coração, você não é mais do que um homem como eu!

Com um urro que parecia a rajada de um vento negro, a criatura atacou. Amalric pulou para o lado, se esquivando do aperto daquelas mãos, cuja força era maior que a de um furacão. Um único dedo com garra, estendido e agarrando-lhe a túnica, lhe arrancou a roupa como um trapo podre, quando o monstro se arremessou. Mas Amalric, encorajado a uma rapidez sobre-humana pelo horror da luta, girou e enfiou a espada nas costas da coisa, de modo que a ponta se sobressaiu a 30 cm do peito largo.

Um uivo demoníaco de agonia sacudiu a torre; o monstro girou rapidamente e se arremessou em direção a Amalric, mas o jovem saltou para o lado e subiu correndo a escada até o estrado. Lá, ele girou e, erguendo em banco de mármore, o arremessou para baixo, sobre o horror que subia pesadamente a escada. O pesado projétil o acertou bem no rosto, derrubando o monstro dos degraus. Ele se ergueu – uma visão horrenda –, escorrendo sangue, e novamente tentou subir a escada. Desesperado, Amalric levantou um banco de jade, cujo peso lhe arrancou um gemido de esforço, e o lançou.

Sob o impacto daquele volume arremessado, Ollam-onga caiu da escada para trás e ficou estendido entre os pedaços de mármore, os quais estavam inundados com seu sangue. Com um último e desesperado esforço, ele se ergueu sobre as mãos, com os olhos vitrificados, e, lançando a cabeça sangrenta para trás, deu um grito medonho. Amalric estremeceu e recuou, diante do horror abismal daquele grito. E este foi respondido. De algum lugar no ar acima da torre, uma fraca mistura de gritos demoníacos regressou como um eco. Então, a retalhada figura branca desabou entre os pedaços ensangüentados. E Amalric ficou ciente de que um dos deuses de Kush estava morto. Com o pensamento, veio o horror cego e irracional.

Numa névoa de terror, ele desceu correndo a escada, se esquivando da coisa que jazia, de olhos arregalados, no chão. A noite parecia protestar contra ele, horrorizada com o sacrilégio. A razão, exultante sobre seu triunfo, foi submersa num dilúvio de medo cósmico.

Quando pôs o pé na extremidade dos degraus, ele parou subitamente. Saindo da escuridão, Lissa veio até ele, com os alvos braços estendidos; os olhos dela, poços de horror.

- Amalric! – era um grito assombrado. Ele a apertou nos braços.

- Eu O vi – ela choramingou –, arrastando um homem morto pelo corredor. Gritei e fugi; então, quando retornei, ouvi você gritar, e percebi que você tinha ido me procurar na torre vermelha...

- E você veio partilhar meu destino – sua voz estava quase inarticulada. Então, quando ela tentou olhar em trêmula fascinação atrás dele, ele cobriu-lhe os olhos com as mãos e a girou para o outro lado. Era melhor que ela não visse o que jazia no chão rubro. Enquanto ele meio a guiava, meio a carregava pelos degraus ensombrecidos, um rápido olhar sobre o ombro lhe mostrou que a desnuda figura branca não jazia mais por entre o mármore quebrado. O encantamento havia prendido Ollam-onga à sua forma humana em vida, mas não na morte. A cegueira acometeu momentaneamente Amalric; em seguida, galvanizado em pressa desvairada, ele apressou Lissa escada abaixo e através das ruínas escuras.

Ele não diminuiu o passo, até alcançarem a rua onde o camelo e o cavalo se encostavam um contra o outro. Rapidamente, ele montou a garota no camelo e montou o cavalo. Tomando a frente, ele se seguiu diretamente para o muro quebrado. Poucos minutos depois, respirava com gosto. O ar puro do deserto lhe refrescava o sangue; estava livre do cheiro de decadência e horrenda antiguidade.

Havia uma pequena bolsa de água pendurada em sua sela. Não tinham comida, e sua espada estava na câmara dentro da torre vermelha. Ele não ousou tocá-la. Sem comida e desarmados, eles enfrentaram o deserto; mas o perigo deste parecia menos sombrio que o horror da cidade atrás deles.

Eles cavalgaram sem conversar. Amalric se dirigia para o sul – em algum lugar naquela direção, havia um poço d’água. Logo ao amanhecer, ao cavalgarem sobre uma duna, ele olhou para trás, em direção a Gazal, irreal na luz rosa. Ele se enrijeceu e Lissa gritou. Saindo de uma brecha no muro, vinham sete cavaleiros; seus cavalos eram negros e esqueléticos, e os montadores estavam vestidos em mantos negros da cabeça aos pés.

Não havia cavalos em Gazal. O horror se precipitou sobre Amalric e, girando, ele apressou as montarias para oeste, em direção à costa distante. O sol se ergueu, ficou vermelho, depois dourado e, em seguida, uma bola de fogo branco batido. Sem pararem, os fugitivos avançavam, cambaleando de calor e cansaço, cegos pelo clarão. De tempos em tempos, molhavam os lábios. E, atrás deles, num passo regular, cavalgavam sete pontos pretos. A noite começou a cair, e o sol se avermelhou e cambaleou em direção ao horizonte do deserto. E Amalric sentiu um aperto frio no coração. Os cavaleiros estavam se aproximando. À medida que a escuridão chegava, os cavaleiros negros também chegavam, e os fugitivos puderam sentir o cheiro de cripta, de seus perseguidores.

Amalric olhou para Lissa, e um gemido escapou repentinamente dele. Seu garanhão tropeçou e caiu. O sol já havia se posto, e a lua foi subitamente eclipsada por uma sombra em forma de morcego. Na total escuridão, as estrelas brilharam vermelhas e, atrás de si, Amalric ouviu um rápido movimento, cada vez mais alto, como o de um vento se aproximando. Uma negra massa veloz se avolumava contra a noite, na qual brilhavam faíscas de uma luz medonha.

- Cavalgue, garota! – ele gritou desesperadamente. – Continue... salve sua vida; é a mim que eles querem!

Como resposta, ela desceu do camelo e lançou os braços ao redor dele:

- Morrerei com você!

Sete formas negras avultaram contra as estrelas, correndo como o vento. Sob os capuzes, brilhavam bolas de fogo maligno; mandíbulas descarnadas pareciam bater umas contra as outras. Em seguida, houve uma interrupção: um cavalo passou por Amalric – um volume vago na escuridão artificial. Não houve som de impacto, quando o cavalo desconhecido carambolou por entre os vultos próximos. Um cavalo relinchou desvairadamente, e uma voz taurina bramiu numa língua estranha. De algum lugar na noite, vários gritos responderam.

Havia algum tipo de ação violenta ocorrendo. Cascos de cavalos batiam e faziam barulho, havia o impacto de golpes selvagens, e alguma voz retumbante praguejava vigorosamente. Então, a lua apareceu abruptamente e iluminou uma cena fantástica.

Um homem num cavalo gigante rodopiava, retalhava e aparentemente golpeava o ar transparente; e, de outra direção, veio uma horda selvagem de cavaleiros, suas espadas curvas reluzindo à luz da lua. À distância, sobre a crista de uma subida, sete figuras negras desapareciam, com seus mantos flutuando feito asas de morcegos.

Amalric foi cercado por homens selvagens, que pularam de seus cavalos e se amontoaram ao seu redor.

Vigorosos braços nus o aprisionavam, ferozes rostos marrons e aquilinos rosnavam para ele. Lissa gritou. Em seguida, os atacantes foram empurrados para os lados, à medida que o homem no cavalo grande passava através do bando. Ele se inclinou desde a sela, e olhou ferozmente de perto para Amalric.

- Diabos! – ele rugiu. – Amalric, o aquiloniano!

- Conan! – Amalric exclamou, perplexo. – Conan! Vivo!

- Mais vivo do que você parece estar – respondeu o outro. – Por Crom, homem, parece que todos os demônios deste deserto lhe caçaram por toda a noite. Que coisas eram aquelas que lhe perseguiam? Eu estava cavalgando ao redor do acampamento que meus homens haviam armado, para me certificar que não havia inimigos escondidos, quando a lua se apagou feito uma vela, e em seguida ouvi sons de fuga. Cavalguei na direção dos sons e, por Crom, eu estava no meio daqueles demônios antes de saber o que acontecia. Eu estava com minha espada na mão e golpeei a torto e a direito... por Crom, os olhos deles brilhavam como fogo no escuro! Sei que minha lâmina os atingiu, mas quando a lua apareceu, eles se foram como um sopro de vento. Eram homens ou demônios?

- Vampiros enviados do Inferno – Amalric estremeceu. – Não me pergunte mais nada... certas coisas não são para serem discutidas.

Conan não insistiu no assunto, nem pareceu incrédulo. Suas crenças incluíam demônios noturnos, fantasmas, diabretes e anões.

- Acredito que você acha mulher até mesmo no deserto – ele disse, olhando para Lissa, que havia se arrastado até Amalric e se agarrava a ele, olhando temerosa para as figuras selvagens que os encurralavam.

- Vinho! – urrou Conan. – Tragam cantis! Aqui! – Ele agarrou um cantil de couro, dentre os que lhe foram empurrados, e o colocou na mão de Amalric. – Dê uns goles à garota, e beba você mesmo um pouco – ele recomendou. – Depois, colocaremos vocês a cavalo, e lhes levaremos ao acampamento. Vocês precisam comer, descansar e dormir. Posso ver isso.

Um cavalo ricamente enfeitado foi trazido, se empinando e saracoteando, e mãos solícitas ajudaram Amalric para dentro da sela; logo, a garota foi erguida até ele, e partiram para o sul, cercados pelos magros e fortes cavaleiros marrons, em sua pitoresca semi-nudez. Conan cavalgava na frente, cantarolando de boca fechada uma canção de cavalgada dos mercenários.

- Quem é ele? – sussurrou Lissa, com os braços ao redor do pescoço do amante. Ele a sustentava na sela, diante dele.

- Conan, o cimério. – murmurou Amalric. – O homem com quem me aventurei deserto adentro, após a derrota dos mercenários. Estes são os homens que o derrubaram. Eu o deixei deitado sob suas lanças, aparentemente morto. Agora o encontramos, obviamente no comando deles e respeitado por eles.

- Ele é um homem terrível – ela sussurrou.

Ele sorriu:

- Você nunca viu antes um bárbaro de pele branca. Ele é um nômade, saqueador e matador, mas tem seus próprios códigos de moral. Não acho que tenhamos nada a temer dele.

Em seu íntimo, ele não tinha certeza. De certo modo, poder-se-ia dizer que ele havia perdido o direito à camaradagem de Conan, quando fugira a cavalo deserto adentro, deixando o cimério inconsciente no chão. Mas ele não sabia que Conan não havia morrido. A dúvida perseguia o pensamento de Amalric. Selvagemente leal aos companheiros, a natureza selvagem do cimério não via razão para não saquear o resto do mundo. Ele vivia pela espada. E Amalric conteve um estremecimento, ao pensar na possibilidade de Conan desejar Lissa.


Mais tarde, tendo comido e bebido no acampamento dos cavaleiros, Amalric se sentou próximo a uma pequena fogueira, em frente à tenda de Conan. Lissa, coberta por um manto de seda, dormia com a cabeça cacheada sobre os joelhos dele. E, do outro lado dele, a luz da fogueira tremulava no rosto de Conan, alternando luzes e sombras.

- Quem são estes homens? – perguntou o jovem aquiloniano.

- Os cavaleiros de Tombalku – respondeu o cimério, que havia cavalgado para expulsar ladrões ghanatas daquela região.

- Tombalku! – exclamou Amalric. – Então, não é mito!

- Longe disso! – assentiu Conan. – Quando meu maldito cavalo caiu comigo, fiquei inconsciente, e quando recuperei os sentidos, os diabos haviam me atado as mãos e os pés. Aquilo me enfureceu, de modo que arrebentei várias das cordas com as quais haviam me atado, mas eles as recolocavam tão rapidamente quanto eu as conseguia quebrar... eu nunca ficava com uma mão totalmente livre. Mas minha força pareceu extraordinária para eles...

Amalric olhou para Conan sem dizer nada. O homem era tão alto e largo quanto Tilutan havia sido, e sem os excessos de carne do negro. Era capaz de quebrar o pescoço do ghanata com as mãos nuas.

- Decidiram me carregar até a cidade deles, ao invés de me matarem logo – continuou Conan. – Acharam que um homem como eu deveria morrer lentamente, através de tortura, e desse modo diverti-los. Bom, eles me amarraram sobre um cavalo sem sela, e fomos até Tombalku.

“Há dois reis em Tombalku. Levaram-me à presença deles: um diabo magro, de pele marrom, chamado Zehbeh, e um grande negro gordo que cochilava em seu trono de presas de marfim. Falavam um dialeto que pude entender um pouco, o qual era semelhante ao dos Mandingo ocidentais, que vivem na costa. Zehbeh perguntou a um sacerdote marrom, chamado Daura, o que deveria ser feito comigo; Daura lançou dados, feitos de ossos de carneiro, e disse que eu deveria ser esfolado vivo diante do altar de Jhil. Todo mundo se alegrou, e aquilo acordou o rei negro.

“Cuspi em Daura, e o amaldiçoei sem rodeios, assim como aos reis, e disse a eles que, se era para ser esfolado, por Crom, eu exigia bastante vinho antes de começarem, e eu os amaldiçoava de ladrões, covardes e filhos de prostitutas.

“Diante disto, o rei negro despertou, ficou sentado e arregalou os olhos para mim; então, ele se levantou e gritou: ‘Amra!’, e eu o reconheci... Sakumbe, um suba da Costa Negra, um aventureiro gordo a quem eu conhecera bem nos dias em que eu era um corsário ao longo daquela costa. Ele traficava com marfim, pó de ouro e escravos, e seria capaz de trapacear o próprio diabo... bom, quando ele me reconheceu, desceu do trono e me abraçou com alegria... aquele diabo negro e fedorento... e me desamarrou com as próprias mãos. Então, ele anunciou que eu era Amra, o Leão, seu amigo, e que nenhum mal me deveria ser feito. Depois, seguiu-se muita discussão, porque Zehbeh e Daura queriam minha pele. Mas Sakumbe gritou por seu identificador de bruxas, Askia, e ele veio, todo coberto de plumas, sinos e peles de cobra... um feiticeiro da Costa Negra, e um filho do demônio, caso algum já tenha existido.

“Askia dançou, fez encantamentos e anunciou que Sakumbe era o escolhido de Ajujo, o Escuro; todo o povo negro de Tombalku gritou, e Zehbeh desistiu.

“Pois os negros em Tombalku são o verdadeiro poder. Há vários séculos, os aphakis, uma raça shemita, adentraram o deserto meridional e fundaram o reino de Tombalku. Eles se misturaram com os negros do deserto, e o resultado foi uma raça marrom e de cabelos lisos, a qual é ainda mais branca que negra. São a classe dominante em Tombalku, mas estão em minoria, e um rei de sangue puro sempre se senta no trono ao lado do soberano aphaki.

“Os aphakis conquistaram os nômades do deserto do sudoeste, assim como as tribos negras das estepes ao sul deles. Estes cavaleiros, por exemplo, são tibus, de sangue stígio e negro misturado.

“Bem, Sakumbe, através de Askia, é o verdadeiro governante de Tombalku. Os aphakis adoram Jhil, mas os negros adoram Ajujo o Escuro e sua família. Askia chegou a Tombalku com Sakumbe, e reviveu o culto a Ajujo, que estava se desagregando por causa dos sacerdotes aphakis. Askia fez uma magia negra, que derrotou a feitiçaria dos aphakis, e os negros o saudaram como um profeta mandado pelos deuses escuros. Sakumbe e Askia crescem, enquanto Zehbeh e Daura declinam.

“Bem, como eu sou amigo de Sakumbe, e Askia falou em meu favor, os negros me receberam com grande aplauso. Sakumbe envenenou Kordofo, general dos cavaleiros, e me deu o lugar dele, o que agradou os negros e enfureceu os aphakis.

“Você vai gostar de Tombalku! Foi feita para homens como nós saquearmos! Há meia dúzia de facções poderosas conspirando e intrigando umas contra as outras, como Zehbeh e seus sacerdotes marrons; os parentes de Kordofo, que odeiam tanto Zehbeh quanto Sakumbe; e Sakumbe e seus partidários, dos quais o mais poderoso sou eu. Há brigas contínuas nas tavernas e ruas, assassinatos secretos, mutilações e execuções. E há mulheres, ouro, vinho – tudo o que um mercenário deseja! E minha estima e poder são elevados! Por Crom, Amalric, você não podia ter vindo em hora melhor! Ora, o que está havendo? Você não me parece tão entusiasmado quanto eu lembro que você era em tais assuntos”.

- Solicito seu perdão, Conan – desculpou-se Amalric. – Não me falta interesse, mas o cansaço e o sono me dominam.

Mas não era em ouro, mulheres e intrigas que o aquiloniano estava pensando, mas na garota que dormia em seu colo; não havia alegria na idéia de levá-la a tal rebuliço de intriga e sangue, como Conan havia descrito. Uma súbita mudança aconteceu em Amalric, quase sem que ele soubesse.


No dia seguinte, cavalgaram em direção a Tombalku. Amalric havia, na noite anterior, pedido desculpas a Conan por tê-lo abandonado, no acampamento tibu onde o cimério fora derrubado do cavalo. O bárbaro rira diante da preocupação do amigo, tranqüilizando-o. Conan sabia que, se o aquiloniano não tivesse fugido, os tibus o teriam matado.

Em três dias alcançaram aquela estranha cidade fantástica, localizada nas areias do deserto, junto a um oásis de muitas nascentes. Era uma cidade de várias línguas. A classe dominante, os fundadores da cidade, era uma raça guerreira e marrom, descendente dos aphakis, uma tribo shemita que abriu caminho deserto adentro vários séculos antes, e se misturou com as raças negras. As tribos vassalas incluíam os tibus – uma raça do deserto, de sangue negro e stígio misturados –, e os Bagirmi, Mandingo, Dongola, Bornu e outras tribos negras das pastagens ao sul.



O muro que cercava a cidade era alto e grosso, com portões de bronze e torres espaçadas a intervalos regulares. Lissa viu figuras de pele escura com armaduras se moverem como sentinelas ao longo da muralha, e percebeu o aspecto guerreiro deste povo. Os portões da cidade se abriram para dar passagem a Conan e seus tibus, os quais agora retornavam do deserto na companhia do aquiloniano e da gazali. Em Tombalku, havia ruas estreitas, largas avenidas flanqueadas pelo que pareciam serem colunas de pedra entalhada, e acima, grandes extensões de casas com tetos planos. Muitas das construções eram de pedra. As ruas e mercados apresentavam um labirinto colorido, e a cidade se dividia em cinco bairros, os quais cercavam o Palácio Real. Lissa, que nunca tinha visto outra cidade, exceto a arruinada Gazal, em toda a sua vida, estava deslumbrada, em ver, pela primeira vez, uma cidade intacta e cheia de vida e atividade. Lá também havia uma diversidade religiosa e cultural similar à étnica e lingüística. Além de Ajujo, deus dos negros puros, e Jhil, dos aphakis (os dois principais deuses adorados em Tombalku), também havia o culto a Set, deus dos tibus, e a outras divindades. E as escolas de lá eram independentes, cada qual com seu mestre, e dedicavam-se a ensinar, além da religião, a lógica, a astronomia e a história, bem como os idiomas e dialetos de Tombalku. Nesta cidade também era dada uma grande importância ao espaço dedicado aos mercados e aos lugares públicos.

Tombalku era cheia de médicos e sacerdotes, todos bancados pelo Rei Sakumbe, o qual ocupava, juntamente com o co-rei, um trono de marfim, e governava, além da cidade, 25 chefes tribais negros e tibus.

Mas, apesar de todo aquele conhecimento, trazido pelos shemitas, fazer de Tombalku uma verdadeira versão negra de Belverus, ao norte, e de Balkharus, ao leste, nenhum dos seus conhecimentos foi transferido para o sul; e nenhum outro reino negro se interessou por tais conhecimentos vastos. E a presença de tanta erudição em nada atenuava a constante violência explícita e furtiva das ruas e tavernas.

O sol já havia se posto, quando Conan, Amalric e Lissa chegaram a tempo de testemunharem a horrível execução de Daura, o sacerdote aphaki, por Askia, o qual dançava freneticamente ao redor do prisioneiro marrom.

Daura estava amarrado a um poste, no centro da praça principal de Tombalku. Fogueiras nos cantos da praça e linhas de tochas acesas iluminavam aquela cena infernal. Entre o poste de tortura e o Palácio Real, havia uma plataforma, sobre a qual se sentavam dois homens altos – o enfurecido Zehbeh e o despreocupado Sakumbe. Tendo ouvido, no caminho até Tombalku, a história que Conan narrara a Amalric, Lissa imediatamente identificou o gigantesco negro gordo que ali se sentava, ao lado do rei marrom Zehbeh. O rei negro, outrora um homem de extraordinária coragem, vitalidade e política, que acompanhara Conan no passado como corsário, havia se degenerado numa massa montanhosa de gordura, sem se importar com nada, exceto mulheres e vinho. Sakumbe usava uma curta túnica branca, cingida por uma faixa dourada, e um rico cocar na cabeça. Zehbeh, por sua vez, apesar de também vestir uma túnica igual à de Sakumbe, usava uma barba negra sob o nariz aquilino em seu rosto marrom, e um diadema ao estilo shemita de seus co-ancestrais. Em volta da plataforma, nada menos do que três círculos de guardas reais os protegiam. As labaredas lançavam seus raios alaranjados sobre as pontas metálicas de suas lanças, os escudos de couro de elefante e as penas que enfeitavam seus capacetes. Os aphakis estavam furiosos, porém indefesos, contra a resistência determinada de seus súditos negros, aos quais haviam ensinado as artes da guerra.

Um tibu ali presente contou ao cimério, ao aquiloniano e à gazali que Daura havia transformado a única aphaki do harém de Sakumbe numa vampira, para matar o rei negro. Mas um dos guardas de Sakumbe a havia decapitado, antes que ela pudesse chupar o sangue do gigante de ébano. Entretanto, o mandante do crime não teria a mesma morte piedosa e indolor da falecida concubina do suba.

- Ao menos – concluiu o tibu, num sussurro –, Sakumbe não confiará mais em mulheres aphakis.

Enquanto isso, Askia continuava sua dança, coberto, como sempre, de plumas, sinos e peles de cobra. Primeiro, os olhos de Daura explodiram em sangue, tirando-lhe a visão e lhe arrancando um grito de dor. Depois, não gritou mais, pois sua língua secou e caiu. No momento seguinte, a cabeça marrom do sacerdote de Jhil explodiu em sangue e miolos, aterrorizando até mesmo seus mortíferos inimigos negros.

Ao assistir à execução do sacerdote aphaki, Lissa ficou paralisada, branca como uma estátua, os cabelos puxados para trás. Ela quase se sufocou e colocou os punhos fechados contra as têmporas, como se tivesse medo de enlouquecer. Seus olhos violetas se arregalaram, e o corpo ficou todo rígido. Então, Amalric cobriu delicadamente os olhos da sua amada gazali, fazendo-a desviar o olhar daquela cena horrenda, de modo que o belo rosto de Lissa ficou descansando no peito do jovem aquiloniano.

Em seguida, o casal foi guiado por Conan para uma casa próxima ao Palácio Real, após Sakumbe dar ordens para que o cadáver de Daura ficasse ali, como exemplo.


Dentro dos aposentos reais, as paredes de azulejos eram ricas em decorações murais e entalhes pintados em várias cores, bem-matizadas e combinadas. Naquela sala, servidos por mulheres negras e tibus, dois homens altos se recostavam em travesseiros de cetim e jogavam dados. Apesar de terem a grande altura em comum, eles diferiam radicalmente um do outro em vários sentidos. Um deles era musculoso e de pele bronzeada, enquanto o outro era cor-de-ébano e obeso.

- Mais uma vez, sinto muito pelo que aconteceu à sua companheira Bêlit, Amra – disse o embriagado rei negro. Contudo, ao perceber o olhar austero do cimério, ele se calou e não falou mais nada sobre aquele assunto.

Então, Conan jogou dados com Sakumbe, se embriagou com ele e sugeriu que eliminassem Zehbeh por inteiro. O cimério queria ser ele mesmo um rei de Tombalku.


- Isso é mesmo necessário, Amalric? – perguntou Lissa, preocupada com o bem-estar de seu amado.

- Enquanto estivermos sob as ordens de Sakumbe, terei de ir à luta – respondeu o aquiloniano, vestindo uma cota-de-malha shemita e afivelando o cinto da espada. – O rei negro e Conan convenceram o bruxo Askia a denunciarem o rei marrom Zehbeh, sabe Mitra do que e por que, e agora querem derrubar aquele aphaki magricela do trono. Mas não se preocupe não, minha amada. Voltarei vivo para você – ele concluiu, com um sorriso apaixonado.

Assim, com um beijo sôfrego e quente, ele se despediu da sua linda gazali e saiu de casa, seguindo para o local da batalha, no centro de Tombalku.

A batalha começou de manhã e se estendeu até o final da tarde. No início, parte das fileiras da facção de Sakumbe se organizou em formação de cunha, a mando de Conan, resistindo bravamente às flechas aphakis, que eram tão velozes quanto as de seus parentes não-mestiços de Shem.

Após esgotarem todas as flechas aphakis, os guerreiros negros e tibus de Conan montaram em seus cavalos. Logo, as cavalarias negras e marrons se chocaram com prazer quase carnal, penetraram arrombando espaço um no outro e rasgaram caminho abrindo fontes de sangue. Tanto a cavalaria e infantaria negra, quanto os cavaleiros aphakis, desferiram golpes em todas as direções; cabeças foram decepadas; corpos negros e marrons foram partidos ao meio, na altura da cintura, e membros voaram separados dos troncos. Em seu cavalo, Amalric decepava braços marrons e abria pescoços quase tão ferozmente quanto seu amigo cimério, o qual ia mais longe ainda, decepando cabeças e abrindo órgãos vitais e costelas sob armaduras. Cadáveres se acumularam ao longo das ruas da cidade. Cavalos montados por negros, tibus e aphakis começaram a disparar sem cavaleiros. Zehbeh tentou em vão reunir suas forças, mas os tibus e negros, sob as respectivas lideranças de Conan e Sakumbe – este último, na retaguarda, mais sentado que em pé, disparando flechas e dando ordens –, cercaram o exército aphaki.

Nesta guerra civil, os aphakis foram derrotados, cercados e Zehbeh, mais por sorte que habilidade, fugiu da cidade com seus cavaleiros e sacerdotes. Os negros nas muralhas avistavam, exultantes, o sol poente refletir nas pontas das lanças, conforme os tibus e negros avançavam por entre os grupos de fugitivos aphakis, os quais galopavam em direção ao deserto que circundava a cidade. Alguns aphakis haviam tentado se refugiar no grande oásis próximo a Tombalku, mas foram desalojados e mortos pelos vitoriosos negros de Sakumbe e tibus de Conan. Um último e desesperado aphaki, deixado para trás por Zehbeh – e que só se aliara a ele por conveniência, para tentar acabar com Sakumbe –, não pensava em outra coisa senão vingar a morte de Kordofo, de quem era parente. Não podendo alcançar Sakumbe, que lhe envenenara o primo, o guerreiro marrom investiu contra o cimério que agora ocupava o cargo de Kordofo. Quando aquele aphaki remanescente chegou perto o bastante de Conan, sua espada se chocou com a do cimério uma, duas, três vezes, espalhando fagulhas pelo ar. Quando o enlouquecido guerreiro de pele marrom deu um passo para trás, para lançar uma nova investida, o bárbaro de olhos azuis lhe enfiou a espada através da garganta. Engasgado no próprio sangue, o homem cambaleou e caiu morto. Agora, o poder pertencia totalmente aos negros daquela cidade. Percebendo isso, um mandingo seminu – um dos muitos que assistiam, desde as muralhas, à vitória da facção de Sakumbe – gritou:

- Ajujo seja louvado! Viva o Rei Sakumbe!

Quando Conan adentrou a cidade a cavalo, à frente dos tibus e negros, também a cavalo e em perfeita formação militar, aquele grito havia se tornado um alarido de aclamação nas bocas de toda a população cor-de-ébano da cidade. Uma linda tibu do harém de Sakumbe saiu da multidão e correu sorridente até o cimério, tentando abraçá-lo. Este sorriu e içou a jovem de pele marrom até o cavalo, colocando-a à sua frente. Logo em seguida, uma suada negra seminua do mesmo harém fez o mesmo com o bárbaro branco. Ele também a ergueu do chão, na curva de seu braço poderoso, beijou-lhe os lábios carnudos e a colocou na garupa.


Amalric voltou da batalha, com a cota-de-malha riscada, e as roupas rasgadas e ensangüentadas. Assustada por nunca antes ter visto um homem em tais condições, Lissa preparou um banho para ele, numa enorme tina d’água. Após lavar o corpo e se enxugar, o aquiloniano se levantou e, totalmente nu, abraçou ansiosamente sua linda companheira gazali, beijando-lhe a boca, pescoço e corpo com ardor, e deitando-a na cama do casal. Ela também estava ansiosa, igualmente ardente, e abraçou o corpo dele com a necessidade quase desesperada de quem passara horas temendo pela vida do homem a quem amava. Ele a beijou outra vez, lentamente. Sentia com a língua o interior da boca de Lissa; depois desceu para o pescoço levemente suado, cujo perfume natural o enlouquecia, despiu e buscou os seios firmes e cheios com as mãos, tomando o mamilo róseo na boca. Ela sentiu o corpo percorrido por deliciosos choques de prazer.

Amalric sugou um mamilo, depois o outro e acariciou os seios. Ela tinha sensações que chegavam até o fundo do lugar que ansiava por ele. Ele terminou de tirar o curto vestido de sua companheira, pôs a mão sobre a barriga da gazali e a massageou suavemente. Lissa sentiu que se derretia num poço de prazer, quando a mão dele chegou ao negro pêlo de seu monte, colocou um dedo sobre a fenda e começou a desenhar círculos lá dentro. Quando ele chegou ao ponto que enviava raios de tremor pelo corpo inteiro, ela gemeu e arqueou as costas.

Ele desceu o corpo, encontrou a entrada de sua caverna úmida e quente, e tocou lá dentro. Ela afastou as pernas para lhe abrir caminho. Amalric se levantou e se colocou entre elas, abaixou-se e sentiu o gosto. O gosto que ele conhecia. O gosto da mulher que ele amava. Com as duas mãos, separou as pétalas e as lambeu com a língua quente, explorou todos os vãos e frestas até encontrar o nódulo que tinha se endurecido. Ela sentiu todos os movimentos com uma deliciosa explosão de fogo, enquanto o desejo crescia. Não tinha mais consciência de nada – só de Amalric e do surto crescente de prazer delicioso que ele a fazia sentir.

O falo do aquiloniano havia inchado completamente e lutava para se aliviar. A respiração dela se apressou, cada suspiro forte acompanhado de um gemido, até que de repente ela chegou ao clímax, e sentiu-se encher e transbordar. Ele sentiu sua umidade, recuou e entrou nas suas profundezas, e mergulhou fundo. Ela estava pronta para ele, e arqueou o corpo para recebê-lo. Quando Amalric sentiu seu membro deslizar naquele poço quente e pronto, gemeu de prazer. Apesar de terem tido relações sexuais na véspera da batalha, parecia haver séculos que não se viam.

Lissa o recebeu por inteiro. Quando sentiu todo o calor dela, ele experimentou subitamente uma grande e silenciosa gratidão a Mitra, por ter achado aquela mulher. Eles se ajustavam perfeitamente. Deleitou-se nela, mergulhando e mergulhando novamente. Ela se deu inteira, exultando nas sensações que ele a fazia sentir. De repente, sentiram a chegada do orgasmo, o qual veio com uma liberação vulcânica e os envolveu. Eles o contiveram e depois relaxaram.

Após um novo banho – desta vez juntos – e o jantar, eles perceberam que o desejo guloso de um pelo outro não estava saciado. Amaram-se outra vez, langorosamente, desfrutando cada toque, cada carícia, até não resistirem mais e chegarem novamente ao clímax com uma explosão de energia ansiosa.


Com a rica coroa shemita do recém-deposto Zehbeh na cabeça, Conan se sentou ao lado de Sakumbe, no trono outrora pertencente ao rei marrom; mas, apesar de seus melhores esforços, percebeu que o negro era o verdadeiro governante da cidade, devido ao domínio deste sobre as raças negras. No entanto, em Tombalku, o cimério desfrutou, como rei, de riquezas, conforto e prazeres um pouco maiores que os de sua vida como mercenário, ladrão e pirata – além de uma estabilidade maior que as já vivenciadas até então.

Lissa, sempre que podia, ia aos templos e às bibliotecas de Tombalku, para ler e aprender sobre as origens daquela fantástica cidade, onde erudição e barbárie conviviam juntas – hábito que não impedia a gazali de estar em casa, cuidando da mesma e do amado companheiro. O próprio Amalric, por sua vez, devido à sua origem nobre, também freqüentava, na medida do possível, as bibliotecas tombalkanas. E Lissa sempre o fazia devidamente protegida por um guarda da confiança de Conan e Sakumbe, ou pelo seu companheiro aquiloniano.


Era meio-dia por entre as palmeiras do enorme oásis próximo à cidade de Tombalku. Bois e carneiros inteiros estavam sendo assados e servidos aos convidados, a mesa estava posta ao ar livre, e os reis Conan e Sakumbe estavam entre os que mais comiam e bebiam. A música de cítaras shemitas se misturava às dos tambores tocados por mãos tão negras quanto o sacerdote Askia, que celebrava aquelas bodas – meio tribais shemitas, meio tribais negras.

Amalric e Lissa estavam vestidos de branco, diante da mesa cheia de comida, enquanto Askia dançava e fazia seus encantamentos – como no dia em que conhecera Conan e no dia em que havia executado Daura. Como Lissa havia insistido em oficializar a união com seu amado, ele consentiu e os reis Sakumbe e Conan organizaram aquele casamento. Súbito, o bruxo da Costa Negra interrompeu seus rituais, e disse, de braços abertos e olhos ainda fechados:

- Lembrem-se deste momento, porque, depois destes votos a Ajujo, vocês dirão ao mundo as palavras que falarei agora.

Sorrindo felizes um para o outro, Lissa e Amalric repetiram as palavras do sacerdote seminu.

- Este é o meu marido – disse a gazali.

- Esta é a minha esposa – disse o aquiloniano.

- Eu, Amalric, aceito você, Lissa...

- Eu, Lissa, aceito você, Amalric...

- Para ser ninguém mais do que você é – os dois falaram em coro –, amando o que conheço de você e confiando no que não conheço; com respeito por sua integridade e fé, e seu amor incondicional por mim; por tudo o que a vida pode nos trazer, eu ofereço o meu amor.

Entre brados de júbilo e o agora acelerado bater incessante de tambores, ao som do qual lindas negras e morenas seminuas dançaram sensualmente, o casal de sangue hiboriano se beijou apaixonadamente, e começou a comer e beber. Súbito, os olhos negros de Askia se abriram e, com expressão ameaçadora, ele bradou aos recém-casados:

- Eu suspeitei desde que vi esta mulher que veio de Gazal, e agora Ajujo, o Escuro, acaba de confirmar minha desconfiança! O homem de cabelos amarelos é o assassino de Ollam-onga, deus da cidade da branca! O deus adorado pelo culto do qual sou sacerdote! Bem que eu estranhei esta mulher sair de Gazal sem estar hipnotizada! Exijo que o assassino branco e sua mulher sejam entregues à tortura!

Todos ficaram atônitos com a revelação de Askia. Tanto o cimério quanto o aquiloniano crisparam os rostos e desembainharam suas espadas, com os olhos claros faiscando de fúria. Conan, que sempre lutava como um demônio nas ruas e tabernas para proteger todos de quem era amigo, tinha uma gigantesca jovialidade, um sorriso tão ressoante quanto sua espada, e era agora idolatrado pelos guardas negros e tibus como “rei negro de pele branca”, recusou veementemente a exigência do sacerdote negro aos seus amigos, e Sakumbe, completamente dominado pelo cimério, o qual agora já era praticamente governante de Tombalku, na qualidade de velho amigo e confidente do obeso rei negro, fez o bruxo recuar. Mesmo com toda a sua magia, o feiticeiro da Costa Negra não era páreo para 20 guerreiros tibus, um aquiloniano e um cimério. Principalmente um cimério que agora era tão apoiado pelos partidários de Sakumbe quanto o próprio Sakumbe.

- Isso não vai ficar assim – respondeu Askia, enquanto se retirava dali, com um olhar de ódio tão grande quanto os de Conan e Amalric, que faiscavam de fúria tanto quanto os olhos de Sakumbe, Lissa e os demais de espanto.

Passada a tensão causada pelo feiticeiro, os convidados e recém-casados suspiraram de alívio, voltaram a sorrir, e a festa continuou.


Já era tarde da noite e as estrelas piscavam no firmamento já escuro, enquanto Sakumbe retornava do casamento de Amalric e Lissa – esta com o lindo rosto resplandecendo da mais pura felicidade que já sentiu em toda sua vida, por ter se casado com o homem a quem mais amava –, juntamente com Conan, os recém-casados, os guardas e os convidados, entre brados e aclamações da ainda acordada maioria negra da cidade. Quando Lissa e Amalric se afastaram, caminhando de mãos dadas em direção à casa onde moravam, o rei suba começou a gritar de forma medonha, deixando todos ao seu redor perplexos. No instante seguinte, a coroa e a cabeça do obeso rei explodiram em sangue e miolos, como ocorrera dias antes com Daura.

- Askia! – murmurou Conan entre dentes, desembainhando sua espada e com o ódio lhe subindo à cabeça.

Furioso com a morte de Sakumbe, o cimério pensou, por um momento, em vingar o amigo. Mas Askia estava fora de alcance, e o cimério sabia que, com o rei suba morto, os negros da cidade o despedaçariam, bem como a Amalric e Lissa. Então, o bárbaro chamou por Amalric em voz alta, e abriu caminho através dos guerreiros desnorteados. Enquanto os amigos se esforçavam para alcançar os muros externos, Zehbeh e seus aphakis retornaram e atacaram a cidade.

Zehbeh e os aphakis caíram de madrugada sobre a cidade de Tombalku. Os preparativos haviam sido meticulosos. Recrutara ghanatas do deserto, mandara preparar rações para sete dias de marcha, evitando longas paradas. Os estribos, freios, e tudo o que fosse de metal e pudesse brilhar ou fazer ruído, foi envolvido em panos – assim como, na véspera do ataque, as patas dos animais. A infantaria se aproximara rastejando pelas areias do deserto. As sentinelas nos portões, muros e torres foram atingidas por flechas, e os portões da cidade foram subitamente arrombados por um aríete trazido pelos guerreiros de Zehbeh, agora ajudados pela magia maligna do bruxo traidor Askia.

Então, atacado por um dos primeiros aphakis a adentrar Tombalku, Amalric se esquivou do golpe de espada e lhe decepou ambas as pernas, pouco acima dos tornozelos. Logo, um dos negros que o perseguia tentou lhe acertar com um giro descendente da espada, mas o aquiloniano se ergueu agilmente, cruzou espadas com o guerreiro de ébano e lhe atravessou o coração até a ponta da lâmina lhe sobressair pelas costas. O negro caiu sobre o aphaki ferido, e Amalric arremeteu novamente sua espada, atravessando os corações dos dois guerreiros que o tentaram matar.

A pequena escolta tibu de Conan, Amalric, Lissa e Sakumbe fora instantaneamente massacrada, enquanto os demais mestiços de stígios se encontravam do outro lado da cidade, ainda sem entender totalmente o que estava acontecendo. Aproveitando-se do choque entre os negros que os perseguiam e os aphakis que estavam invadindo a cidade, o qual desviara a atenção de seus inimigos, o aquiloniano e sua linda companheira gazali também se aproveitaram que as baixas de ambos os lados deixaram cavalos sem cavaleiros, e subiram numa montaria, cavalgando até Conan, o qual havia feito o mesmo.

Flechas incendiárias aphakis atingiam constante e impiedosamente os negros de Tombalku, fazendo-os recuar mais e mais. Casas de famílias negras foram incendiadas por tochas, arremessadas a mando de Zehbeh. Também foi ateado fogo a metade das bibliotecas e parte do Palácio Real. Com quase todos os guerreiros negros mortos pelos implacáveis aphakis e seus aliados ghanatas, mulheres cor de ébano e seus filhos fugiam, acuados e aos gritos, para suas casas, numa tentativa desesperada de se esconderem.

Naquele momento, Lissa – que, até então, pensava que a crueldade fosse exclusiva dos negros, como lhe diziam em Gazal – mudou de opinião, ao vislumbrar os guerreiros aphakis de Zehbeh arrastarem mulheres e crianças negras para fora das casas que não foram incendiadas, e lhes abrirem os crânios ou decepar as cabeças. Toda a cidade de Tombalku parecia nadar num mar de sangue, diante dos olhos aterrados da jovem gazali, e ela agora já não conseguia mais olhar para aquela carnificina. Mesmo assim, os gritos de dor e fúria lhe atingiam os nervos como uma pancada física. Ela quase teve medo de enlouquecer. Somente o contato com os braços de Amalric, a envolverem-na enquanto cavalgavam até as agora próximas muralhas da cidade, a impediu de perder o controle sobre as emoções.

Enquanto isso, vários guerreiros negros remanescentes faziam sua última resistência aos guerreiros aphakis de Zehbeh. Eram Bagirmis, Mandingos, Dongolas, Bornus, e até mesmo os mestiços tibus; a maioria havia ajudado Sakumbe a subir ao trono de Tombalku, anos atrás, e muitos ajudaram Conan a substituir Zehbeh como co-rei daquela cidade. No entanto, em reduzido número de 300 e cercados por 2 mil aphakis, aqueles negros se encontravam no maior apuro em que jamais estiveram. Ao mesmo tempo, começaram a entoar um canto fúnebre, pesado, rouco e áspero – um canto para Ajujo, deus de Tombalku, e ao mesmo tempo, um canto de ódio e fúria contra aqueles cães marrons que lhes haviam massacrados homens, mulheres e crianças. E logo, num movimento curto, começaram a bater com as lanças no peito, produzindo um som assombroso, que surpreendeu os próprios aphakis. Então, os pés descalços começaram a bater no chão, acompanhando os golpes das lanças nos peitos; e assim, os negros foram avançando, compactos, cantando, batendo as lanças, batendo os pés e sem medo.

Os aphakis arremeteram; os lanceiros negros arremeteram. Na espiral sangrenta que se seguiu, engolfados em sombras marrons, os negros e tibus se abandonaram ao festival de matança. Embora os 300 lanceiros do recém-falecido Sakumbe houvessem matado cem aphakis e vinte ghanatas com suas estocadas fatais, todos foram exterminados pelas flechas dos homens de Zehbeh. Em seguida, outras inúmeras cabanas de negros foram queimadas, seus habitantes chacinados e seus corpos abandonados no lugar onde caíam.

Carregando duas pessoas, o cavalo de Amalric só não galopara com dificuldade pelas ruas agora vermelhas de Tombalku, porque o cimério à sua frente abria caminho impiedosamente, talhando corpos, cabeças e membros de guerreiros negros e aphakis. Um homem que tentou segurar o freio do cavalo do aquiloniano foi derrubado por Amalric, com um golpe de espada que lhe quebrou os ossos.

Atravessando desesperadamente os muros destruídos e grandes portões de bronze de Tombalku, em meio ao selvagem holocausto de sangue e fogo provocado por Zehbeh e seus aphakis, os cavalos de Conan, Amalric e Lissa pisavam em cabeças, membros, troncos, pés, mãos e sangue. Enquanto isso, lá atrás, os aphakis de Zehbeh já haviam erigido pilhas macabras com as cabeças ensangüentadas de homens, mulheres e crianças negras na praça central da cidade. Os cabelos negros da gazali caíam-lhe como uma cascata de seda sobre os ombros de alabastro; um dos tirantes da túnica havia se rompido, descobrindo-lhe os seios juvenis, os quais balançavam ao sabor do galope da montaria. No desespero da fuga, Amalric mal teve tempo de pensar em cobrir a nudez parcial de sua amada. Tombalku foi quase destruída. Conan, Lissa e Amalric escaparam, enquanto metade da cidade era engolida por pirâmides amarelas de fogo, a devorarem muros, jardins, construções, cadáveres e gente viva.


Uma hora depois, os cavalos dos fugitivos brancos andavam a passos lentos pelo deserto de areia, como se estivessem escolhendo o caminho na escuridão.

- Para onde iremos? – perguntou Lissa, com sua voz suave e sua túnica de volta ao lugar.

- Não sei – respondeu Amalric. – Mas estou cansado dos territórios negros. Farei o que você desejar – ele acrescentou, com um sorriso enternecido.

- Pois eu acho – disse Lissa, quase sussurrando – que, apesar da morte de nosso grande amigo Sakumbe e de tudo o mais, eu gosto das coisas como elas estão aqui.

Amalric riu silenciosamente na escuridão e, acompanhando seu enorme amigo cimério, que não parecia nem um pouco cansado, apressou o trote do cavalo.

- O que acha de voltar à sua terra, garoto – sugeriu Conan –, e lutar para recuperar seu título perdido de nobreza, do qual você me falou quando Zapayo ainda era vivo? Por Crom, um casal como você e Lissa merecem um pouco de estabilidade, e não da vida incerta de um mercenário, como a minha e a que você tinha antes de conhecê-la. Se quiserem contar com minha ajuda para isso, uma espada a mais é sempre bem-vinda!

O casal assentiu e sorriu.


FIM



Agradecimentos especiais: Ao grande amigo e howardmaníaco Osvaldo Magalhães de Oliveira, de Brasília – DF.



A Seguir: Interlúdio em Kordafan.




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