O Deus na Tigela

(por Robert E. Howard)


Arus, o guarda, agarrou sua besta com mãos trêmulas, e sentiu gotas de suor frio brotarem na pele, ao olhar para o feio cadáver estendido no chão polido. Não é nada agradável se deparar com a Morte num lugar solitário no meio da noite.

Arus se postava num corredor vasto, iluminado por velas enormes, colocadas nos nichos ao longo das paredes. Entre os nichos, as paredes eram cobertas por tapeçarias de veludo negro; e, entre essas tapeçarias, pendiam escudos e armas cruzadas de feitio fantástico. Aqui e ali, havia figuras de deuses curiosos – imagens de pedra ou madeira rara, esculpidas em bronze, ferro ou prata –, espelhando-se no chão negro de mogno.

Arus estremeceu. Ele jamais conseguira se acostumar ao lugar, embora estivesse trabalhando como guarda já havia alguns meses. O grande museu e casa de antigüidades, que os homens chamavam de Templo de Kallian Publico, era um edifício antigo cheio raridades vindas de todas as partes do mundo – e agora, na solidão da meia-noite, Arus estava no enorme salão silencioso, olhando para o cadáver do que havia sido o rico e poderoso proprietário do Templo.

Até o cérebro obtuso do guarda entendia que o homem estava com uma aparência muito estranha, diferente daquela de quando cavalgava ao longo do Caminho Palian em sua carruagem dourada, arrogante e dominador, com seus olhos escuros brilhando com vitalidade magnética. Os homens que odiavam Kallian Publico mal o reconheceriam agora, jogado como um monte de gordura desintegrada, com seu rico robe meio arrancado e sua túnica púrpura torcida. O seu rosto estava escuro, os olhos arregalados e a língua esticada para fora da boca aberta. As mãos gorduchas estavam abertas como se num gesto de curiosa futilidade. Pedras preciosas reluziam em seus dedos grossos.

- Por que eles não levaram os anéis? – murmurou o guarda inquieto. Então ele parou e olhou, os cabelos curtos começando a se eriçar na parte posterior do pescoço. Afastando as cortinas de seda escura que escondiam uma das muitas portas que se abriam para a sala, surgiu uma figura.

Arus viu um jovem alto, forte, vestido apenas com uma tanga e sandálias amarradas nos tornozelos. Sua pele estava tostada, como que pelo sol do deserto, e Arus olhou nervosamente para seus ombros largos, peito maciço e braços pesados. Um único olhar para as feições taciturnas e as sobrancelhas largas, mostrava ao guarda que o homem não era um nemédio. Debaixo de uma negra cabeleira desgrenhada ardia um par de perigosos olhos azuis. Uma espada comprida, enfiada numa bainha de couro desgastado, pendia de seu cinto.

Arus sentiu um arrepio na pele e, tenso, dedilhou sua besta, meio indeciso entre atirar um dardo no corpo do estranho sem avisar, e o medo do que pudesse acontecer se falhasse em matá-lo no primeiro tiro.

O estranho olhou para o corpo no chão, mais curioso do que surpreso.

- Por que você o matou? – perguntou Arus, nervoso.

- Eu não o matei. – respondeu o outro, sacudindo a cabeça desgrenhada, e falando em Nemédio com um sotaque bárbaro – Quem é ele?

- Kallian Publico. – respondeu Arus, recuando.

- O proprietário desta casa? – perguntou o estranho, com um lampejo de interesse nos taciturnos olhos azuis.

-Sim.

Arus já havia recuado até a parede. Então agarrou uma grossa corda de veludo que estava pendurada ali e sacudiu-a violentamente. Ouviu-se lá fora, na rua, o som estridente dos sinos que estavam pendurados diante de todas as lojas e estabelecimentos para convocar a guarda.

-Por que você fez isso? – perguntou o estranho surpreendido – Assim vai chamar o guarda!

- Eu é que sou o guarda, velhaco! – respondeu Arus, reunindo coragem – Fique onde está. Não se mova, senão atiro!

Seu dedo tocou o gatilho de sua besta; a maldosa cabeça quadrada da seta apontou diretamente para o peito largo do outro. O estrangeiro franziu a testa e olhou de esguelha para Arus. Não demonstrava medo, mas parecia hesitar entre obedecer à ordem e arriscar um ataque repentino. Arus lambeu os lábios e seu sangue gelou nas veias, ao perceber claramente que havia um conflito entre precaução e intenção assassina nos olhos nublados do estrangeiro.

Então ele ouviu o estrondo da porta se abrindo e um alarido de vozes, e deu um profundo suspiro de alívio. O estrangeiro se retesou, com o olhar preocupado de um animal encurralado, quando meia dúzia de homens entrou no salão. Todos eles, com exceção de um, usavam a túnica escarlate da guarda numália. Estavam armados com gládios e alabardas – armas de lâminas compridas, meio lanças, meio machados.

- Que trabalho de demônio é este? – exclamou o homem que estava à frente, cujos frios olhos cinzentos e feições bem delineadas e magras, assim como suas vestes de civil, destacavam-no no meio de seus rudes companheiros.

- Por Mitra, Demétrio! – exclamou Arus aliviado – Sem dúvida, a sorte está do meu lado esta noite. Não esperava que a guarda respondesse ao meu chamado com tanta rapidez, nem que você estivesse entre eles!

- Eu estava fazendo a ronda com Dionus. – respondeu Demétrio – Estávamos passando pelo Templo quando o sino de alarme tocou. Mas quem é este aqui? Por Mitra! É o próprio senhor do Templo!

- Ninguém mais – respondeu Arus –, e foi assassinado de maneira terrível. É meu dever caminhar pelo edifício a noite toda, porque, como você sabe, há uma imensa fortuna armazenada aqui. Kallian Publico tinha patronos ricos... estudiosos, príncipes e ricos colecionadores de raridades. Bem, há apenas alguns minutos, experimentei a porta que se abre para o pórtico e verifiquei que estava fechada apenas com travas: o cadeado estava aberto. A porta tem uma tranca que pode ser aberta dos dois lados, e tem também um enorme cadeado que só pode ser aberto do lado de fora. Somente Kallian Publico tinha a chave desse cadeado, que é a chave pendurada no seu cinto.

“Eu sabia que algo estava errado, pois Kallian sempre trancava a porta com o cadeado grande, quando fechava o Templo, e eu não o vi desde que partiu, no final do dia, para a aldeia nos subúrbios orientais da cidade. Eu tenho a chave que abre a trava; entrei e encontrei o corpo estendido, assim como está agora. Não toquei nele”.

- Então – perguntou Demétrio, examinando com seus olhos agudos o estrangeiro sombrio –, quem é este aqui?

- O assassino, sem dúvida! – gritou Arus – Ele surgiu daquela porta ali. É algum tipo de bárbaro do Norte... talvez um hiperbóreo ou um bossoniano.

- Quem é você? – perguntou Demétrio.

- Eu sou Conan, um cimério. – respondeu o bárbaro.

- Foi você que matou este homem?

O cimério sacudiu a cabeça.

- Responda-me! – ordenou o inquisidor.

Um laivo de fúria apareceu nos taciturnos olhos azuis.

- Não sou cão!

- Oh, um sujeito insolente! – disse, com um sorriso de escárnio, o companheiro de Demétrio, um homem grande, que usava a insígnia do chefe da guarda – Um ladrão independente! Um desses cidadãos com direitos, hein? Já, já sacudo a impertinência dele. Você aí! Fale! Por que você matou...

- Espere um momento, Dionus. – ordenou Demétrio – Camarada, eu sou o chefe do Conselho de Investigação da cidade de Numália. É melhor você me dizer por que está aqui e, se não for o assassino, então prove.

O cimério hesitou. Ele não demonstrava medo, mas estava um pouco confuso, como um bárbaro fica quando confrontado com as complexidades dos sistemas civilizados, cujo funcionamento é muito misterioso e incompreensível para ele.

- Enquanto ele decide – precipitou-se Demétrio, voltando-se para Arus –, diga-me: você viu Kallian Publico sair do Templo hoje à noite?

- Não; mas ele costuma estar fora quando chego para o meu turno de sentinela. A grande porta estava travada e trancada com o cadeado.

- Ele poderia ter entrado no edifício sem que você o tivesse visto?

- Ora, é possível, mas pouco provável. O Templo é grande, mas eu o percorro em poucos minutos. Se ele tivesse voltado de sua casa de campo, certamente teria vindo em sua carruagem, pois é longe... e quem já viu Kallian Publico viajar de outra maneira? Mesmo se eu estivesse do outro lado do Templo, teria ouvido as rodas da carruagem rangendo sobre os pedregulhos. E não ouvi nada, nem vi qualquer carruagem, exceto as que sempre passam ao longo das ruas logo ao anoitecer.

- E a porta estava trancada no início da noite?

- Juro que sim. Eu testo todas as portas várias vezes durante a noite. A porta estava trancada do lado de fora até talvez uma meia hora atrás, quando foi a última vez que testei antes de descobrir que estava destrancada.

- Você ouviu gritos ou sons de luta?

- Não senhor. Mas isto não é estranho, pois as paredes do Templo são tão grossas que não permitem que nenhum ruído as atravesse, um efeito aumentado pelas cortinas pesadas.

- Para que todo este incômodo, de fazer perguntas e especulações? – queixou-se o rude prefeito – O nosso homem é este aqui, sem dúvida. Vamos levá-lo à Corte da Justiça; vou arrancar uma confissão dele, mesmo se tiver de esmagar seus ossos.

Demétrio olhou para o bárbaro.

- Você entende o que ele disse? – perguntou o inquisidor – Que é que tem a dizer?

- Que o homem que me tocar, logo em seguida estará cumprimentando seus ancestrais no Inferno. – o cimério rangeu, entre seus dentes poderosos, com os olhos lançando chamas de fúria perigosa.

- Por que você veio até aqui, se não foi para matar este homem? – continuou Demétrio.

- Eu vim para roubar. – respondeu sombriamente o outro.

- Roubar o quê? – perguntou automaticamente o inquisidor.

- Comida. – a resposta veio após um instante de hesitação.

- É mentira! – disse Demétrio – Você sabia que não havia comida aqui. Não minta para mim. Diga-me a verdade ou...

O cimério colocou a mão sobre o punho da espada, e o gesto estava tão carregado de ameaça quanto o arreganhar dos lábios de um tigre, mostrando as presas.

- Poupe suas ameaças para os idiotas que têm medo de você. – grunhiu ele – Não sou nenhum nemédio criado na cidade, para me encolher diante de seus cães amestrados. Já matei homens melhores que você por menos que isso.

Dionus, que abrira a boca para vociferar sua fúria, fechou-a subitamente. Os guardas remexiam indecisos suas alabardas e olhavam para Demétrio, aguardando suas ordens, desnorteados por presenciar a derrota da toda-poderosa polícia, mas esperavam o comando para apanhar o bárbaro. Mas Demétrio nada fez. Ele conhecia, mesmo que os outros fossem estúpidos demais para percebê-lo, as armadilhas de aço nos músculos de homens como aquele e a rapidez cegante dos homens criados além das fronteiras da civilização, onde a vida era uma batalha contínua pela existência; e ele não desejava liberar o frenesi bárbaro do cimério, se isso pudesse ser evitado. Além disso, havia uma dúvida em sua mente.

- Eu não o acusei de ter matado Kallian. – retrucou ele – Mas você deve admitir que as aparências o condenam. Como entrou no Templo?

- Eu me escondi na sombra do armazém atrás deste edifício. – respondeu Conan a contragosto – Quando este cão – disse, apontando o polegar para Arus – passou por mim e dobrou a esquina, eu corri e escalei o muro...

- Mentira! – interrompeu Arus – Ninguém consegue subir por aquele muro liso!

- Você nunca viu um cimério escalar um rochedo perpendicular? – perguntou Demétrio – Eu estou conduzindo esta investigação. Continue, Conan.

- O canto é decorado com entalhes. – disse o cimério. – Foi fácil escalar. Alcancei o telhado antes que este cão desse a volta no edifício novamente. Encontrei um alçapão, fechado com uma trava de ferro trancada por dentro. Fui forçado a dobrar a trava em dois com minha espada...

Arus, lembrando-se da grossura da trava, engoliu em seco sem perceber e se afastou do bárbaro, que franziu a testa distraidamente para ele e continuou:

- Temi que o barulho pudesse acordar alguém, mas era um risco que eu tinha de correr. Passei pelo alçapão e entrei num aposento superior. Não parei ali; fui direto até a escada...

- Como é que você sabia onde ficava a escada? Apenas aos empregados de Kallian e seus ricos patronos era permitido o acesso a esses aposentos superiores.

Uma funda obstinação escurecia os olhos de Conan, e ele permaneceu em silêncio.

- O que você fez depois de chegar à escada? – exigiu Demétrio.

- Desci por ela. – balbuciou o cimério – A escada levava ao aposento atrás daquela porta com cortinas. Quando desci as escadas, ouvi uma outra porta se abrindo. Quando olhei através da cortina, vi este cão em pé ao lado do homem morto.

- Por que você saiu de seu esconderijo?

- Estava escuro quando vi o guarda do lado de fora do Templo. Quando eu o vi aqui, achei que fosse um ladrão também. Só quando ele puxou a corda dos sinos e ergueu seu arco, foi que percebi que era o guarda.

- Mas mesmo assim – insistiu o Inquisidor –, por que você se revelou?

- Porque pensei que ele fosse outro ladrão, que veio roubar aquilo que... – o cimério se conteve, como se tivesse falado demais.

- Aquilo que você mesmo veio roubar! – concluiu Demétrio – Você me contou mais do que pretendia! Veio aqui com um propósito definido. Não se deteve, segundo sua própria confissão, nos aposentos superiores onde estão guardadas as maiores riquezas. Você dominava a planta do prédio, e foi enviado aqui por alguém que conhece bem o Templo, para roubar alguma coisa especial!

- E matar Kallian Publico! – exclamou Dionus – Por Mitra, é isso! Peguem-no, homens! Teremos uma confissão antes do amanhecer!

Com uma praga pagã, Conan saltou para trás, sacando a espada com tanta fúria que a lâmina afiada zuniu.

- Para trás, se prezam suas malditas vidas! – grunhiu ele – Só porque ousam torturar lojistas, e desnudar as prostitutas e bater nelas para fazê-las falar, não pensem que podem botar suas patas gordas num homem das colinas! Levarei alguns de vocês comigo até o inferno! É só tocar no seu arco, guarda, que eu arrebento suas entranhas com o meu calcanhar, antes que o turno desta noite acabe!

- Espere! – disse Demétrio – Afaste seus cães, Dionus. Ainda não estou convencido de que ele seja o assassino. Seu idiota – ele acrescentou, num sussurro –; espere até que possamos convocar mais homens, ou o enganarmos, fazendo com que ele abaixe sua espada. – Demétrio não queria anteceder a vantagem de sua mente civilizada, permitindo que a questão mudasse para uma base física, onde a selvagem ferocidade bestial do bárbaro poderia virar a mesa contra ele.

- Muito bem. – grunhiu Dionus, de má vontade – Afastem-se, homens, mas continuem de olho nele.

- Dê-me sua espada. – disse Demétrio.

- Pegue-a se puder. – rosnou Conan.

Demétrio encolheu os ombros.

- Tudo bem. Mas não tente fugir. Há quatro homens com bestas, guardando a casa do lado de fora. Nós sempre lançamos um cordão ao redor de uma casa, antes de a adentrarmos.

O bárbaro abaixou sua lâmina, embora relaxasse apenas de leve seu tenso estado de alerta. Demétrio voltou-se novamente para o cadáver.

- Estrangulado. – murmurou ele – Porque alguém haveria de estrangulá-lo, se um golpe de espada é muito mais rápido e seguro? Esses cimérios são uma raça sangrenta, nascida com uma espada na mão; nunca ouvi falar de um cimério matar um homem desta maneira.

- Talvez para afastar suspeitas. – disse Dionus.

- Possivelmente. – ele tocou o corpo com mãos experientes – Morto há possivelmente meia hora. Se Conan diz a verdade sobre quando entrou no Templo, mal teria tempo para cometer o assassinato antes de Arus entrar. Mas ele pode estar mentindo... pode ter entrado antes.

- Escalei a parede depois que Arus fez a sua última ronda. – grunhiu Conan.

- É o que você diz. – respondeu Demétrio, detendo-se na garganta do morto, que havia sido esmagada até se transformar, literalmente, num monte de carne arroxeada. A cabeça pendia solta por causa das vértebras quebradas. Demétrio sacudiu a cabeça, duvidando:

- Por que um assassino usaria um cabo aparentemente mais grosso que e braço de um homem? – murmurou – E que aperto terrível teria esmagado o grosso pescoço dele dessa maneira?

Ele se levantou e foi até a porta mais próxima, que se abria para o corredor.

- Aqui perto da porta há uma estátua derrubada de seu pedestal – disse ele –; o chão está arranhado, e as cortinas na soleira estão rasgadas, como se uma mão as tivesse agarrado... talvez em busca de apoio. Kallian Publico deve ter sido atacado nessa sala. Talvez ele tenha tentado escapar do assaltante, ou arrastado o sujeito consigo na fuga. De qualquer maneira, ele correu cambaleando no corredor, onde o assassino deve tê-lo seguido e acabado com ele.

- E se este pagão não for o assassino, então onde está ele? – exigiu o prefeito.

- Ainda não descartei o cimério. – disse o inquisidor – Mas investigaremos aquele aposento...

Ele se deteve, virou-se e ficou escutando. Da rua, vinha o rangido de rodas de carruagem, que se aproximou e cessou rapidamente.

- Dionus! – bramiu o inquisidor – Mande dois homens atrás dessa carruagem. Traga o condutor até aqui.

- Pelo ruído – disse Arus, que conhecia bem todos os sons da rua –, eu diria que ela parou na frente da casa de Promero, do lado oposto da rua onde fica a loja do mercador de seda.

- Quem é Promero? – perguntou Demétrio.

- É o escrivão-chefe de Kallian Publico.

- Mande buscá-lo junto com o condutor. – disse Demétrio – Vamos esperar que eles cheguem, antes de examinarmos aquela sala.

Dois guardas foram enviados. Demétrio ainda estudava o corpo; Dionus, Arus e os outros policiais observavam Conan, que estava em pé com a espada na mão, como uma ameaçadora estátua de bronze. Então ecoaram passos de pés calçados com sandálias, e dois guardas entraram com um homem robusto, de pele escura, usando o capacete e a túnica de um cocheiro, com um chicote na mão, e um indivíduo pequeno, tímido, típico da classe que, saída das fileiras dos artesãos, fornece seus serviços para ricos mercadores e comerciantes. O homenzinho retraiu-se com um grito ao ver o volume estendido no chão.

- Oh, eu sabia que o mal acabaria acontecendo! – choramingou ele.

- Você é Promero, o escrivão-chefe, suponho. E você?

- Enaro, cocheiro de Kallian Publico.

- Você não parece muito impressionado com o cadáver dele. – observou Demétrio.

Os olhos escuros de Enaro faiscaram.

- Por que haveria eu de ficar impressionado? Alguém fez o que eu sempre quis fazer, mas nunca tive coragem.

- Então! – murmurou o inquisidor – Você é um homem livre?

Os olhos de Enaro estavam amargos quando ele afastou a túnica, descobrindo seu ombro onde havia a marca do escravo devedor.

- Você sabia que seu senhor vinha aqui hoje à noite?

- Não. Eu trouxe a carruagem até o Templo hoje à noite para ele, como de costume. Ele entrou e eu dirigi até a sua casa de campo. Entretanto, antes de chegarmos ao Caminho Palian, ele mandou que voltássemos. Parecia muito agitado.

- E você o levou de volta para o Templo?

- Não. Ele ordenou que eu parasse na casa de Promero. Lá, ele me dispensou, e mandou que eu voltasse para buscá-lo logo após a meia-noite.

- Que horas eram?

- Pouco depois do escurecer. As ruas estavam quase desertas.

- O que você fez em seguida?

- Voltei ao alojamento de escravos, onde fiquei até a hora de voltar à casa de Promero. Então parti direto para lá, e seus homens me agarraram quando eu falava com Promero na porta de sua casa.

- Você tem alguma idéia do motivo pelo qual Kallian foi à casa de Promero?

- Ele não falava de seus negócios com os escravos.

Demétrio voltou-se para Promero.

- O que você sabe sobre isso?

- Nada. – os dentes do vendedor tremiam ao falar.

- Kallian Publico foi até a sua casa, conforme diz o cocheiro?

- Sim.

- Quanto tempo ele ficou lá?

- Só alguns minutos. Depois foi embora.

- Ele foi para o Templo, depois de deixar a sua casa?

- Não sei! – disse o escrivão numa voz aguda e alterada.

- Por que ele foi até a sua casa?

- Para... para falar de negócios comigo.

- Você está mentindo. – disse Demétrio – Por que ele foi até a sua casa?

- Eu não sei! Não sei de nada! – Promero ficava cada vez mais histérico – Não tenho nada a ver com isso...

- Obrigue-o a falar, Dionus. – falou bruscamente Demétrio, e Dionus grunhiu e acenou para um de seus homens, que, com um sorriso selvagem, aproximou-se dos dois prisioneiros.

- Vocês sabem quem eu sou? – grunhiu ele, esticando o pescoço e fitando de forma dominante sua presa encolhida de medo.

- Você é Posthumo. – respondeu o cocheiro, de modo taciturno – Você arrancou o olho de uma moça na Corte da Justiça, porque ela se recusava a incriminar o amante.

- Eu sempre consigo o que quero! – vociferou o guarda, as veias inchando no seu pescoço grosso e seu rosto ficando roxo, quando ele agarrou o pobre escrivão pelo colarinho da túnica, torcendo-o de maneira que o homem ficou quase sufocado.

- Fale, rato! – grunhiu ele – Responda ao inquisidor!

- Oh, por Mitra, piedade! – berrou o coitado – Eu juro...

Posthumo bateu com violência em uma de suas faces, depois na outra, e prosseguiu o interrogatório jogando-o no chão e o chutando com precisão maldosa.

- Piedade! – gemeu a vítima – Eu conto, eu conto qualquer coisa...

- Então se levante, seu bastardo! – vociferou Posthumo, inchando em arrogância – Não fique deitado aí chorando!

Dionus lançou um rápido olhar para Conan, para ver se ele estava impressionado.

- Veja o que acontece com aqueles que desacatam a polícia. – disse ele.

Conan cuspiu, com uma zombaria de cruel desprezo ao escrivão que gemia.

- Ele é um fraco e um tolo. – grunhiu ele – Se um de vocês tocar em mim, espalho suas entranhas pelo chão.

- Você está pronto para falar? – perguntou Demétrio, cansado. Ele achava estas cenas entediantes.

- Tudo o que sei – soluçou o escrivão, pondo-se de pé com dificuldade, ganindo como um cão que apanhou – é que Kallian foi até a minha casa, pouco depois que eu cheguei; saí do templo junto com ele, quando ele mandou embora sua carruagem. Ele ameaçou me demitir se eu dissesse qualquer coisa a respeito disso. Sou um homem pobre, meus senhores, não tenho amigos nem vantagens. Sem a minha posição junto a ele, morreria de fome.

- O que tenho eu a ver com isso? – disse Demétrio – Quanto tempo ele ficou na sua casa?

- Até talvez as onze e meia. Em seguida ele saiu, dizendo que estava indo para o Templo e iria voltar depois de fazer o que pretendia.

- O que ele pretendia fazer lá?

Promero hesitava em revelar os segredos de seu empregador, mas ao olhar, trêmulo, para Posthumo, que sorria maldosamente com o enorme punho cerrado, logo abriu a boca.

- Havia algo no Templo que ele queria examinar.

- Mas por que ele viria aqui sozinho, e em tamanho segredo?

- Porque a coisa não lhe pertencia. Chegou de madrugada, com uma caravana vinda do sul. Os homens da caravana nada sabiam a respeito disso, exceto que essa coisa fora confiada a eles pelos homens de uma caravana da Stygia, e que se destinava a Kalanthes de Hanumar, sacerdote de Íbis. O senhor da caravana havia sido pago por aqueles homens para levá-la diretamente para Kalanthes, mas, tratante por natureza, queria continuar direto para a Aquilônia pela estrada que não passa por Hanumar. Então ele perguntou se podia deixá-la no Templo até que Kalanthes mandasse buscá-la.

“Kallian concordou e disse-lhe que ele mesmo mandaria um criado informar Kalanthes. Mas, depois que os homens haviam partido e falei do mensageiro, Kallian me proibiu de mandá-lo. Ele ficou matutando sobre o que os homens haviam deixado.

- E o que era isso?

- Uma espécie de sarcófago, igual ao que se encontra nos antigos túmulos stígios. Mas este era redondo, como uma tigela de metal com tampa. Era feita de algo semelhante ao cobre, mas mais duro, e tinha hieróglifos gravados iguais aos que se encontram nos antigos menires no sul da Stygia. A tampa estava bem fixada por tiras entalhadas, semelhantes ao cobre.

- O que havia dentro dela?

- Os homens da caravana não sabiam. Aqueles que lhes tinham dado a tigela disseram que era uma relíquia de incalculável valor, encontrada entre os túmulos bem abaixo das pirâmides e enviada para Kalanthes “por causa do amor que o remetente dedicava ao sacerdote de Íbis”. Kallian Publico acreditava que ela continha o diadema dos reis gigantes, dos povos que habitavam aquela terra escura antes que os antepassados dos stígios chegassem. Ele me mostrou um desenho gravado na tampa, o qual ele jurava ter a forma do diadema, que, segundo as lendas, era usado pelos reis-monstros.

“Ele queria abrir a Tigela para ver o seu conteúdo. Enlouquecia-o a idéia do fabuloso diadema, incrustado com estranhas pedras preciosas conhecidas apenas pela raça antiga, das quais uma única valeria mais do que todas as pedras do mundo moderno.

“Eu o preveni para não fazê-lo. Mas, ele continuou em minha casa, como já havia dito e, pouco antes da meia-noite, foi sozinho ao Templo, escondendo-se nas sombras até o guarda passar para o outro lado do edifício; depois entrou, usando a chave que trazia na cintura. Fiquei nas sombras da loja de sedas, observando-o até ele entrar, e depois voltei para casa. Se ele encontrasse o diadema na Tigela, ou qualquer outra coisa de grande valor, pretendia escondê-lo em algum lugar no Templo e depois, sem que ninguém percebesse, tirá-lo de lá. Na manhã seguinte, faria uma grande gritaria, diria que ladrões haviam invadido sua casa e roubado a propriedade de Kalanthes. Ninguém saberia de sua trapaça além do condutor da carruagem e de mim, e nenhum de nós iria traí-lo”.

- Mas e o guarda? – contestou Demétrio.

- Kallian não pretendia ser visto por ele; planejava mandar crucificá-lo como cúmplice dos ladrões. – respondeu Promero. Arus engoliu em seco e empalideceu, quando percebeu o quanto era corrupto seu empregador.

- Onde está este sarcófago? – perguntou Demétrio. Promero apontou, o inquisidor resmungou – Então! O mesmo aposento no qual Kallian deve ter sido atacado.

Promero empalideceu e torceu as mãos magras.

- Por que um homem da Stygia mandaria um presente para Kalanthes? Deuses antigos e múmias esquisitas já vieram pelas estradas das caravanas antes, mas quem é que ama tanto o sacerdote de Íbis na Stygia, onde as pessoas ainda adoram o arqui-demônio Set, que serpenteia entre os túmulos na escuridão? O deus Íbis está em constante luta com Set desde a aurora da Terra, e Kalanthes passou a vida inteira combatendo os sacerdotes de Set. Há alguma coisa obscura e oculta nisso tudo.

- Mostre-nos este sarcófago. – ordenou Demétrio, e Promero foi à frente, hesitante. Todos o seguiram, inclusive Conan, que nem parecia notar como os guardas o olhavam, e parecia apenas curioso. Eles passaram pelas cortinas rasgadas e entraram no aposento, que estava mais escuro do que o corredor. As portas dos dois lados conduziam para outros aposentos, e as paredes estavam cobertas de imagens fantásticas, de deuses de terras estranhas e povos distantes. Promero deu um grito agudo.

- Olhem! A tigela! Está aberta... e vazia!

No centro da sala, havia um estranho cilindro negro, de mais ou menos um metro e meio de altura e uns 90 centímetros de diâmetro na sua parte mais larga. A pesada tampa entalhada jazia no chão, e ao lado dela um martelo e um formão. Demétrio olhou dentro da tigela, perplexo por um instante com os obscuros hieróglifos, e voltou-se para Conan.

- É isto o que você veio roubar?

- Como é que eu conseguiria levá-la embora? É grande demais para um homem carregar.

- As faixas foram cortadas com este formão – comentou Demétrio –; e com pressa. Há marcas do martelo que errou o alvo ao bater no metal. Podemos supor que Kallian abriu a Tigela. Alguém devia estar se escondendo por perto... possivelmente atrás das cortinas da porta. Quando Kallian conseguiu abrir a Tigela, o assassino lançou-se sobre ele... ou pode ter matado Kallian e aberto ele mesmo a Tigela.

- Isto é uma coisa sinistra. – arrepiou-se o escrivão – É muito antigo para ser sagrado. Quem é que já viu um metal assim num mundo são? Parece mais duro do que o aço da Aquilônia, mas veja como está corroído e desgastado, com manchas. Vejam os pedaços de bolor negro, nos entalhes dos hieróglifos; têm o mesmo cheiro que a terra exala bem abaixo da superfície. E vejam... aqui, na tampa! – O escrivão apontou com o dedo trêmulo – O que vocês diriam que é?

Demétrio curvou-se perto do desenho gravado.

- Eu diria que representa uma espécie de coroa. – grunhiu ele.

- Não! – exclamou Promero – Avisei Kallian, mas ele não quis acreditar em mim! É uma serpente escamosa e enrolada, com a cauda na boca. É o sinal de Set, a Velha Serpente, o deus dos stígios! Esta Tigela é muito antiga para um mundo humano; é uma relíquia do tempo em que Set caminhava pela Terra em forma humana. Talvez a raça que surgira de sua semente guardasse os ossos de seus reis em caixas como esta!

- E você diria que aqueles ossos ressecados se ergueram, estrangularam Kallian Publico e depois foram embora? – zombou Demétrio.

- Não era um ser humano o que foi colocado para descansar nesta tigela. – sussurrou o escrivão, com olhos arregalados e fixos no objeto – Que tipo de homem caberia nisto aqui?

Demétrio praguejou repulsivamente.

- Se o cimério não é o assassino – ele falou bruscamente –, o autor disto ainda está em algum lugar neste edifício. Dionus e Arus, fiquem aqui comigo, e vocês três, prisioneiros, fiquem aqui também. O resto de vocês faça uma busca na casa! Se o assassino fugiu antes que Arus encontrasse o corpo, somente poderia fugir pelo mesmo caminho pelo qual Conan entrou, e neste caso o bárbaro o teria visto, se ele estiver dizendo a verdade.

- Não vi ninguém além deste cão. – grunhiu Conan, apontando para Arus.

- É claro que não, porque você é o assassino. – disse Dionus – Estamos perdendo tempo, mas vamos fazer uma busca por formalidade. E, se não encontrarmos ninguém, prometo que você será queimado! Lembre-se da lei, meu selvagem de cabelos negros: por matar um artesão, você vai para as minas; por um comerciante, você é enforcado; um nobre, você é queimado!

Conan arreganhou os lábios, mostrando os dentes, como resposta. Os homens começaram sua busca. Ouviam-se seus passos para cima e para baixo pelos aposentos, movendo objetos, abrindo portas e gritando uns para os outros.

- Conan – disse Demétrio –, você sabe o que significa se eles não acharem ninguém?

- Eu não matei esse homem. – rosnou o cimério – Mas, se ele tentasse me impedir, eu teria partido seu crânio; mas não o vi até que dei com o seu cadáver.

- Sei que, no mínimo, alguém o mandou aqui para roubar. – disse Demétrio – Por causa do seu silêncio, você se incrimina neste assassinato também. O simples fato de você estar aqui é suficiente para mandá-lo para as minas por dez anos, admita você a culpa ou não. Mas, se contar a história toda, poderá se salvar do enforcamento.

- Bem – respondeu o bárbaro a contragosto –, vim aqui roubar a taça de diamantes zamorianos. Um homem me deu um mapa do Templo e me disse onde procurá-la. Ela fica guardada nesse aposento – apontou Conan –, num nicho no chão debaixo de um deus de cobre shemita.

- Ele fala a verdade quanto a isso. – disse Promero – Pensei que nem chegasse a meia dúzia os homens que conheceriam o segredo desse esconderijo.

- E depois de roubá-la – disse Dionus com um riso de desprezo –, você realmente a levaria para o homem que o empregou? Ou iria guardá-la para você mesmo?

Novamente, os olhos ardentes faiscaram com ressentimento.

- Não sou um cachorro. – murmurou o bárbaro – Mantenho minha palavra.

- Quem o mandou aqui? – exigiu Demétrio, mas Conan se manteve num teimoso silêncio. Os guardas estavam voltando de sua busca.

- Não há ninguém escondido nessa casa. – grunhiram – Vasculhamos tudo. Encontramos o alçapão no telhado pelo qual o bárbaro entrou e a trava que ele cortou ao meio. Um homem que fugisse por aquele caminho teria sido visto pelos guardas, a não ser que ele tenha fugido antes que chegássemos. Além disso, ele teria que empilhar mobília para atingir o alçapão e isto não foi feito. Por que não poderia sair pela porta da frente, antes que Arus desse a volta no edifício?

- Porque a porta estava travada por dentro, e, das únicas chaves que abrem aquela trava, uma delas está com Arus e a outra ainda está pendurada no cinto de Kallian Publico.

- Achei a corda que o assassino usou. – anunciou um deles – Um cabo preto, mais grosso que o braço de um homem, e curiosamente manchado.

- Onde está ele, então, seu idiota? – exclamou Dionus.

- No aposento pegado a este. – respondeu o guarda – Está enrolado num pilar de mármore, e não tenho dúvida de que o assassino achou que ele não seria visto. Não consegui alcançá-lo, mas deve ser ele.

Ele conduziu os outros para o aposento cheio de estátuas de mármore, e apontou para a coluna alta – uma das muitas que serviam mais para ornamento e encaixe de estátuas, do que para fins práticos. E então, ele parou e arregalou os olhos.

- Não está mais aí! – gritou.

- Ela nunca esteve aí. – bufou Dionus.

- Por Mitra, estava sim! – jurou o guarda – Enrolada ao redor do pilar, acima daquelas folhas esculpidas. Estava tão escuro aí em cima que eu mal conseguia vê-la, mas estava lá.

- Você está bêbado. – disse Demétrio, voltando-se – É muito alto para um homem conseguir chegar até aí, e ninguém além de uma serpente conseguiria subir por este pilar liso.

- Um cimério conseguiria. – murmurou um dos homens.

- É possível. E se Conan estrangulou Kallian, amarrou o cabo ao redor do pilar, atravessou o corredor e se escondeu no aposento onde fica a escada, como então ele poderia ter retirado o cabo depois de você tê-lo visto? Ele esteve conosco desde que Arus encontrou o corpo. Não, eu lhe afirmo que Conan não cometeu o assassinato. Acredito que o verdadeiro assassino matou Kallian para apoderar-se do que quer que estivesse na Tigela, e está metido agora em algum esconderijo secreto do Templo. Se não conseguirmos achá-lo, teremos de culpar o bárbaro para satisfazer a justiça; mas... onde está Promero?

Eles voltaram até o lugar onde estava o cadáver, no corredor. Dionus berrou ameaçadoramente para Promero, e o escrivão veio do aposento no qual estava a Tigela vazia. Ele tremia e seu rosto estava pálido.

- Que foi agora, homem? – exclamou Demétrio irritado.

- Encontrei um símbolo no fundo da Tigela! – gaguejou Promero – Não é um hieróglifo antigo, mas um símbolo que foi gravado recentemente! A marca de Thoth-Amon, o feiticeiro stígio, inimigo mortal de Kalanthes! Ele encontrou a tigela em alguma caverna sinistra debaixo das pirâmides assombradas! Os deuses dos tempos antigos não morriam como morrem os homens; eles caíam em sono profundo e seus adoradores os trancavam em sarcófagos, para que nenhuma mão estranha pudesse perturbar seu sono! Thoth-Amon mandou a morte para Kalanthes... a cobiça de Kallian fez com que ele soltasse este horror... e ele está à espreita em algum lugar perto de nós. Agora mesmo, ele pode estar rastejando em nossa direção...

- Seu tolo gaguejante! – trovejou Dionus repugnado, dando-lhe uma forte bofetada na boca. Dionus era um materialista, com pouca paciência para estranhas especulações.

- Bem. Demétrio – disse ele, voltando-se para o inquisidor –; não vejo nada que se possa fazer, a não ser prender o bárbaro...

O cimério gritou subitamente, e eles se viraram. Ele estava de olhos arregalados, voltados para a porta de um aposento contíguo à sala das estátuas.

- Vejam! – exclamou ele – Vi algo se movendo naquela sala; vi através das cortinas. Algo que atravessou o chão como uma grande sombra escura!

- Bah! – bufou Posthumo – Nós investigamos aquela sala...

- Ele viu alguma coisa! – berrou Promero com voz estridente e histérica – Este lugar está amaldiçoado! Algo saiu do sarcófago e matou Kallian Publico! Esta coisa se escondeu onde nenhum homem se esconderia, e agora espreita naquele aposento! Mitra nos defenda dos poderes das Trevas! – disse, agarrando a manga de Dionus – Investigue aquela sala de novo!

O prefeito sacudia o escrivão de forma abjeta, e Posthumo inspirou-se a um lampejo de humor:

- Você mesmo vai investigá-la, escrivão! – ele disse, agarrando Promero pelo colarinho e pelo cinto, e empurrando até a porta o pobre coitado que berrava, lançando-o para dentro da sala com tanta violência que o escrivão caiu e ficou meio atordoado.

- Basta disso. – grunhiu Dionus, fitando o silencioso cimério. O prefeito ergueu a mão, quando foi interrompido pela entrada de um guarda, arrastando uma figura delgada e ricamente vestida.

- Eu o vi andando furtivamente atrás do Templo. – disse o guarda, esperando por aprovação. Em vez disso, recebeu xingamentos que fizeram seus cabelos eriçarem.

- Liberte esse senhor, seu tolo! – gritou o prefeito – Você não conhece Aztrias Petanius, sobrinho do governador da cidade?

O guarda, envergonhado, largou o cativo enquanto o jovem nobre esfregava com cuidado sua manga bordada.

- Guarde suas desculpas, meu bom Dionus. – ele murmurou afetadamente – Tudo pelo dever, eu sei. Eu estava voltando para casa de uma farra, caminhando para libertar meu cérebro dos vapores do vinho. Que temos aqui? Por Mitra, é um assassinato?

- É um assassinato, meu senhor. – respondeu o prefeito – Mas temos um suspeito que, embora Demétrio pareça ter dúvidas sobre o assunto, com certeza irá para a fogueira por isso.

- Um bruto com aparência maléfica. – murmurou o jovem aristocrata – Como podem duvidar de sua culpa? Jamais vi uma fisionomia tão maldosa.

- Sim, você viu, seu cão perfumado. – bufou o cimério –, quando me contratou para roubar a taça zamoriana para você. Farra, hein? Bah! Você estava esperando nas sombras por mim, para eu lhe entregar o fruto do roubo. Eu não teria revelado seu nome, se você falasse bem de mim. Agora, conte para esses cães que me viu escalando o muro depois que o guarda fez a sua última ronda; assim, eles saberão que não tive tempo para matar este suíno gordo antes que Arus entrasse e encontrasse o corpo.

Demétrio deu uma rápida olhada para Aztrias, que não mudou de cor.

- Se o que ele diz for verdade, meu senhor – disse o inquisidor –, isto o isenta da culpa, e podemos abafar facilmente o assunto da tentativa de roubo. O cimério ganha dez anos de trabalhos forçados por invadir uma casa; mas, se você quiser, arranjaremos a fuga dele e ninguém além de nós saberá disso. Entendo... você não é o primeiro jovem nobre que teve de recorrer a estes meios para pagar dívidas de jogo e coisas assim, mas pode contar com a nossa discrição.

Conan olhou esperançoso para o jovem nobre, mas Aztrias encolheu seus magros ombros e cobriu um bocejo com a delicada mão branca.

- Eu não o conheço. – respondeu – Ele é um louco em dizer que eu o empreguei. Que receba o que merece. Ele tem costas fortes; o trabalho nas minas lhe fará bem.

Os olhos de Conan arderam, e ele olhava como se tivesse sido picado. Os guardas ficaram tensos, agarrando suas alabardas; em seguida relaxaram quando ele repentinamente deixou cair a cabeça, como se estivesse resignado; nem mesmo Demétrio sabia se ele estava ou não observando-os debaixo de suas pesadas sobrancelhas negras, com olhos que eram fendas de fogueiras azuis.

O cimério investiu sem nenhum aviso, como uma serpente dando o bote; sua espada reluziu à luz das velas. Aztrias soltou um grito e sua cabeça rolou de seus ombros num jorro de sangue, seus traços paralisados numa branca máscara de terror. Conan girou como um felino e investiu mortalmente nas entranhas do inquisidor. O retraimento instintivo de Demétrio mal evitou a ponta, que afundou em sua coxa, bateu do osso e atravessou sua perna. Demétrio caiu sobre um joelho, com um gemido de agonia.

Conan não parou. A alabarda que Dionus ergueu salvou o crânio do prefeito da lâmina sibilante, que se desviou levemente ao cortar a haste da alabarda, errando o alvo dirigido para a cabeça, e decepou a orelha direita do prefeito. A velocidade estonteante do bárbaro paralisou a guarda. Pegos de surpresa e entorpecidos por sua rapidez e ferocidade, metade deles estaria derrubada antes de ter a chance de se defender, se não fosse o corpulento Posthumo que, mais por sorte do que por habilidade, jogou os braços ao redor do cimério, imobilizando o braço que segurava a espada. A mão esquerda de Conan arremeteu-se contra a cabeça do guarda, e Posthumo caiu gritando e se contorcendo no chão, apertando a órbita vermelha gotejante onde antes havia um olho.

Conan se defendia das alabardas que voavam ao seu redor. Com um pulo, saiu do meio da roda de seus inimigos e se postou onde Arus estava tateando por sua besta. Um chute violento no ventre derrubou Arus, que ficou com o rosto esverdeado e ânsia de vômito, e o calcanhar da sandália de Conan esmagou a boca do guarda. O pobre coitado gritou em meio a uma ruína de dentes despedaçados, o sangue jorrando de seus lábios esmagados.

Em seguida, todos ficaram paralisados de horror por causa de um grito de sacudir a alma, que vinha do aposento no qual Posthumo tinha jogado Promero. O escrivão veio cambaleando pela porta com cortina de veludo e parou, sacudido por grandes soluços silenciosos; lágrimas escorriam por seu rosto enrugado e pingavam de seus lábios trêmulos e moles; parecia um bebê idiota chorando.

Todos se detiveram espantados a olhar para ele – Conan, com sua espada gotejando; a polícia, com suas alabardas erguidas; Demétrio, agachado no chão e tentando estancar o sangue que esguichava da enorme ferida em sua coxa; Dionus, apertando o toco ensangüentado de sua orelha; Arus, chorando e cuspindo pedaços de dentes quebrados – até Posthumo parou com seus uivos e piscava choramingando, através da névoa sangrenta que lhe cobria a meia-visão.

Promero cambaleou até o corredor e caiu num baque surdo diante deles. Gritando em meio a uma insuportável gargalhada aguda de loucura, ele soltou um grito estridente:

- O deus tem um pescoço longo! Há, há, há! Oh, um longo, maldito pescoço longo!

Em seguida, depois de uma convulsão aterradora, ele enrijeceu com um sorriso vago nos lábios, os olhos fixos no teto em sombras.

- O homem está morto! – sussurrou Dionus pasmado, esquecendo-se de sua própria ferida e do bárbaro que estava parado ao seu lado com a espada gotejante. Ele se curvou sobre o corpo e em seguida se endireitou, com seus olhos de porco arregalados – Ele não está ferido. Em nome de Mitra, o que é que tem naquele aposento?

Então todos eles, tomados pelo terror, precipitaram-se berrando pela porta afora, formando um tumulto de empurrões e colisões, e saindo de lá como loucos. Arus os seguiu, e Posthumo se ergueu cambaleante e foi tropeçando meio cego atrás deles, guinchando como um porco ferido e implorando-lhes que não o deixassem para trás. Ele caiu, foi chutado e pisoteado por aqueles que gritavam de medo. Mesmo assim, rastejou atrás deles, seguido por Demétrio, que mancava apertando sua coxa jorrando sangue. O inquisidor tinha a coragem para enfrentar o desconhecido, mas estava enfraquecido e ferido, e a espada que o derrubara ainda estava perto dele. Agarrando a coxa que esguichava sangue, ele cambaleou atrás de seus companheiros. A guarda, o condutor da carruagem e os vigias, feridos ou não, precipitaram-se berrando para a rua, onde os homens que guardavam a casa foram tomados de pânico e se juntaram à fuga, sem esperar para perguntar por quê.

Conan ficou sozinho no corredor, diante dos três cadáveres no chão. O bárbaro ajeitou a espada na mão e entrou no aposento. Dentro dele havia ricas tapeçarias de seda; almofadas e leitos de seda estavam espalhados numa profusão descuidada e, acima de um pesado biombo dourado, um Rosto fitava o cimério.

Conan fitou, maravilhado, a beleza fria e clássica daquele rosto, que não se parecia com nada que ele vira entre os filhos dos homens. Nem fraqueza, nem misericórdia, nem crueldade, nem bondade, nenhuma emoção humana transparecia naqueles traços. Poderiam ser a máscara de mármore de um deus, esculpida pela mão de um mestre, a não ser pela presença inconfundível de vida neles – vida fria e estranha, que o cimério jamais conhecera e que não podia entender. Passou-lhe pela cabeça como seria o corpo escondido atrás do painel; devia ser perfeito, ele pensou, pois o rosto era de uma beleza não-humana.

Mas ele conseguia ver apenas a face divina, que oscilava de um lado a outro. Os lábios cheios se abriram e pronunciaram uma única palavra, num tom rico e vibrante, igual aos sinos de ouro que tocam nos templos de Khitai, perdidos na selva. Era uma língua desconhecida, esquecida antes que os reinos dos homens surgissem, mas Conan sabia o que significava:

- Venha!

E o cimério se aproximou, com um salto desesperado e um corte sibilante de sua espada. A bela cabeça voou do topo do biombo, num jorro de sangue negro, e caiu aos seus pés; ele recuou, temeroso de tocá-la. Então, sua pele se arrepiou, pois o painel estremeceu com as convulsões de algo que estava atrás. Ele já havia visto e ouvido muitos homens morrendo, e jamais havia ouvido um ser humano emitir sons assim em seus estertores de morte. Havia um ruído de bater e se arrastar, como se um grande cabo estivesse sendo violentamente chicoteado.

Por fim, os movimentos cessaram, e Conan olhou cautelosamente atrás do biombo. Então, todo o horror daquilo tudo tomou conta do cimério, e ele fugiu, sem diminuir a corrida, até que as torres de Numália desaparecessem na aurora atrás dele. Pensar em Set era como um pesadelo, assim como pensar nos filhos de Set que outrora reinavam na Terra e que agora dormiam nas cavernas soturnas debaixo das negras pirâmides. Atrás daquele painel dourado não havia um corpo humano – somente os brilhantes anéis sem cabeça de uma gigantesca serpente.




Fontes: Conan – Espada e Magia #1 (Ed. Unicórnio Azul, 1995), Conan O Cimério Vol. 1 (Ed. Conrad, 2006) e http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2000%20-%20The%20Coming%20of%20Conan%20The%20Cimmerian%20-%20FF.txt

Agradecimento especial: Ao howadmaníaco Fabrício Souza.
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